29 novembro 2003

Nas asas da liberdade


A esposa morrera, nem há uma semana. Uma morte lenta de cancro, que o prepara para a dor maior de ficar definitivamente sem ela. Durante todo o tempo em que agonizava, não fora dispensado das suas funções de Presidente do Conselho de Administração da grande corporação. Era materialmente rico, mas vazio por dentro agora que ela se fora. Ela tinha sido a sua espiritualidade, buscara consolo na Bíblia, á medida que a vida lentamente a sufocava. Ela lera-lhe inúmeras passsagens, quisera que ele acreditasse como ela que vida recomeçaria num novo mundo maravilhoso.
Tudo o que recomeçava era a obrigação do continuar dos dias. Sem descanso, sem paragens, sem interrupções. O Faraó era a corporação.
-- Sr. Presidente, precisa de assinar o contrato de exploração de petróleo...
-- Deixe ficar... -- disse ele, recuando para dentro de si. Aquele contratou estava manchado de sangue. Era finaceiramente um bom contrato.
-- Também lhe trouxe o plano de reestruturação da empresa têxtil que adquirimos ontem...
E ele viu-se a pensar o que significava reestruturação: despedimentos, milhares de famílias afectadas numa espécie de bola de neve. Sabia que aquela empresa era a maior empregadora da região. A empresa seria deslocalizada e a região seria condenada á desertificação humana. As mãos tremeram-lhe. Lembrou-se da esposa, quando lhe falou do Faraó, que este dissera aos judeus escravizados que fizessem tijolos e arranjassem também a palha.
-- Deixe ficar também... -- pediu ele á secretária.
A secretária pareceu indecisa, mas arriscou:
-- Tem aqui também aquele projecto imobiliário...
Ele sorriu-lhe:
-- Deixe em cima da secretária, por favor...
O projecto era um ressort turistico para abastados como ele. Mesmo ao lado havia milhares de pobres, que apenas se contentariam se tivessem o suficiente para comer todos os dias! Lembrava-se de que as terras onde seria construído o ressort, eram terrenos baldios de que um político corrupto se apropriara e que lhe vendera, por um preço razoável. Aquele ressort era construído sobre cadáveres. Sentiu-se mal do estomâgo, com uma vontade de vomitar e foi até ao WC do andar. Tinha o seu próprio WC privado, mas sentiu necessidade de andar.
Entrou no WC, e fechou-se no cubículo da sanita. Entruo alguém e ouviu sem querer:
-- Depois da morte da esposa, o Presidente não é o mesmo! Perdeu a garra!
O interlocutor disse.
-- Acreditas que será destituído na próxima Assembléia Geral de accionistas?
-- Talvez... Os contratos acumulam-se na secretária dele, parece adiar indefinidamente as decisões, estamos a perder milhões...
Riu-se por dentro! O grande deus Mamon tinha inúmeors seguidores! Achavamos repugnante nos tempos antigos os sacrificios humanos, contudo pelo dinheiro, eramos capazes de fazer todos os sacrifícios humanos que fossem necessários. Até ele, por paradoxal, se sentia mais um.
Lembrou-se da esposa, de como Deus amorosamente enviara um homem, para libertar todos os escravos de Faraó. Com que mão forte os tirara daquele jugo pesado. Queria ser liberto, mas não acreditava em Deus ou melhor, parecia-lhe que Deus deixara de acreditar nos homens, que estes fossem capazes de qualquer bondade digna de nota. Por isso, Deus deixara a humanidade entregue a si própria, até se transformarem numa monstruosidade.
Sentiu uma angustia dolorosa invadir-lhe o peito. Uma saudade a ferrar-lhe por dentro. Sentiu-se preso, amordaçado nos seus sentimentos mais puros e generosos, manietado. Queria ser livre! Queria acreditar que existe Deus, e que este se importa, que faria qualquer coisa que o libertasse! ave voando
Voltou ao seu escritório, ao seu gabinete belamente decorado. O Faraó vivia em luxo e concedia-lhe parte dele. Sentiu nojo de tudo aquilo, que se construira na desgraça de milhares de outros, no sangue de irmãos. Pois como contava a Bíblia todos viemos da mesma costela. Olhou para fora, pelas grandes janelas do topo do edificio, que mais alto que os outros todos, como uma piramede simbolizava o domínio, o poderio, sobre os outros!
Sentiu um sufoco, que não era apenas da alma, mas de ar também e abriu a janela!
O vento entrou livre e forte e espalhou os contratos todos sobre a sua secretária, pelo meio do chão. Só havia uma saída, daquela gaiola dourada. Subiu no parapeito da janela. Queria a sua amada esposa! Queria ser livre! E acreditou que podia ao menos, ser pássaro! Abriu as asas, e voou...

28 novembro 2003

Conversa Perfeita


Juntavamo-nos ao fim do dia naquela mesa de café. Era um hábito, e foi por acidente que nos vimos entretidos a discutir os problemas do mundo e a opinar soluções. Sim, tínhamos passado a fase da maledicência e subido o nobre patamar de propor soluções.
Ao ouvir-nos estavamos certos de sermos capazes de salvar o mundo. Mas as nossas ideias não passavam daquela mesa de café. Essas conversas eram a droga das nossas boas intensões, como o café que nos espevitava o suficente para não dormirmos do jeito que dorme toda a gente: apáticos perante o que vai acontecendo.
Sim, parece um facto consumado que os dias de hoje, são feitos de modo a que ninguém pense! Pensar é um acto subversivo que deve ser reprimido a todo o custo. Os 'intelectuais' e esta palavra ganhou um cunho pejorativo, quase de insulto, é que pensam. 'Nós' os cidadãos não pensamos, trabalhamos! Infelizmente o trabalho é um bem cada vez mais escasso. O desemprego e a reforma eliminavam os empregos.
Tínhamos planos para resolver tudo isso! Mas o que é que não eramos capazes de resolver á mesa mágica daquele café! Tínhamos mesmo a forte suspeita, de que aquele local era mágico, e nem tomavamos café, a não ser exactamente ali, naquele canto sacralizado!
-- Então qual vai ser o tema de hoje?
-- Ó pá, hoje não me consigo concentrar... Viste a merda do jogo?
-- Ó carago, ainda bem que não sou do teu clube! Deitava-me a afogar, carago!
A conversa era acentuada por palavras que em nada contribuiam para a solução do problema mas que nos esvaziavam da raiva, ou da frustração e da impotência. Abençoada a mente que inventou na linguagem o impropério e a palavra obscena; ou dito de outra forma: a asneira!
A asneira sublima a escória das nossas revoltas, dá-lhe um escape sem violência física.
-- E esta guerra pelo petróleo? Dizem os gajos que é contra o terrorismo!
-- Pilhagem! Esses filhos-da-puta, são uns ladrões!
E a conversa continuava interminável. Pelo menos tínhamos tema todos os dias!
-- Olha que os gajos num combatem a fome! Pra isso não mobilizam eles meios! E se fosse por falta de alimentos, ou secas ou o carago! É por puro desleixo! Egoísmo!
E vivíamos as nossas confortáveis vidas de pantufas. Eramos todos demasiado velhos para militar nalguma organização terrorista. E a vida ensinara-nos que as revoluções têm a curiosa tendência de voltarem atrás no tempo, e deixarem as coisas ficarem da mesma maneira! Não era com revoluções que se mudava coisa nenhuma. Era com ideias, mudança de mentalidades!
E partíamos num fervor quase apostólico a convencer os outros que precisavam começar a pensar! Mas retornavamos derrotados áquela mesa de café, vencidos por telenovelas, futebol e chatices quotidianas.
-- Ó pá, agora aquela gaja tem cá um par de mamas! -- dizia alguém a respeito de uma actriz numa telenovela qualquer.
-- Xi, é podre de boa a gaja! Ai se eu fosse mais novo!
-- Se fosses mais novo, como é que te encontravas com a gaja? És mas é parvo!
mulherA maior parte das vezes, o tema eram mulheres, em especial mulheres novas, de corpos ainda não deformados pela idade. Esquecíamo-nos dos nossos corpos moles e envelhecidos e pensavamos ainda como se a eterna juventude fosse um dado adquirido. Mulheres era um tema recorrente que se discutia com empenho, ardorosamente, e em que regra geral havia o mais elevado consenso. Talvez fosse esse o tema de uma conversa perfeita.

26 novembro 2003

"Não há soluções, apenas opções." -- in Solaris de Stanislaw Lem


A realidade é feita de mentiras, que repetimos com um fervor piedoso, religioso. Máximas que nos ensinaram como se fossem pérolas de sabedoria e já não são. Os tempos mudaram, e atiraram-nos para um vazio, de tédio, de apatia.
Temos medo, todos os medos, medo da doença, da conhecida e da desconhecida. Medo do futuro, porque nenhum parece provável, nesta era de suprema incerteza! Medo da vida, que parece errática e sem sentido. Medo da morte, porque não dá nenhuma alternativa. Medo do sexo, porque é sem amor! Medo do amor, porque nunca sabemos se é mesmo pra valer desta vez. Medo do trabalho por que é demais e mal pago. Medo do desemprego, porque tira a dignidade e o sustento. Temos até medo de ter medo, porque é ser fraco!
E temos razão para o medo, todas as razões. A fome aumenta no mundo. Os ricos estão cada vez mais ricos. Os pobres mais pobres. E os que estão no meio têm medo de se tornarem pobres e vão atrás de ilusões proclamadas por políticos. Mas como alguém disse:
-- Não há soluções, apenas opções.
Qual é a tua? Ou desististe de pensar, nesta letargia alimentada por quem te suga aos poucos até ao tutâno?
Nesta matriz, romperás as grilhetas da escravidão ao sistema, ou dentro do sistema serás o grão de areia? Lembra-te:
-- Não há soluções, apenas opções.
Salmodearás outra vez os lugares batidos do bom senso? Um bom senso colocado no lugar da canção de embalar, para te enganar com a ideia que tudo tem de ser assim. Mas porque tem de ser deste modo? Porque tem de ser tão injusto, com as mortes transmitidas em directo? Refastelados nos sofás, ainda estamos com os pães quentes. Condoemo-nos da desgraça alheia? Ou é apenas mais um filme, que já nem acorda em nós a indignição? Que vais fazer? Dormir descansado esta noite, que já tens preocupações em demasia? Que preocupações são as tuas? Levantar cedo amanhã, para repetires gestos quotidianos até ao exaurir dos teus dias? E morrerás feliz? Não te parece demasiado patético? Nunca te perguntaste porquê? Se pensaste arrumaste o pensamento num lugar escuro, profundo, donde não pudesse voltar, porque é incomoda a resposta! Pensar tornou-se nojento, nesta sociedade de ratos amestrados!
'Tem de ser assim!' Mas porque tem de ser assim? E depois quem pensa leva um rótulo e trocam-se olhares trocistas e superiores. Não, não falo dessa intelectualidade banal, formulada em mesas de café, tipo tertúlia. Não falo de blogs. Falo de pensar para tomar opções, pois não se deve esquecer que:
-- Não há soluções, apenas opções.

25 novembro 2003

Sempre que um homem quiser!


A colónia penal de Talus era um calhau inóspito perfeito para mentes frágeis terem alucinações, e infelizmente o que não faltava em Talus eram mentes frágeis! Toda a escumalha da galáxia era lançada em Talus, alguns para o resto das suas tortuosas vidas. Não havia qualquer preocupação de recuperar estes restos de humanidade, sim restos, diví­amos até dizer escória da humanidade. Os que eram lançados em Talus, era como se os lançassem vivos numa espécie de tumba, da qual dificilmente sairiam, se é que saíriam!
Os guardas prisionais, tinham sido recrutados de entre os mais calmos e bem-comportados presos, mas em abono da verdade, não havia necessidade de guardas prisionais. Talus era uma colónia penal inóspita, que nem era sequer auto-suficiente em questão alimentar. Um dia as naves de abstecimento estiveram em greve por cerca de 15 dias e a população de Talus ía sendo dizímada pela fome!
Por isso, os prisioneiros faziam por se portar bem, perante um director prisional que era afinal um político corrupto que tinha tido a má sorte de ter sido apanhado num escândalo sexual envolvendo pedofilia e tinha sido desterrado para ali. As autoridades nomearam-no autoridade suprema em Talus. Em Talus não havia democracia. Tudo era uma preocupação de sobrevivência, ás vezes nem isso, que a taxa de suicídios andava em 10/1.000 residentes. Não havia alas para os diferentes sexos. Os condenados eram largados em Talus e esperava-se que ou se acomodassem o melhor que podiam, ou morressem depressa. Apesar dos poucos motivos para viver em Talus, ainda assim os residentes faziam o melhor que podiam!
Talus era um globo de gelo, e a única forma de sobreviver era nas galerias subterrâneas. No Verão a temperatura subia para uns amenos 4ºC e era a ocasião em que todos aproveitavam para fazer pic-nics.
Foi neste lugar de fim-de-mundo que começaram a surgir acontecimentos estranhos. Num dos Verões Luigi Campino e o seu eterno companheiro Jorge Valente, tiveram uma das primeiras visões, das muitas que depois surgiram.
-- Juramo-vos que encontramos Deus! -- Dizia veemente Luigi juntado as mãos de forma beatifica.
-- Mas que bebida inventaram vocês desta vez? Que andaste a beber Luigi? -- perguntava com ar quase paternal a autoridade suprema, a quem tinham alcunhado de Nero.
-- Juro que não bebemos nada, Nero! -- Asseverava Jorge, com sinais de perturbação no rosto.
-- Raios partam, querem ver que neste calhau bom prós iogurtes, vocês apanharam uma insolação? -- Resmordeu Nero, cogitando que aqueles dois, não tinham imaginação digna de inventarem um disparate tão grande. -- Afinal onde viram vocês o Nosso Senhor?
Levaram Nero até um penhasco, por um carreiro. E foi então que todos viram uma claridade dentro daquilo que pareceia uma gruta, mas era apenas um calhau grande tombado de encontra a parede o penhasco. Os residentes seguiram Nero e este seguiu Luigi e Jorge, que sorriam apontando a luz:
-- Vêem!
Nero ficou com medo, e mandou o seu capanga Sertorius um gigante de 2,5m e 150Kgs de peso que fosse ver. Ele arrancou decidido por ali fora. Coisa que Sertorius nunca deve ter tido foi medo. Viram-no entrar na luminosidade e desaparecer. Mas demorou a vir. Nero olhava o relógio impaciente. Quando Sertorius voltou, parecia ter a face de um menino, tão pura e inocente. Nero achou que aquilo até ficava mal num gigante daqueles, e antes que perguntasse alguma coisa, Sertorius falou com uma voz meiga:
-- Nero, tens de ir lá tu! É tão bonito! Sinto-me...sinto-me feliz Nero. -- E começando a chorar -- Fiz tantas asneiras, mas o Senhor perdou-me de todas elas... Juro que nunca mais farei mal a ninguém!
Os restantes residentes riram-se, porque sabiam o génio de Sertorius, mas quando este olhou para eles calaram-se de imediato. Mas o olhar de Sertorius era meigo, quase como se pedisse desculpa.
Nero ficou intrigado, perguntando-se porque razão Nosso Senhor apareceria à escumalha da humanidade, mas depois o seu espírito prático de político trouxe-lhe a resposta: Era evidente que as possibilidades de sucesso eram muito maiores, aqueles desgraçados não podiam ser piores, portanto era só de esperar que se tornassem melhores!
Animado por esse pensamento avançou em direcção ao penhasco, também ele só podia melhorar.
A multidão seguiu, mas quando o viu entrar e desaparecer na luz, mantevesse respeitosamente à distância. Nero demorou a ponto de uma vaga de murmúrios passar uma e outra vez pela multidão.
Mas ele que apareceu, e erguendo os braços proclamou:
-- Meus irmãos... Anuncio-vos o Paraíso!

Sim, porque afinal, o Paraíso é sempre que um homem quiser...

O toque de Midas


Era sempre assim, a mesma sensação, quando o amor terminava. Ele apenas era capaz de ter amores sem saída, nenhuma saída, todos fadados ao mesmo destino de acabar. Era persistente, uma persistência doente, de insistir em amar, amores fúteis, amores impossíveis, amores castrados, amputados. Amores que gangrenavam, naquela angústia de tentar fazer que durassem mais um pouco. Não importava que amor fosse! Tanto fazia que fosse o amor de paixão, o amor de amizade, ou até mesmo o amor a Deus!
O seu amor era geneticamente imperfeito, sempre condenado a ficar a meio, incompleto. O que lhe enchia a alma depois de uma dor, que não tinha nada de físico, mas o inundava até à sufocação.
Tentara muitas vezes, tentara milhares de vezes. Tentara com coragem e com medo. Tentara com sinceridade e com hipocrisia. Tentara, tentara sempre, e o resultado fora sempre igual.
Por isso, ao invés de amar, tinha-se deixado amar. Mas não era o bastante. A sua carência era como um cancro dentro dele a crescer, para o destruir. Queria abraços, e beijos e carícias, palavras doces! Queria amar como quem respira.
Aos poucos curvara-se como se uma fatalidade o empurrasse sempre para baixo, até ao pó, como se a terra o reclamasse seu. E era, um pó, um pó sem importância, no meio de todas as coisas mais importantes. Um pó que se limpa com um pano e se sacode fora.
Sentia-se sacudido da vida, como se fosse um saco que se despeja.
Já não lhe importava nada que fosse isso. Não tinha a mínima importância. Tudo o que restava nele à medida que se esvaziava, era aquela vontade de amar, de amar, de amar! E tudo lhe escapava por entre os dedos, como se fosse areia ou água. Ninguém para amar, para se deixar amar, com o calor do vulcão que rugia dentro dele. Ninguém para amar da forma doentia com que amava, até à exaustão, ao limite, à agonia de não poder amar mais.
Queria compreender a sua doença, e ninguém ajudara. Talvez amasse porque nascera prematuro e sentira a falta da pele macia da mãe. Talvez amasse porque se sentia inútil e apagado no anonimato das nossas vidas quotidianas, e amar o fizesse sentir útil. Talvez amasse como suprema forma de egoísmo! Meu Deus, que miséria de humano!
Ou talvez aquela dor, fosse o merecido castigo de ser uma nulidade, que nenhum amor poderia resgatar! Que só a terra ao puxá-lo para si, ao encurvá-lo, pudesse compensar. Talvez fosse um monstro, não no físico, mas ode é mais estranho na alma! Na mesma categoria dos psicopatas e dos perturbados.
Teria de desistir de amar. Desistia sempre... Naquela amargura de saber que amar nele era um exercício vão. Totalmente em vão.
E Deus? -- Perguntarão. Talvez Deus sinta uma agonia igual ao olhá-lo, nas suas tentativas frustradas de amar. Na sua falta de critério, no seu estrabismo emocional, na sua instabilidade. Deus, pode apontar um caminho, mas como pode ele caminhar nele, se olha para os pés, encurvado? Como pode ajudá-lo, se ele não sabe amar? Se ama as pessoas erradas, que nada lhe dizem, que se calam no seu silêncio e se limitam a ser amadas, sem qualquer interesse nele? Ou até mesmo sem darem conta do seu amor? Deus não pode mandar anjos aquem olha sempre para o chão. Deus não pode forçar ninguém a seguir um caminho que dá vida. Deus não pode forçar os idiotas que amam sem tino!
Ele não sabe porque é assim. Não pode saber, porque está demasiado entretido a amar os outros, à procura de quem queira ser amado. A sofrer a dor de ficar vazio, lançador de sementes ao vento, que nunca darão flores para ele. Serão sempre outros a colhê-las em algum lugar. É amargo, amargo, como o toque de Midas!

24 novembro 2003

A Solução (a)Final


A panaceia viera mesmo a tempo! O desemprego atingira números catastróficos impondo uma sobrecarga aos meios de segurança social insustentável. Não havia dinheiro para suportar as necessidades daqueles que por fatalidade económica haviam ficado privados de emprego, logo dos meios de subsistência, logo de dignidade. Eram supérfluos! Eram apenas consumidores de recursos, num mundo em que 90% da riqueza estava nas mãos de 10% da população. Que futuro, para estes indesejados que faziam aumentar os impostos?
As ruas enchiam-se de vasculhadores de caixotes do lixo na noite da vergonha. De cartões nas estações de metro, onde se embalavam sombras humanas. Que saída haveria para este caos? Diziam alguns demagogicamente que eram todos uns malandrões que haviam muito trabalho, mas onde estava então esse trabalho? O Estado tinha promovido algum trabalho ocupacional, eram apenas meia-dúzia de desempregados em repartições fazendo actividades sem significado. Apenas uma outra forma de humilhar gente produtiva. Era inescusável, não havia mesmo trabalho para todos!
Fora primeiro a reengenharia, depois o terrorismo, depois a luta pela produtividade. A geração de milhares de desempregados. O resultado era fazerem-se coisas, com cada vez menos gente. Havia gente a mais para o mercado de trabalho. E era insolúvel.
Foi então que os mais ricos países do mundo, decidiram juntar-se em cimeira, e apresentar através da ONU a solução do problema: A colonização da Lua! As grandes multinacionais de imediato patrocinaram a ideia,e campanhas foram realizadas de modo a convencer as pessoas da nova oportunidade! Muitos comparavam a ideia, ao movimento que ocorrera na Europa em direcção à América e que abrira para muitos oportunidades sem fim. Os Estados deram prioridade aos mais desafortunados, pagando as viagens e todo o processo de instalação dos primeiros colonos na Lua. Os pobres não desconfiaram que a esmola era grande demais!
Toda a gente parecia feliz com a ideia! Os vasculhadores de lixo, e as sombras de cartão no metro, iriam agora produzir algo de útil e sair da vista dos privilegiados. Os especialistas em colonização espacial, garantiam que a vida na Lua, era totalmente execuível, com um elevado grau de autonomia da Terra. Seria uma lua-de-mel! Os primeiros lançamentos de space-shuttles, transformados em autocarros rumo à Lua, foram transmitidos para todo o mundo em directo. Tudo parecia certo e bom, havia lágrimas de felicidade e de saudade, nos rostos dos que ficavam, e nos rostos que partiam. Assumia-se a despedida para sempre!
As mensagens de email dos colonos na Lua, as suas mensagens de vídeo, pareciam ser tão semelhantes e cheias de lugares comuns. Tudo parecia correr demasiado bem aos colonos na Lua, aumentando a apetência de todos os amargurados de alma, por essa espécie de Paraíso selenita. Lembrei-me do meu avô, que me contara uma história semelhante, de coisas que luziam, e não eram ouro.
Houvera umas crises alimentares, e carcaças de gado suspeitas de terem a chamada doença das 'vacas-loucas', tinham sido colocadas em baldes plásticos e estavam a ser queimadas nos fornos das cimenteiras. Muitos baldes, tantos baldes! Um dia, um empregado, certamente por azar, deixara cair um balde e este rebentara, deixando ver uma cabeça humana... Foi tudo adequadamente investigado, e foi transmitida a ideia de que fora um assassinato macabro. Sem mais repercussões.
Pensem o que quiserem, eu ainda vasculho os caixotes do lixo, fugindo da polícia, que tem ordens para prender e enviar para a Lua, todos os sem-abrigo ou indigentes. Hoje em dia, até os doentes mentais são enviados para a Lua, dizem que descobriram que o ambiente lunar provoca serenidade, e que descobriram lá novas drogas para tratamento psiquiátrico. Mas ninguém pergunta porque não seria mais razoável as drogas serem trazidas da Lua para a Terra, do que enviar os doentes para a Lua?
Quem esquece o passado, está condenado a repeti-lo. A história repetia-se de novo amarga e negra.

20 novembro 2003

Esbracejando


Havia um enorme espaço em branco onde se encontrava. Era tudo branco! Pensou num risco azul e quando fez um movimento com o braço, apareceu no branco um traço azul. Que raio era aquilo? Pensou num prado de relva verde e fresca e quando abriu os braços, o espaço branco encheu-se de relva! E foi assim, aos poucos que descobriu que era deus. Um imitador do grande, mas ainda assim criativo.
E esbracejou dias inteiros, criando recriando, inventando e voltando a inventar.
E todo aquele poder, não era capaz de lhe dar o que sentia falta. Estava só. Mesmo no meio de prados lindí­ssimos, mesmo entre as flores ou as aves que voavam no céu azul que ele criara. Era tudo bonito, mas sempre a fazê-lo triste. Tentou tantas vezes fazer gestos com os braços e as mãos, mas ela não apareceu! Nem tinha vindo espreitar os seus mundos todos criados na expectativa dela! Com as flores que ela gostava, a relva verde e fresca que ela gostava!
Mas aquele espaço continuava vazio. Sentia que ela estava distante, cada vez mais distante. Não queria que ela fosse embora, mas possivelmente ela andaria ocupada como ele, a esbracejar, criando o seu mundo, ou desfazendo-o.
E imaginou milhões de pessoas em espaços em branco como aquele a esbracejar. Pensando serem alguma coisa, talvez até deuses, e não passando de criaturas solitárias, esbracejando e continuando a esbracejar.

19 novembro 2003

Caminhos



Caminho pelo passadiço sem rumo. Que interessa? Haverá um rumo, mais certo que os outros rumos? Porque se um está certo, todos os outros estão necessariamente errados? E se todos estão certos haverá a noção de que pelo menos um deles não seja tão certo quantos os outros?
Ligou o rádio, para ouvir alguma coisa, na velha nave de carga. Ligou os altifalantes na zona da tripulação e ouviu o ar encher-se de acordes musicais. No vazio cósmico não há som, por isso ele metia música, para afugentar qualquer vazio. Dos mil e duzentos tripulantes da nave de carga, só ele devia estar acordado. O resto dormia um sono criogénico, até ao próximo porto. Tinha tempo para pensar. O Universo tão grande, e as interrogações continuavam a ser maiores do que ele!
Olhou os diversos écrans da ponte, que fieis desenrolavam as anomalias todas detectadas enquanto ele estivera dormir. Nada de grave. Coisas de rotina. O Universo sabe ser bem comportado e prevísivel.Desde que a humanidade saltara para o espaço este nunca deixara de surpreender, mas depois de tantas surpresas aprendera-se sempre alguma coisa. Ou talvez não...
Lembrava-se da corrida pelos planetas distantes, agora já tudo era conhecido e não havia corridas, só naves como aquelas numa rotina pacata de transportar coisas de um lado para o outro, como se o Universo fosse uma grande casa desarrumada. Andava por ali, nunca assentara e sabia de famílias que haviam nascido, casado e morrido em naves de carga como aquela. Eram em si mesmas um planeta em órbitas sempre diferentes, ou talves nem isso. Perguntou-se para quê? E voltou ao seu problema dos caminhos. Haveria algum mais certo que os outros? Ou o problema estaria mal formulado, e o importante fosse criar um caminho e não qual devia ser percorrido?
Só para se divertir decidiu expor o problema ao computador principal, com a sua unidade de inteligência artificial avançada. O computador afirmou que para um caminho ter sentido, devia ter um ponto de partida e um ponto de chegada. O percurso devia ser rápido, económico e seguro. (Não se esqueçam que era uma velha nave de carga!) E partindo destes pressuspostos, certamente haveria um caminho que seria melhor do que todos os outros. O computador desfazia as suas lucubrações filosóficas, com uma crueza lógica. Mas se na vida havia esse caminho, ele com certeza ainda o não encontrara. Continuava a vadiar no cosmos em rotas conhecidas.

18 novembro 2003

O Homem dos Milagres



Não, ele não sabia porque Deus o dotara de tal poder, de tal dom. Apenas sentira aquilo no corpo e tivera de o fazer. Talvez fosse para compensar tudo o que perdera. Ou uma coisa ao acaso, como se Deus brincasse através dele. Não sabia.
Sabia como começara, de estar no funeral da jovem criança que morrera de leucemia. Aproximou-se, sentiu uma irresistivel vontade de se aproximar. Uma coisa mais forte do que ter fome ou sede, ou até do que a vontade de urinar! Nessa altura era apenas um sem-abrigo, um vadio de barba grande e cabelos desgrenhados. Aproximou-se perante a censura geral estampada nos olhares pontiagudos como punhais que o fitavam. Mas ele estava a ir levado por uma força maior dentro dele e a dominá-lo. A mãe chorava agarrada ao corpo sem vida da criança. Familiares ou amigos tentavam segurá-la. O padre dizia a sua litania, sempre igual, como se para Deus o ritual fosse o mais importante. De repente ali estava ele na beira do caixão, a olhar a criança, cabeça rapada, olhos fechados. Estendeu a mão sobre a face e repentinamente seguraram-lhe o braço, como se o dele estendido, apenas pudesse fazer mal. Mas não fez. Quando retirou a mão, a criança abriu os olhos, no espanto geral, gemeu qualquer coisa. A mãe deu um grito de alegria:
-- Louvado seja Deus!
A multidão lançou-se em curiosidade sobre o caixão, o padre atarantado, e ele escapuliu-se silencioso. E fugiu. Fugiu o mais que pode, mas sentia a mão a arder! Tanto poder! E para quê?
Mandou rapar a barba e cortar o cabelo. E nunca mais tocou numa garrafa. Era importante que não o conhecessem!
Da segunda vez foi mais discreto, o homem estava triste numa cadeira de rodas. Não falava. Um acidente segundo soube, de moto. Paraplégico na flor da idade. Estava lúcido, consciente. Deixou que o deixessem só por um pouco e aproximou-se. Mais uma vez, a força dentro dele a impeli-lo. Sabia o que í­a acontecer e tremia. Mas viu-se a por a mão na cabeça do rapaz e a dizer:
-- Depois que eu for embora levanta-te... -- e fugiu outra vez. E o rapaz levantou-se, andou e entrou na casa á procura da famí­lia.
Já não sabia quantos milagres tinha feito! Tinha de fazer e fugir, porque senão todos quereriam segui-lo e exigiriam que ele fizesse o milagre. E se não fosse capaz perguntariam 'Porquê?' E em nome de que Deus? E não era ele que os fazia! Era apenas quando sentia aquela força a invadi-lo e obrigá-lo a fazer. Não tinhas respostas, nenhumas respostas, apenas perguntas também.
Não havia nenhum milagre para ele, a não ser o de viver. Continuava um sem-abrigo a vadiar, pedindo esmolas, e fugindo, fugindo sempre no poder de Deus.
E estava cansado de fugir. O mundo precisava de milagres, milhares deles. Mas o maior de todos, era um que lhe devolvesse de novo a dignidade.

17 novembro 2003

A Espera



Andei perdido, a tentar encontrar o amor. Sim andei no deserto sem pontos de referencia andando em círculos. Andei sequioso a encher as mãos de areia. E tu estavas lá, silênciosa na tua espera. Olhando-me embevecida, contemplando a minha ternura, amando-me por ela. As outras não a souberam apreciar como tu apreciaste. E tu nem a usufruias. Esperavas na inocência dos teus 15 anos. Amavas-me porque vias como eu amava, a ternura toda que era capaz de depositar no meu amor. Olhavas e aguardavas. Foi aí que começaste a longa espera não foi?
Lamento a minha cegueira! Uma cegueira que se perdeu à volta de mulheres belas e sofisticadas. Tu eras simples. Eu sou simples. Mas pelo desafio do difícil, amei sempre mulheres complicadas. Mas tu sabias que eu era um homem simples. Sabias que um homem simples, tarde ao cedo encontra-se e descobre que para ser feliz, tem de amar uma mulher simples. Além de simples, foste sábia. A tua sabedoria criou em ti uma fé sem nome, feita de esperança.
Sim, também eu esperei o amor de mulheres complicadas, por longo tempo. Era uma esperança estúpida, uma esperança destinada ao fracasso desde o início, que sempre fui de percorrer caminhos impossíveis. Acreditei ingenuamente que o meu querer, era capaz de ter poder e modificar o Universo. Ou como acreditam alguns, mudar as estrelas. E tu eras uma estrela, cintilante, aguardando esperançosa que eu te nota-se, desse um sinal. Mas eu olhava demasiado a negrura da noite, que me invadia a alma toda e nem dava por ti, simples, sábia e cintilante. Eu desesperava e tu esperavas, na serenidade de saber que um dia a longa espera terminaria. Quanto tempo esperaste amor?
E nem fui eu que me salvei do acaso, do vento seco que me chicoteava a pele. Não fui eu que recuperei a sanidade mental, nem tampouco me tornei sábio. Foste tu com o teu amor que me ressuscitaste de uma morte anunciada! Foi o teu amor que leu, não sei onde, em que linhas, que a minha agonia atingia a dor que é insuportável demais para se continuar vivo. E abriste a tua boca numa cura. Estendeste os teus lábios num beijo virgem e desajeitado, cheio de força. E a força da tua esperança, entregaste-ma, para que por meio dela eu vivesse ou me encontrasse. Devo-te mais do que amor, devo-te a vida. Obrigado por teres esperado. Quanto foi a tua espera?
Dez anos, não foi? Há fés que duram menos do que isso! Infelizmente continuas a esperar não é? Agora as noites são passadas nestes encontros virtuais que a tecnologia consente. E tu esperas solitária nessa cama, que eu regresse. Fala-se com todo o mundo e todo mundo fala, palavras de nada, de encontros e desencontros. Como se os nossos escritórios, as nossas salas, os quartos, qualquer lugar fosse um lugar de passagem. É como uma enorme estação, com as amizades do momento a chegarem e a partirem, ao acaso nesta gare electrónica. E tu esperas.
Esperas que mais uma vez eu compreenda a patetice de andar ao acaso na vida, e olhe outra vez o céu à noite, e descubra nele a estrela que me guia.

15 novembro 2003

O Silêncio



Não conheço nada mais cruel que o silêncio. O silêncio depois de uma pergunta. O silêncio de olhar olhos nos olhos e não haver nenhuma resposta. O silêncio da indiferença fria. O silêncio do desprezo consumado. Detesto o silêncio, todos os silêncios, mesmo o silêncio das almas tranquilas. Como dói o silêncio de uma carta sem resposta. O silêncio de uma opinião por dizer. O silêncio de quem lê e depois não diz nada. O silêncio é o epitáfio de todas as mortes.
A minha alma está num desassossego permanente, como se um ruído de fundo a agitasse em permanência. É isso que me faz falar, escrever, contar coisas! Por isso rasgo o silêncio das palvras por dizer, o silêncio do papel em branco, o silêncio do calar da dor, da esperança e da alegria. Nada sei sobre o silêncio do amor, porque talvez nem saiba do amor, que ando neste ruído à sua busca, como quem caça rapaosas. Antes de cada separação, mesmo antes de cada findar, há esse silêncio maldito e amargo a prenunciar o fim, a trazer a tristeza.
Porque não respondes quando pergunto? Porque não escreves uma simples linha em resposta às minhas cartas? Porque não me dizes se gostas, ou desgostas das coisas que escrevo?
Tenho um terrível medo do silêncio que se abate há minha volta. Faz-me sentir só, tão só.
O silêncio com me coroas, é uma coroa de espinhos e dói mais profundamente que a dor na carne.
Por isso enquanto posso labuto contra todos os silêncios que me cerram os punhos e me pesam nos ombros. Mas sinto que é em vão. É como uma doença degenerativa que nos invade e domina, e não há nada a fazer.
Também eu um dia, me cansarei de dizer coisas, escrever coisas, rasgar este silêncio mortal que nos comprime! Haverá um tempo em que o silêncio também vencerá os meus lábios, dominará as minhas mãos e inundará a minha alma.

Na minha campa podem escrever se quiserem: Finalmente em silêncio.

14 novembro 2003

A Utopia

Era estranho! Era tudo muito estranho. Mas o que não era estranho naqueles dias? Tinham prendido um indivíduo, aparentemente não houvera crime nenhum, nenhuma violação da Lei, mas... Era estranho, muito estranho. A moça tinha 18 anos e saira de casa de noite e fora para a praia, segundo os pais dela para se encontrar com ele. Ele era um indivíduo de meia-idade segundo o BI, mas não parecia ter mais de 30 anos. Segundo a moça, ele era um amigo, e tinha evitado que ela fizesse uma loucura. Estava revoltada com a atitude dos pais, e pedia-lhe desculpa a ele. Ele sorrira e tranquilizadoramente dissera-lhe: "Não faz mal. A culpa não é tua. Hei-de sempre ter-te no coração..." E levaram-no. Fiquei com pena da moça que chorou desalmadamente. Cheguei a desconfiar...Palavra que cheguei a desconfiar que seriam amantes, mas o mais estranho veio depois.
Na esquadra foi interrogado. Contou que conhecia a moça dos chats da net, que aí tinham feito amizade. Nada de novo nisto, estava farto de ouvir histórias dessas. A moça tinha-o por confidente, e um dia confessou-lhe que desapontada com o amor cogitara o suicidio. Deixar-se ir no mar, entregar-se ao esquecimento para sempre. A partir daí decidiu que havia de ficar por perto. Trocram números de telemóvel. E naquela noite recebera um, era ela chorosa, ele percebeu e foi ter com ela.
Ninguém sabe o que falaram, o que fizeram. Tanto um como outro se calam nesse respeito. Fizeram uma espécie de pacto.
A moça foi examinada por uma médica, um pouco contra sua vontade, mas espetaram-lhe a peta, que apenas se queriam certificar que estava bem... Não havia sinais de ter havido qualquer actividade sexual. Os pais haviam esperado por ela a noite quase toda e como não viesse, em pânico vieram pedir auxílio à polícia. Alguém os vira na praia e foi rápido encontrá-los. O homem não ofereceu qualquer resistência, parecia tranquilo, pacifíco. Sempre que o seu olhar encontrava o dela sorria. Ela chorosa, parecia mais tranquila quando os seus olhos se encontravam. Parecia... Rídiculo como possa parecer, parecia como se fosse pai e filha.
Mas o interrgatório do homem revelaria coisas mais surpreendentes.
-- Então está desempregado?
-- Sim, estou...
-- Há quanto tempo?
-- Desde Maio.
-- Há quanto tempo conhecia a moça?
-- Não sei bem, algumas semanas, sou mau para datas.
-- O que queria da moça?
-- Amizade. Falar um pouco... Mostrar-lhe que há razões para ter esperança no futuro.
Nesta fase o sargento riu-se e o homem perguntou:
-- Não acredita que o futuro pode ser bom?
O sargento foi apanhado de surpresa e rugiu, não estava muito habituado a responder:
-- Que é que tem o que eu acredito? Hein?
-- Pois... Por certo que não tenho nada. É uma pena!
-- É uma pena porquê? -- disse o sargento em tom ameaçador.
-- São essas atitudes, que levam moças boas como esta a querer atirar-se ao mar.
Aquilo bateu no sargento mais forte que um murro no estomâgo. O sargento tinha duas filhas e uma em breve faria 17 anos. Ficou paralisado por instantes, para digerir a força das palavras ou talvez para tomar folêgo e voltou a rugir:
-- É como as tuas, que te aproveitas da inocência delas!
-- A única coisa de que me aproveitei, foi da oportunidade de dar.
O sargento riu com cinismo. Lidara demasiado com malfeitores e criminosos para acreditar em almas boas.
-- Querem lá ver! És um um santo, o Cristo em pessoa!
-- Se o seguissem o mundo seria melhor.
-- Deixa-te de merdas! A moça teve foi sorte! Sabe-se lá o que lhe ías fazer!
-- Sargento, ela é maior. Podia fazer sexo com ela, que não era crime. Mas não fiz. E sabe que mais sargento? Se fizessemos mais amor, mais entrega, se praticassemos mais o dar este mundo seria bem melhor!
O sargento explodiu em fúria, era noite, o dia fora aterrador, estava cansado de tanto mal no mundo e queria libertar-se daquela ansiedade que o sufocava lentamente naquela salinha de interrogatório. Virou-se de repente e deu um murro na mesa para assustar o homem, mas este estendera os braços e o murro do sargento acertou-lhe na mão. O homem gemeu de dor, e a mão começou a ficar inchada e negra.
O sargento chamou de imediato alguém:
-- Depressa uma toalha com água fria...
Virou-se para o homem e disse seco:
-- Desculpe.
O homem sorriu-lhe e disse:
-- Não faz mal, sei que foi sem intenção... Aliás dentro de dois minutos já está bem...
O sargento amoleceu e com ar realmente preocupado disse:
-- Deixe-me ver...
E para espanto a mão não tinha nada, visivelmente nada!
-- Quem é você?! -- perguntou o sargento com medo da resposta.
-- Eu sou a utopia.
O homem levantou-se e saiu pela porta fechada.

13 novembro 2003

O Anjo



Sentia-se, naquele dia meio nublado, como uma gota de chuva à espera de um raio de sol.
Sentara-se na mesa do café, e sem saber bem porquê viu-se a lembrar emails que lhe enviavam sobre os anjos. A maior parte era apenas lixo piegas a entupir-lhe a caixa. Outras eram correntes de emails a darem a volta ao mundo, prometendo a quem não quebra-se a cadeia, felicidade sob as mais diversas formas. Sorriu, o que nela era raro, na angustia de ver passar os dias e sentir-se mal-amada. Queria tanto um amor daqueles de virar uma vida do avesso, um vendaval de paixão e alegria. Começou a pensar que os anjos eram só nos emails e que o bom Deus devias estar demasiado ocupado com os males do mundo que cada vez eram mais, para ter tempo de se preocupar com o seu drama pessoal e secreto. Olhou o reflexo de si mesma no tampo brilhante da mesa de café e afastou o olhar. Sentia-se o patinho feio, e achava que nunca passaria disso mesmo.. Levantou os olhos para fugir de si mesma, e dos pensamentos amargos que a assaltavam. E foi nesse olhar fugidio que bateu com o olhar no sujeito em frente a si. Nem dera conta que alguém se sentara na mesa ao lado, mas ali estava ele. E quando os seus olhos se encontraram, ele sorriu.
Era um sujeito de meia-idade, elegante, sorriso largo, umas entradas generosas. E quando falou, a voz era suave, calorosa e agradável:
-- A menina desculpe, mas talvez me pudesse dar uma informação...
Ela não queria conversa, nenhuma conversa, mas sorriu sem saber muito bem porquê:
-- Se puder ajudar...
-- Acho que pode, -- disse o sujeito, sem deixar de sorrir, e tinha uns olhos de um castanho profundo e expressivos -- será que me podia dizer onde é a Rua da Felicidade?
Ela deu uma gargalhada, tão expontânea, que pôs a mão na boca e encolheu-se de vergonha ao ver que todos tinham olhado para ela! O sujeito riu mas mais baixo, e disse:
-- Já estou a ver não acredita que tal rua exista! É sempre a mesma coisa... Mas se houvesse o que acha que encontrarí­amos lá?
Ela percebeu que talvez o sujeito não quisesse saber rua nenhuma, e apenas fosse uma nova forma de engate. E sentiu-se desejada, cobiçada, e isso encheu-lhe o peito. Pena que o homem fosse de meia-idade apesar de simpático! Mas estava curiosa e continuou no jogo:
-- Pessoas.
-- Não deví­amos encontrar muitas, pelo qu ese vê hoje em dia. -- disse perdendo o sorriso.
Ela mergulhou nos seus pensamentos e também o brilho que havia nos seus olhos se esbateu.
-- Acredita na felicidade? - perguntou o sujeito com um novo sorriso.
Ela decidiu jogar à defesa:
-- E o senhor, acredita?
-- Chamo-me António... -- disse ele -- Pode tratar-me por tu. A diferença de idades é uma convenção. Um dia todos teremos a mesma idade...
-- Como assim?
Ele sorriu, mas não respondeu.
-- A felicidade não é tropeçar numa lâmpada e sair de lá um génio. Não tem que ver com a sorte. Tem que ver com decisões. O que somos é resultado de todas as decisões que tomamos, e quanto a isso, nada podemos fazer agora. Mas podemos tomar decisões agora que determinem o que queremos ser amanhã.
-- Acredita nisso? Não acha que pra tudo é preciso, sei lá... alguma sorte, uma boa estrela, não sei!
Ele sorriu de uma forma simpática, compreensiva. Não aquele sujeito não andava no engate, talvez lhe quisesse pregar um sermão! A ideia encheu-a de terror. Mas o sujeito calara-se e olhava para ela, sorrindo.
Ela riu-se:
-- O senhor é feliz?
-- Sou.
A resposta afirmativa, segura, tranquila, fê-la olhar longamente o homem. Tão longamente, que os seus olhos tiveram tempo de ficar húmidos. Ela não se sentia feliz, achava que nunca iria ser realmente feliz.
O sujeito, disse-lhe meigamente, quase num sussurro:
-- Tu também vais ser, mas precisas de acreditar nisso!
Nem reparou que ela o tratava por tu, sorriu-lhe apenas e não disse nada. O homem levantou-se, e já de pé disse-lhe:
-- Fica aí­ mais um pouco. Eu tenho de ir, e pago-te o café. Faço questão. Mas não esqueças nunca, precisas de fazer a tua parte Além disso hoje, o bom Deus quer dar-te um presente...
Ela ficou embasbacada com as afirmações e nem sequer conseguiu esboçar um protesto ou fazer uma pergunta. O sujeito pagou no balcão, voltou a olhar para ela, sorrir, fazer um aceno e sair. E quando ele saiu, entrou ele e olhou para ela, fazendo o seu coração pular. Ele viu-a e dirigiu-se à mesa dela:
-- Posso sentar-me aqui contigo, se não te importas?
E o sol rompeu, e na gota de chuva fez um arco-íris!

12 novembro 2003

Sem jeito



Lamento! Palavra que lamento este vazio no peito, que se vai enchendo de raiva e de dor. Sinto que a minha vida é como a fumaça que sai deste cigarro...
Sei que nem tudo foi mau. Nada há nesta vida 100% mau nem 100% bom. E sei que em toda a separação a culpa é dos dois. Desculpa a amargura e a revolta. Não mereces isso, porque contigo ainda fui feliz. Mas é este sentir que acabou, que doi demais e me coloca nas palavras uma raiva que não consigo travar.
Penso que é o sentir a vida meio sem sentido, como construir uma torre, para quando a julgava acabada, vê-la desmoronar. É semelhante à angústia que fica em quem perde tudo num fogo. Ficam as recordações, e mesmo essas sabemos que a memória um dia acabará por esquecer.
Porque tem a vida que ter toneladas de vento que procuramos ensacar sem nunca conseguir?
Dizes-me o porquê das coisas, ou nem tu sabes, tal como eu? Somos formiguinhas labutando atarefadas nas nossas vidas sem dimensão de futuro. É só presente! E este presente é cruel e amargo. Talvez seja por isso que gosto tanto do meu filho, ele é a única dimensão do futuro que me resta.
Gostava de dizer-te que a culpa também foi minha. Talvez devesse ser mais resignada, mais sujeita. Talvez devesse ter-me mantida quieta nalgum canto, brincando com as amigas em conversas de circunstância, limitado os meus sonhos, os meus desejos, as minhas expectativas. Com o que queres? Sou uma filha do vento, e parto em cada novo dia à descoberta de mim e do mundo. Sou também uma filha do mar, porque posso ser salgada e violenta como uma onda, na energia que o vento me confere. Desculpa eu ser como sou, mas é a minha natureza...
Se ao menos gostasses da espuma que crio quando tal como a onda rebento de encontra a falésia! Se a agarrasses nas tuas mãos e deixasses que o vento ta tirasse, saberia que havia ainda alguma esperança. Mas limitaste a deixar as mãos no bolsos, como um proletário cansado em final do dia. Esperei por ti, fumando cigarros atrás de cigarros num nervosismo doentio. Sei que tu me amas, mas gostava que mo dissesses. De qualquer jeito, de qualquer forma...

11 novembro 2003

O Cardo

A onda desfaz-se na base da falésia como os sonhos de encontra a realidade. Amei-te. Juro que te amei com todas as minhas forças, ou mais do que isso que te amei até me sentir esgotada, completamente esgotada. Mas que foi isso para ti? Tu eras rocha dura. E que te apoquentava que igual à onda viesse vez após vez declarar-te o meu amor? Não me respondes? És mesmo um calhau com olhos, porque não tens boca. E quando falas, É como se destapassem uma fossa, e o que mais ficamos a desejar É que a tapem; que te cales! Estou cansada demais para suportar a agonia do teu silêncio, que cobre os dias como um sufocador manto pesado. Não partilhas nada. Como se eu não fizesse parte da tua vida. Ainda pior: Escutas com os olhos ausentes em qualquer garrafa de cerveja. Ouves-me como quem escuta o ladrar impaciente dos cães, e com o mesmo jeito mandas-me calar. Mas que calhau com olhos És tu, para me mandar calar? Estou farta do teu ar de macho a despropósito. És apenas um garoto que cresceu demais. Mas nem És um garoto que valha a pena. És daqueles que apenas vive, porque está vivo. Que vida É a tua? Que raio queres fazer com ela? Pari um filho para ti. Honra te seja feita: É a única coisa que fizeste de jeito! E mesmo isso lamento dizê-lo, se deve a mim! Sim a mim, minha besta quadrada! Porque sem a minha colaboração, tenho a certeza que nem isso serias capaz de fazer de jeito! Olha, não fiques muito convencido, És um fraco amante: Possuis-me como quem cumpre um ritual. Mas fazê-lo com o requinte do homem pré-histórico. Quantas vezes te pedi, que queria que me beijasses, dissesses palavras bonitas no meu ouvido? Mas tu És de atar e por ao fumeiro! Cinco minutos depois já estavas a roncar! Que sabes tu de amor? És um animal, mas acho que um cão faria melhor do que tu, ao menos saberia lamber! Ficas admirado que esteja farta de ti? Como consegues ficar espantado com alguma coisa? Quebra-te o devir cíclico e remançoso do passar dos dias? Quebra-te a alegre monotonia de sair de casa e voltar, sabendo que estou á tua espera, que cuidei de tudo o que tu devias cuidar, e que te causa enfado? Amei-te! Amei-te perdidamente, mesmo quando me apeteceu amar outro homem. Sempre fui fiel no corpo, que -- Deus me perdoe! -- em pensamento já te encornei milhares de vezes! Ficas fechado como um búzio ameaçado que se esconde dentro da concha. Podias ser tímido, despretensioso, talvez até mesmo um homem reservado. Mas bolas, eu sou a tua esposa! Uma só carne, não ouviste isso no dia do casamento? Era suposto partilhar mais do que apenas a cama, ou a casa! Deví­amos partilhar a vida! Mas tu És apenas um calhau com olhos. Um lamentável calhau com olhos, que nem sequer vês o que tens! O valor do que tens, e que perdes. Só tu sais a perder. Nem quando te falei da minha decisão de te deixar, te tremeu a mão, ao menos para segurar a minha e dizer: Desculpa! Aceitaste, não por resignação, mas por comodismo, como se lutar por mim, pelo teu filho, fosse constrangedor demais para a pacatez da tua existência que se quer tranquila e remançosa. Quando vais acordar? Talvez acordes agora, mas vai ser tarde. Começo a olhar-te e a sentir nojo. Porque não fizeste qualquer esforço para salvar o barco naufragante do nosso casamento. Metia água, e subias á ponte, daí ­não vias a água a entrar. Não fizeste nada, entendes? Acho que se te sentasses em cima de um cardo, preferias tomar aspirinas por causa da dor, do que levantares-te e arrancares os malditos espinhos do cu! Eu calava-me, numa expressão do meu descontentamento e saías e ias lamentar com os teus pais, ou os teus amigos! Mas nunca comigo! Porquê? Não consigo entender e por isso vou embora. Tenho de sair da tua vida, antes que a minha se torne igual à tua, empedernida de sensibilidade, vazia, monótona, sem objectivo ou meta. Até as dí­vidas deixas agora para mim! Como um garoto, a fugir das responsabilidades. Desculpa! Mas para filho, já basta o que me fizeste! Deixo-te sentado em cima do cardo! Passa bem...

A Feiticeira



Sim, tenho de admitir: Eu estava completamente preso a ti! Submisso, como um cão fiel e bem treinado. Um estalar de dedos teu, e aí­ estava eu a abanar a cauda com o olhar atento pronto a qualquer coisa! AtÉ me brilhavam os olhos de contentamento. Agora sei, que a ti nunca te brilham os olhos de contente, É apenas de pura malícia. O meu amor não te dizia nada, era apenas uma manifestação do teu poder sobre mim. És como as bruxas das histórias infantis, disfarçaste-te de boa, e atÉ pareces. (Oh! Sim eras mesmo boa, tudo em ti estava no lugar perfeito, atÉ as pequenas falhas!) Nunca me passaria sequer pela cabeça deixar-te!
Mas agora olho as tuas fotos, aquelas em que estavamos com os nossos amigos. Hoje sinto-me tão só. Nada há de mais triste que um cão só.
Pensei que fosse o teu prí­ncipe, mas acho que para ti, nunca passei de sapo! E por pouco quase me esborrachavas! Felizmente os teus feitiços acabaram, quando te vi nos braços dele. Dantes pensava que era feio, mas ao vê-lo percebi que feia eras tu! Não por fora, mas por dentro, negra como alguÉm sem alma. A tua deves tê-la vendido ao Diabo, que te parece possuir o corpo!
E senti que ainda era capaz de perdoar, mas não era perdão o que tu querias! Muito menos o meu, se precisasses dele, era admitir que precisavas de mim. E tu nunca precisaste, pois não?
Não dessa maneira. Precisavas de mim como um cão, não como pessoa. Os cães não perdoam!
Agora vejo-te como És, como realmente És: Se foste feiticeira, agora És definitivamente uma bruxa!

08 novembro 2003

Um par de botas



Eram amigos. Sempre foram desde que se lembravam. A amizade começara na sua infância e nem mesmo as namoradas ou mais tarde o casamento e respectivas caras-metade lhe diminuira a amizade. Envelheceram e viram netos.
Agora o António estava doente em casa. A maior parte das vezes por cisma, o António tinha medo de morrer e ganhara nesse medo a mania das doenças. Á mais leve das constipações, embrulhava-se todo, parecia um texugo ou refugiava-se na cama. O desgraçado nem percebia que iria passar muito tempo deitado!
O Manuel pelo contrário era activo, enrijecera a apanhar chuva nas costas e sol na face. O tempo divertira-se a abrir-lhe sulcos profundos. Mas andava rijo na sua mania e persistência de que ser agricultor era uma honra! Era um orgulho antigo, que ficara como resquicio das velhas casas grandes de lavoura. Mas era acima de tudo um martí­rio.
Mais uma vez o António ficara de cama, ás primeiras chuvas de Novembro, que trouxeram também o frio. E o Manuel tinha andado a preparar as suas pequenas coisas de lavrador. Tirar estrume para as próximas sementeiras, podar, limpar. Sinal da sua labuta eram as galochas sujas de lama. O Manuel sofria de pés frios, mas com as meias grossas e o movimento naquelas botas fechadas os pés aqueciam-se-lhe e sentia-se confortável!
Decidiu ir visitar o amigo. Depois do trabalho sairia da propriedade do passal que ficava em caminho à casa do António.
Bateu à porta, a esposa do António veio atender, ele perguntou por ele. "Posso vê-lo?"
A mulher do António disse que sim, pois então! O que não esperava é que o Manuel entrasse pela casa de botas sujas de lama, como se não houvesse problema!
E quando ele entrou, censurou: "Manuel, então tu vais entrar de botas sujas por aqui dentro? Olha que ando cansadinha de limpar..."
O Manuel chateado virou costas e foi-se embora.
Encontraram-se muitos dias depois, a tomarem um copo na adega do Manuel:
-- A tua mulher é uma fanática pela limpeza António.
O António sem perceber muito bem comentou:
-- SIm, tive sorte Manuel, honra lhe seja feita, casei com uma mulher asseada.
-- Lá asseada deve ser... -- resmordeu o Maneul -- Mas não me deixar visitar-te quando estiveste doente, aqui à dias, por causa de querer ter a casa limpa, é que acho que é demais!
O António ficou atónito:
-- Não te deixou visitar-me? Pois decerto Manuel! Lembro-me de ela me contar! Tu í­as com as botas borradas de lama!
-- A tua mulher é uma exagerada António... as botas estavam quase limpinhas! E porra António, vinha de trabalhar!
O António começou a ficar chateado, e o vinho que estava a provar, pareceu-lhe um bocadinho azedo:
-- Oh! Manuel fracamente pá! O teu trabalho é mais importante que o da minha mulher, que é manter a casa limpa?
O Manuel ficou agastado:
-- Olha, donde vem tudo? Não é da terra? Ela que limpe, a ver se a limpeza lhe mata a fome!
O António subiu de tom:
-- Estás a armar em parvo Manuel? Não cuides tu da limpeza e vê lá se não ficas doente!
-- Lá estás tu outra vez, mais a tua mania das doenças! A comida nasce da porcaria! Vê as batatas, se não lhe pões estrume não crescem!
O António ficou apoplético:
-- Com a mania das doenças? Mas tu estás dizer que eu não sou doente, que tenho é mania?!!
O António pousou o copo com força em cima da mesa na adega, e saiu fulo sem sequer dizer mais palavra.
Foi a primeira, a única e a última zanga entre os dois amigos. Uma bela amizade que se desfez, por um par de botas enlameadas.

07 novembro 2003

Esquecido



Por entre as brumas do tempo, alguma coisa se dilui. É como a água que cai no guache ainda húmido e desliza construindo outros caminhos que distorcem os que lá estavam. Sei de um tempo onde as coisas tinham outras cores. Eram mais suaves e as águas eram mais cristalinas. Agora são só águas turvas.
As relações entre as pessoas alterararm-se, diluem-se. Os caminhos já não são suaves, há demasiados sobressaltos, meias-tintas ou então cores carregadas. Não se percebe muito bem o que ao certo as une. Talvez a incerteza e agora é sempre com medo que há entrega.
As coisas belas são sempre simples, por isso este mundo é tão feio. Será que ainda sabemos dizer: 'Amo-te!'?
Há um tempo em que lembro que dizer 'Amo-te' queimava os lábios e fazia o coração pular mais rápido. Hoje 'amo-te' é um adereço, na mesma categoria do baton ou do rimel.©Até mesmo a lingerie se tornou mais importante. 'Amo-te' deixou de ser simples.
E agora os amores eternos são os amores que já morreram.
Olho esta tua fotografia de há muitos dias. De então para cá as cores diluiram-se. Na vida carregaram em tons mais intensos, pesados. Alguma coisa chega ao fim e simplesmente tem de ir embora. Tenho medo do futuro. Medo porque nada mais é simples, e dizer-te 'Amo-te' estremece-me o peito e faz doer. Os teus adereços espalham-se na minha memória, e o que era substancial, deixa-me vazio. Um oco no peito que nada consegue preencher. Não compreendo porque tens de partir. Não quero compreender...
É como a memória ténue das coisas que não esquecemos ainda por completo. Sabemos que deví­amos recordar algo, mas falta-nos esse algo. É só uma sensação de ter havido alguma coisa. Talvez uma flor, ou uma taça de champagne nalgum dia especial. Talvez fosse um brilho no teu olhar...
Não sei, não consigo mesmo lembrar das coisas boas que houve entre nós. Elas apenas tornam mais dolorosa esta partida. Diz a velha máxima: 'No amor não há temor.'
Tenho tanto temor! Acho que devo ter esquecido alguma coisa...

06 novembro 2003

O Barco à Vela



Sou um apaixonado pelo mar! E sempre sonhei em um dia ter o meu barco. É verdade que sonho muito, e que tenho tido muitos sonhos. Infelizmente é raro vê-los tomarem forma, creio que é por isso que a estes desejos impossí­veis costumamos chamar sonhos. Mas meus amigos, quando vocês dão de caras com os vossos sonhos, é quando realmente o drama começa.
Conheci a mulher da minha vida numas férias no Algarve ao olhar os veleiros na marina. Conversamos, tentamos, mas sabia que era um sonho. Não por causa dela, mas por minha causa. Sem fortuna pessoal, sem beleza particular, sem sequer aquela lábia que é própria dos que nada mais têm. Nada. O mais completo nada, a não ser sensibilidade, bom gosto, simplicidade.
Sou daqueles homens que podem ser amigos de toda a mulher, mas nunca serão amantes. É uma espécie de sina, ou melhor, de maldição.
Creio que é por isso que gostava de ter um barco à vela, para me tornar navegante solitário e ir ao acaso por aí­, afastando-me de todos os portos para não ter tentações de procurar mulher. Dizem que os marinheiros têm uma em cada porto, mas eu só podia arranjar uma mágoa em cada porto!
E se tivesse um veleiro, não era para os mares tranquilos que rumaria. Se fosse para aquelas ilhas tipo paraíso, corria sempre o risco de encontrar uma Eva e de descobrir que não me chamava Adão. Não, iria antes ao encontro de todas as tempestades e desejaria desafiar o vento e o mar, na minha insignificância, neste drama de apenas ser amigo!
Quem sabe talvez as tempestades e os ventos e as marés, ficassem meus amigos também!
É significativo ser um barco à vela. Porque toda a minha vida vai de vela! Empurrada pelos ventos que não domino. O que se torna pesado são os sonhos que ainda transporto e que gostava de lançar borda fora, como Âncora. Não para que me segurassem na vontade de partir, mas para cairem até ao fundo, onde me esquecesse deles de uma vez!
Não tem problema andar à deriva no mar, não há nenhum porto que queiramos alcançar! Assim são os sonhos que transportamos e que têm apenas o condão de nos querer afogar! Afogar em lágrimas ou no mar, é quase igual, salgado em ambos.
Deixem-me partir. Cansado vou no vento, para onde o vento me levar.
Vai tudo à vela... No barco à vela...

05 novembro 2003

O Circo



O dia estava a começar bem! Dizem que nós os adolescentes andamos na idade parva, pois então estou convencido que a minha família continua na adolescência e há poucas prespectivas de que cresça. Bem, em tamanho ela é suficientemente grande: Tenho uma irmã mais velha, boa como o milho. Aliás impõe-se aqui um parêntesis: Ela é tão boa, tão boa, que quando vai tomar banho aproveito para ir espreitar no buraco da fechadura e entregar-me ao onanismo! (Apanhei um carolo por causa dessa palavra, porque dantes usava outra!) Depois venho eu (o adolescente de serviço) e depois os meus manos mais novos que são gémeos e são bébés. Vivemos num T3, a minha irmã tem direito a um quarto só para ela (que pena!), e os meus pais dormem no outro quarto. Os gémeos parecem destinados a fazer desaparecer o escritório do pai. Felizmente a minha irmã já namora, pelo que quando os gémeos forem putos, eu em principio devo ter um quarto só pra mim. isto se a minha irmã casar, e se pirar daqui! Ela namorar já namora. O sacana é um sortido! Só de pensar nas mamas da minha irmã, começo logo a sentir cá um calor! Mas é o entusiasmo juvenil, desculpem. Estava a dizer que o dia até começou bem, o meu pai que é um distraído, esqueceu-se do leite no fogão e veio fora, a minha irmã fez uma birra porque já estava atrasada pra escola e a minha mãe tava a dar de mamar aos gémeos e ela é que tinha de limpar. Depois enquanto um gémeo mamava o outro reclamava! Há uma coisa que me preocupa: É como a minha mãe consegue ter leite para os dois! Pois ela dá as duas mamas a cada um deles. É certo que um deles há-de ficar com fome! Pelo menos a julgar pelos berros. Mas enfim, acho que é a lei da natureza! Uma vez vi num documentário que as crias de certas aves, expulsam os irmãos mandando-os do ninho abaixo para terem mais hipoteses de sobrevivência. Humm... Cá pra mim, um dos gémeos é um homicida em potencial.
Depois a minha irmã com a birra limpou o fogão e atirou com o fervedor para cima da banca, para azar bateu no escorredouro da loiça e o resultado é que caiu tudo, o que me deu um ataque de riso! A minha irmã danada deu-me um tabefe e eu dei-lhe outro (mas aproveitei foi pra lhe apalpar as mamas)! Os gémeos com o barulho desataram numa berraria, a minha mãe passou-se veio á cozinha e deu-me com a colher de pau, a minha irmã safou-se para o quarto e depois pirou-se pra escola! Isto de ser novo tem que se lhe diga!
A minha mãe ainda deixou uma ameaça no ar:
-- O vosso avô chega hoje! E vejam voces como se portam?!! Não têm vergonha?
Para ser sincero eu até tenho, mas é mais forte do que eu! Não resisto a bom par de mamas.
Fui prá escola e quando voltei a casa parecia mais bagunçada ainda do que nunca. O meu pai esbracejava e dizia palavrões com a minha mãe atrás dele a mandá-lo calar-se, que tava a dar um lindo exemplo aos filhos. Não sei porque ela se preocupa tanto, a primeira coisa que se aprende na escola são os palavrões! E os gémeos são pequeninos demais para perceber, e a minha irmã ainda não tinha chegado. Depois percebi a arrelia do meu pai: As Finanças estavam a pedir-lhe uns papéis e ele como é organizado como eu, não sabia onde os tinha posto!
Então fez-me andar a ajudá-lo, coisa que eu fiz rapidamente no meu quarto, não fosse ele descobrir a minha colecção secreta de revistas eróticas! Isto de ser adolescente tem que se lhe diga! A vida é muito perigosa, é por isso que quando for grande quero ser agente secreto. Já ando a treinar! Aliás procurar documentos, mesmo que fossem os do meu pai, era um bom treino. Mas foi um fracasso, não consegui encontrar o raio dos papéis. Possivelmente ele tinha-os posto no lixo.
A minha mãe tava a fazer o almoço, mas como quis ajudar o meu pai, e os gémeos começaram outra vez na sua berraria em estereo, a minha mãe distraiu-se e deixou queimar o arroz. A minha irmã ainda não tinha chegado!
O meu pai ficou ainda mais irritado, porque estava quase na hora de voltar ao trabalho e estava diante da prespectiva de ter de ir sem comer! Para além do mais os gémeos provavam que não sofriam dos pulmões berrando a bom berrar!
Entretanto bateram à porta, e a minha mãe mandou-me ir ver quem era.
Abri a porta e era o avô com um grande sorriso. Sorri também, afinal ele era um avô baril e costumava dar-me dinheiro sempre que nos visitava.
Disse eu, abrindo a porta e fazendo-lhe uma vénia:
-- Bem-vindo ao circo avô!

04 novembro 2003

Nenhuma dor



Meu amor, como pode a noite suportar a tua tristeza? Como podem ainda as estrelas cintilar, se os teus olhos humedecidos estão tristes? Como me doi estar ausente, eu que queria ser o teu travesseiro, ou a água do teu banho! Eu que queria percorrer o teu corpo em mil carícias e ainda ficar sedento!
Mas hoje, sobre a minha cabeça há uma nuvem cinzenta.
Nos meus braços reina uma impotência de estar longe, ser tão pouco. E era com estes braços que te queria proteger, envolver, como se eu fosse o casulo e tu a borboleta a crescer dentro dele. E que num raio de sol rompesses as amarras que te prendem e voasses em direcção à luz! E que me cegasses para sempre nesse deslumbramento.
Calem-se os poetas, que o meu amor chora, e eu choro com ele. Como se me tivesse transformado em mar, e o salgado fosse das minhas lágrimas. E espumo enraivecido, como o mar que apesar de forte, tem os seus limites e não pode engolir a terra inteira. Bato nessa falésia que me impede de chegar a ti, que és terra, e que és fecunda. Sou apenas salgado e me debato, nos limites da minha força.
Se mais não posso, seja eu cor de prata, ou de ouro, ou de vermelho vivo, quando o Sol no seu corropio se afogar em mim e a noite vier. Mas que venha sem dor, sem nenhuma dor...

03 novembro 2003

ORGASMOTRON



(Entrevista com o inventor!)

-- Prof. Nero, é um prazer tê-lo entre nós, aliás acho que perante a sua invenção, 'prazer' adquire mesmo outra dimensão! Prof. Nero, para quem ainda não tenha ouvido falar o que em termos de leigo esta máquina que inventou?
--Em primeiro lugar devo dizer que máquina será talvez mal aplicado. Trata-se de um dispositivo interactivo cuja funcionalidade é produzir nos humanos a sensação de um orgasmo...
--Ouviram bem? A máquina... Perdão, o dispositivo produz orgasmos! Mas como faz isso professor?
--Bem, os meus estudos e não apenas os meus, revelam que o sucesso de qualquer relação sexual depende em grande parte do estímulo visual, portanto basta alimentar o dispositivo com imagens que correspondam ao pareceiro desejado e o dispositivo converte isso em ondas cerebrais que são transmitidas directamente ao cérebro do utilizador por meio deste capacete aqui.
--Quer dizer professor, que se eu quiser fazer sexo por exemplo com a Pamela, basta meter aí fotos da Pamela?!
--Exactamente, quanto mais fotos melhor e devo dizer que convém que coloque imagens da área genital... Sem imagens nada feito!
--Quer dizer que os sites de pornografia vão fazer o sucesso da sua máquina professor!
--Bem, pode por imagens da sua namorada ou da sua esposa, o que lá mete é consigo.
--Muito bem professor e isso funciona com qualquer pessoa?
--Nos estudos que já realizamos, funcionou com todas as pessoas independentemente da sua orientação sexual, fantasias, etc. O cérebro é que é o verdadeiro orgão sexual humano. O desejo nasce na mente, não na área genital. Se me permite...
--Sim, sim professor diga...
--Acho que este dispositivo será útil na luta contra a SIDA e qualquer outra doença vénerea. Como vê não há qualquer contacto físico...
--Mas Dr. Nero, a 'coisa real' não será melhor do que isso?
--Fizemos vários estudos e quem experimentou, diz que isto é de longe, muito melhor do que o que chama 'coisa real'! E mesmo pessoas com disfunções sexuais e até mesmo pervertidos, como o caso dos pedófilos, acharão muito útil este dispositivo, sendo que as crianças passarão a estar muito mais seguras! Mesmo impotentes podem sentir o tão desejado orgasmo com que sempre sonharam. E já descobrimos que com este dispositivo não há nenhuma mulher frígida. O sexo passa a ser uma experiencia perfeitamente agradável, segura, completamente desinibida, completamente livre. Neste dispositivo pode experimentar tudo o que lhe apetecer, sem qualquer perigo!
--Mas se é como diz Dr. Nero, nem haverá necessidade de casar, ou ter namorada! Basta arranjar umas fotos e pimba!
--Sim, é como diz...
--E não acha que isso acabará com muitos casamentos?
--Pois... Mas o casamento já está em crise, hoje em dia ocorrem mais divórcios do que casamentos! Mas eu até acho que poderá salvar alguns. Agora deixa de haver razão para divórcios com base em incompatibilidades sexuais, entende? Aliás acho que o Orgasmotron será mesmo um dispositivo que terá a a compreensão da igreja católica: Com o Orgasmotron, as relações sexuais serão apenas necessárias para a reprodução.
--Obrigado prof. Nero pelo sua presença! Foi mais uma rúbrica do programa 'Admirável Mundo Novo', hoje com o Orgasmotron, o dispositivo capaz de produzir orgasmos... Nós vamos experimentar e no próximo programa dir-lhe-emos se está à altura do que promete! E se estiver... Desculpe o trocadilho Professor Nero, mas o seu dispositivo vai 'inceeeendiaaaaar' o mundo!

A Cura



Podia andar às voltas vezes sem fim, andaria sempre à volta da mesma coisa. De futuro, que o presente é em cada instante. Arrastava o seu corpo, não porque lhe pesasse, mas porque não tinha, ou sentia que não tinha. Faltava sempre alguma coisa, como se ao puzzle faltasse uma peça. Depois pensava ter descoberto, e ainda não era aquela que encaixava. O que restava era sempre aquela sensação de frustração, de estar quase lá, e ainda não estar por completo.
Estava doente, mas não era nada físico. Também não era nenhuma paranoia. Era apenas um desassossego de existir. Uma sede de qualquer coisa, em lugar nenhum. Uma sede que nenhuma bebida saciaria. Uma fome que não era por comida.
O que seria?
Andaria o que fosse preciso. Continuaria a percorrer o mundo da sua cabeça, tentaria alterar o que pudesse, e já tinha tentado. Oh! Como tinha tentado... Fora em vão. Aquele vazio enchia-o a pouco e pouco, preenchendo de nada a sua alma, que se esvaziava lentamente, tornando-lhe mortiços o escuros olhos castanhos.
O cabelo caia e esbranquiçava, sem qualquer importancia. Diziam-lhe que estava mais charmoso, e nessas alturas aumentava-lhe o vazio, e ele não sabia porquê!
Quando em pequeno sonhara ser um viajante das estrelas, mas ficara agarrado ao chão, ao pó. Como se este o reclamasse como presa sua. Viajava em histórias e na imaginação delirante, que também ela aos poucos ficava vazia. Restavam-lhe as palavras para esconjurar o malefício. E nelas desnudava a alma, com o mesmo pudor com que uma virgem inocente se despe para tomar banho. Sem qualquer ponta de maldade, nem narcisismo; como se a beleza a existir, estivesse sempre estado ali, latente, pronta a manifestar-se como a crisálida que dá à luz uma borboleta.
Doiam-lhe os dedos de escrever, não porque fosse muito o que escrevia, mas porque estava numa permanente tensão, entre o seu estado de alma, e as palavras que regurgitava. Sentia que era uma doença, porque lhe tremia o corpo, e às vezes furtivamente lhe vinha uma lágrima, numa dor surda.
Estava a ficar surdo e cego, como se o seu corpo o quisesse poupar ao tormento de existir. E ele amava a vida... Sem saber muito bem porquê. Era como todos os amores, ama-se e basta!
E bastava-lhe escrever e reler, para que a alma sossegasse, como se tivesse esvaziado mais um pouco.
Para aquela doença, se não era o seu remédio, escrever era definitivamente a sua cura.

02 novembro 2003

CARTA DE AMOR


Amor,

Escrevo nesta agonia de saber que a vida é sempre a perder. Não lhe importa quanto te ame, quanto te deseje. Não importa que os teus lábios tenham o sabor de morangos ou o teu cabelo me lembre o perfume do campo na Primavera.
Não somos eternos e um dia um dos dois perderá o outro.
Por isso deves perceber a minha ânsia de hoje. O valor de cada instante, de cada momento.
Por isso tens de perceber como te guardo no meu peito no medo de que fujas ou me deixes.
Se posso desejar alguma coisa é que o tempo páre quando estamos juntos. Porque nesse instante tenho tudo e sou completo.
Sei que não podes entender. O meu amor por ti, até a mim me parece incompreensível.
Não entendo por que choro, e contudo dizes que me amas.
Fico inquieto, mesmo tu dizendo-me que nunca te perderei.
Mas o meu coração é doido e talvez ele saiba coisas que eu não sei, e por isso mesmo ando confuso.
Não que não saiba o que quero: Quero-te a ti! Talvez do que não tenha a certeza é se me queres a mim.
Contudo, decidas tu o que decidires, seja qual for o rumo que a tua vida tome, terás de sabê-lo: Eu amo-te!
Amo-te como sei, amo-te mais do que posso, porque o meu coração cresceu e doi-me tê-lo encerrado no peito.
Escuta-o, e escuta o teu, sem os medos habituais. Escuta-o como se eu e tu fossemos eternos e o tempo fosse para gastar até à exaustão. Escuta-o como se fossemos jovens para sempre, para que a força não lhe diminua.
Sim é ridículo um homem apaixonado. Sim é patético o amor. Mas não me importo de ser ridículo nem patético, pois sei que sou sincero. Que nunca fui tão verdadeiro quanto o sou, quando te declaro o meu amor.
Pensas que durará apenas um instante? Mesmo que fosse, seria um bom instante e queria oferecer-to!
Não tenho mais para oferecer de que a mim próprio. Com as minhas virtudes e os meus defeitos.
Mas sinto que me d´s força para ser um homem melhor! Será o teu amor? Tenho de acreditar nisso, quero acreditar nisso.
Por isso, sinto-me grato e queria pagar essa dívida. Como? Amando-te. Saberei aguardar. Dá-me uma oportunidade,

Do teu

01 novembro 2003

SOLIDÃO



O Robot 718 tentava cortar atabalhoadamente a relva. Era óbvio que o 718 nunca fora concebido de raiz para cortar a relva! E a sua unidade de IA (inteligência artificial) tentava o melhor que podia desincumbir-se da tarefa. Se Ema pudesse ver agora o seu jardim! O jardim no qual gastara todo o seu imenso tempo livre. Ele nunca percebera nada de begónias, nem de tulipas e sempre considerara as roseiras uma espécie de silvas que dáo flores bonitas. Sentia falta da sua Ema!
Agora havia um enorme jardim mal cuidado em frente da casa com uma relva mal aparada, remendada como a vida.
Sputnik o planeta habitável à volta da estrela NCS1054, era o seu lar, um lar imenso, esquecido das rotas comerciais, e onde só as naves do Império passavam para cobrar impostos, levar uma ou outra mercadoria necessária e recolher um ou outro mineral, ou planta que justificasse o desvio. Em tempos Sputnik fora mais importante. A sua produção mineral de gemas semi-preciosas fizera dele um eldorado para todos os desejosos de enriquecer rapidamente. Mas as gemas esgotaram-se depressa, levando consigo os ganaciosos. Deixaram o planeta todo para ele e para a sua Ema. Ele fizera da joalharia a sua arte, e Ema dedicara-se às plantas. A sua arte ainda era apreciada, e continuava a ter Clientes, mas cada vez em menor número. Os robots cuidavam da horta, dos animais, da manutenção e da extracção das gemas. Era tudo automático, igual à sucessão dos dias.
Depois da morte de Ema engordara, desleixara o trabalho. Sentia um impreterível apelo pela comida. Em especial coisas doces. Na tele consulta com o seu médico, este explicara-lhe que o corpo cria necessidades físicas para as suas perturbações emocionais. Como não havia de ter perturbações emocionais? Morrera-lha a esposa, a sua querida Ema!
Dedicara-se mais ao chat Uninet, e nas janelas enormes que eram afinal écrans, chamava imagens transmitidas por webcams de lugares longínquos. O Universo encolhera enormemente pela acção de alguns gestos que ligavam tudo e todos numa enorme teia. Sentia-se o centro do mundo, falando com amigos em Fomalhaut, e outros planetas. A sua base de dados tinha milhões de contactos, e era-lhe impossível lembrar-se de todos, mas ainda assim lhe faltava algo naquela utopia do novo mundo.
Sim faltava Ema, mas já antes de Ema partir aquela sensação lhe andara a vaguear no peito e a encurtar a respiração, como se respirar lhe magoasse as costelas!
Deu por si a pensar na última vez que se embebedara em companhia de amigos, ou abraçara alguém. Quando Ema morrera, o enterro foi feito por andróides e mais andróides, todos os que tinha e deviam ser alguns milhões! Mas nenhum contacto com um sorriso, ou um abraço, ou um olhar... Só as suas lágrimas.
Olhou o céu e este era de um roxo vivo. Algumas aves voavam por ele em arabescos negros. Mais um dia que chegava ao fim. Mas não era o fim do dia que o tornava melancólico, mas a ausência, uma profunda ausência...
Dirigiu-se à máquina de chat, ligar-se-ía com Leónidas o seu amigo de Bondurant a cidade do planeta Amarelo. Leónidas era o que chamaríamos um filósofo: Discutia sobre nada, com o ardor de quem discutia cosmogenias. Ele saberia compreendê-lo, e dar um nome ao que sentia.
Ligou o video e o audio do chat e Leónidas apareceu:
-- Leónidas, as noites parecem-me mais longas agora, já antes pareciam, mas bastava olhar Ema dormindo, para serenar e acabar por adormecer também... O que é isto Leónidas?
Os olhos de Leónidas feitos de micro-LEDs como que relampejaram resultado do intenso esforço da sua unidade de IA super avançada. Sorriu, e comentou com a sua voz suave e tranquilizadora:
-- Não será solidão?