30 novembro 2019

Agora é tarde...




Eu podia ter estado atento aos sinais: As nuvens escuras, a chuva e o frio. Mas nunca pensamos que será connosco. E depois de surpresa, como se já não o tivéssemos visto nos outros, estampado no rosto dos outros, alcança-nos, esse azar, predador astuto sempre pronto a nos pegar.

Agora olho de fora para, daqueles que igual a mim pensam como eu pensava, que os outros são as vítimas. Já não penso assim.

O mundo mudou, tornando-se menos estável, menos firme. É tudo fluído e em força. O que hoje é, amanhã deixa de ser e o que não era passa a ser. Um mundo de narrativas desiguais, contraditórias. Todas fazendo parte do mesmo jogo, com alguns golpes de batota pelo meio. Toda a gente brinca ao faz-de-conta. E todos se acham muito espertos, sempre mais que o seu próximo, para caírem vítimas de um vigarista mais matreiro.

Aos poucos, fomos perdendo a dignidade, sem ela como havíamos de defender a privacidade? Nós a geração das selfies, dos nudes, dos cinco minutos de fama que valiam por uma vida! E ficámos com a fama e perdemos a vida. Porque a vida carece de algumas coisas, das que lhe dão sentido e que nos fazem sentir parte de algo que é maior do que nós. Essas coisas que justificam o esforço e o sacrifício, algumas raras vezes o martírio.

Mas agora é tudo tão de fancaria, tão amanhado na pressa do correr dos dias, que os espertos espremem da nossa multitude de desejos, que esses sim, nos acabam a doer.

Agora, como digo, estou do lado de fora do lado das vítimas, dos despojados. Agora as minhas questões são simples: Onde comer a próxima refeição, onde dormir logo à noite?

Não era nada que não pudesse ter sido previsto. Aos poucos, a fragmentação da família, irmãos na mesma casa de pais diversos. Houve traumas? Há sempre, que a vida é cheia dessas coisas. Mas como aconteceu? Talvez por ter sido aos poucos nos tenha apanhado desprevenidos. Mas nem devia ser grande surpresa. Devíamos ter suspeitado quando nos começámos a inclinar mais sobre os écrans dos equipamentos eletrônicos, do que uns sobre os outros. Depois ficou fácil deixar de dar importância ao que era importante. Não custou "esquecer" os velhos nos hospitais, depois nos lares. Não custou aceitar a pressa com que se descartavam os mais frágeis com que aceitássemos que haviam vidas que importavam umas mais do que outras. E se no princípio longe, depois foi-se aproximando de nós, mesmo que antes já nos entrassem descaradamente pela sala dentro através de mesmo écran em que se jogava o último jogo de guerra na Playstation. E no outro instante, quando finalmente tomámos consciência estávamos nós no jogo a ser manipulados pelos jogadores com o comando na mão. Só que não era jogo nenhum. Era bem real.

Eles vieram na sombra, ensombrar-nos. Vieram como as traças com as suas asas feias, mas macias, os seus tiques suaves, cheios de boas intenções nas histórias que nos contaram para nos adormecer. Como fazíamos com as crianças e os contos lindos de Natal. Com essa mesma simulada caridade, brilhantes boas intenções que eram como milho para nos convencer a entrar na gaiola. E entrámos com alegria, convictos de estarmos a fazer as boas decisões e era um engano, um enorme engano.

Mesmo que quiséssemos arrepiar caminho, agora já não podemos. Tornaram-nos tão inócuos e impotentes quanto puderam. Retiraram-nos a crença, a ideologia, a esperança. Somos meninos e meninas que gritam histericamente que querem mudar o mundo. Mas não sabem como o fazer. São correntes de água sem rumo. E a diferença entre um rio e uma torrente é essa: O rio tem um rumo, sempre chega ao mar. As torrentes desaparecem no percurso.

Podíamos ter mudado o mundo. Fazendo dele o lugar lindo com que sempre sonhámos. Mas perdemos tempo e tino com enganos. Sucedâneos de mundos que nunca chegavam a ser, mas atrás dos quais corríamos como loucos! Oh quão loucos fomos!

Sim, podíamos ter feito do mundo um lugar melhor, começando por nós mesmos. Mas estávamos tão entretidos a perseguir um gambuzino qualquer. A ir atrás de um aceno, de uma moda vazia e sem nexo, que trocávamos uns tempos depois uma e outra vez. Mas eles nunca perderam o rumo, de nos fazerem os seus empregados, os seus servos, os seus escravos. E depois que ficaram com tudo o que era nosso, porque haveriam eles de querer mudar o mundo? Ou deixar-nos mudá-lo?

Agora é tarde...

01 abril 2019

Lar



Em breve fariam sete anos que o pai morrera. Ficara a mãe a ocupar a casa da família. Mas agora a mãe também pelo peso dos anos, perdia alguma mobilidade e precisava que tomassem conta dela e dera entrada num hotel sénior. Já não precisava mais de fazer comida, nem as camas, nem essas lides caseiras, que pelo peso dos anos e das rotinas se tornam segunda natureza de uma mulher e faz parecer que as casas são coisas vivas.

A casa da gente, o lar, não são apenas paredes e mobília e os acessórios que a gente lhes deita em cima sob a forma de elementos decorativos ou de livros, ou de equipamentos vários. Um lar, é o cenário das nossas memórias mais íntimas, o espaço partilhado pela família, pelo animal doméstico. Houve tempos em que aquele espaço foi habitado por gatos que deixaram saudades. Partilhado com outros familiares que o tempo se encarregou de levar para as brumas da memória e que agora eram também parte das recordações da casa. As fotos espalhadas por diversas molduras testemunhavam que haviam existido e não eram fruto da imaginação. Tinham estado ali, estavam ainda ali.

Regressava pela primeira vez à casa dos pais, depois que a mãe a deixara para ir para o hotel sénior. Sentiu uma irreprimível vontade de chorar que foi disfarçando enquanto varria o pátio cheio das folhas da nespereira, ou depois a garagem já a acusar o abandono a que estava destinada com toneladas de teias de aranha. Pensou ligar ao seu irmão para partilhar aquele sentimento que o invadia, como se a casa ao ficar gradualmente abandonada, profetizasse o fim inevitável. Mas o irmão talvez achasse que ele era apenas emocionalmente fraco ou piegas.

As casas têm histórias, muitas histórias e quando são nossas, são carregadas de memórias, são quase como seres imensos e pachorrentos que partilham connosco o tempo que passa. São lugares sagrados, privados, nossos. Muito nossos e que não podem ser de mais ninguém. O pai morrera e no seu espaço, o escritório que tinha sido seu por direito, manteve-se tal como ele deixou. Ainda está como ele o deixou. Era como se o aguardasse depois de uma longa viagem. Mas todos sabíamos que não voltaria, a não ser que as nossas memórias o trouxessem. Era ainda, sete anos depois, – oh como o tempo passa – pensou, penoso penetrar nesse espaço e devassar-lhe os segredos.

Naquele velho sofá haviam conversado, tantas conversas sobre tudo e mais alguma coisa! Desde a filosofia às piadas. Sentia uma imensa saudade dessas conversas. Nunca mais encontrara ninguém com o nível e a cultura do pai, para trocar ideias, ver o mundo nos seus diversos cambiantes. Haviam visto programas na mesma tv que ainda trabalhava. Tinham as suas mãos passado por aqueles livros, aquelas revistas, tinham comido na mesa daquela cozinha, lavado o caro naquele pátio. Era penoso recordar e saber que depois dele não haveriam essas memórias...

A casa ficara diferente, com um vazio no escritório do pai. Uma espécie de buraco negro, onde se temia ir e tomar consciência de que morrera e não estava lá, nunca mais estaria... E agora a mãe, a guardiã do templo da sua memória, também abandonava a casa, que silenciosa parecia aceitar resignada o facto de ficar sozinha e abrir as suas portas aos visitantes de ocasião e as janelas a medo para que a luz pudesse ainda penetrar os lugares de memória e nalguma sombra, nalgum reflexo, transportar-nos no tempo, para trás, quando a casa ainda estava cheia... Cheia de vida e não apenas de memórias.

Regaram o jardim ainda razoavelmente bem cuidado, mas por quanto tempo mais?

Quando saiu de lá para levar a mãe ao hotel sénior, fez um esforço imenso ao ver o portão automático fechar e a casa ficar entregue a si mesma, travar-se para não desatar num choro silencioso. Aquele que se chora por saudade e respeito com um aperto no peito. Uma enorme dor de antecipação pelo futuro anunciado, pela esponja do tempo a sorrateira, vir apagar tudo o que se construiu numa vida, como se nada do que está, valesse grandemente para o futuro. Se tivesse deixado as suas emoções à solta, teria chorado como um menino, um menino de sete anos....

21 março 2019

Tessaracto - Reformulado






Tinha ido a uma festa de Don Vito Corleoni, um poderoso e influente empresário. Ao certo não sabia porque fora convidado, mas achava que talvez tivessem tirado o nome à sorte, para não serem sempre as mesmas caras nas festas. Ele trabalhava numa empresa e tinha certeza que Don Vito devia ter uma parte nela, ele que começara modestamente, um emigrado italiano, a trabalhar num negócio de lavandarias do tio. Diziam as más línguas que não lavavam apenas roupa suja... Mas já se sabe que os homens ricos despertam muitas invejas. Umas das coisas boas nas festas de Don Vito é que nada faltava, nem mesmo as mulheres bonitas, mas infelizmente raramente disponíveis e não esperava que nenhuma se interessasse por ele a não ser episodicamente durante a festa, para trocar meia dúzia de palavras amáveis ou ouvir uma piada das dele.

E de facto aquela festa correu-lhe bem, que uma engraçadinha depois de beber uns copos e trocarem algumas larachas o convidou a ir para o jardim que ficava nas traseiras. Afastaram-se da zona onde os criados ainda chegavam com as taças e os canapés e embrenharam-se para dentro da floresta até os ruídos da festa chegarem a eles de forma abafada. Ele quis aproximar-se dela, para ter um contacto físico, mas ela a cambalear ria e fugia dele, como se frustrá-lo no seu intento, fosse o seu objetcivo. Por momentos apeteceu-lhe espetar-lhe uma palmada no rabo, como se faz aos meninos irrequietos e parar com aquilo. Mas sabia lá quem ela era e que relações tinha com o Don Vito e podia muito bem meter-se numa “marmelada”.

Ouviram no meio de uns arbustos um restolhar e um balbuciar semelhante ao de um bebé. E ela fez-lhe sinal para que se calasse, ele que não abrira a boca desde que ali chegaram, na perspectiva de a abraçar e roubar um beijo e uns “amassos”. Mas escutou com mais atenção e sim lá estava o balbuciar de um bebé. Ele foi ver e encontrou no chão a gatinhar um lindo menino louro de olhos claros, depois soube que eram azuis, que ao vê-los gatinhou para eles com um sorriso de contente no rosto. Ela chegou logo junto dele e ao ver o bebé os seus instintos maternais foram activados e baixou-se para pegar o bebé. Mas este não devia estar pelos ajustes e espetou-lhe uma valente ferradela no braço que começou a largar sangue. Largou-o e ele correu para ela com um lenço para estancar o sangue. Enquanto tentava de alguma forma consolá-la, o fedelho aproximou-se de um dos seus tornozelos e espetou os dentes como agulhas numa ferradela que tinha a força e vontade de uma ferradela de tubarão. A sua reacção foi instintiva e com o outro pé livre espetou-lhe um pontapé. O fedelho rolou na grama e ao rebolão entrou no meio de uns arbustos.

Ela olhou-o com uma censura absoluta, e a sangrar do antebraço, mesmo assim correu para o meio dos arbustos à procura do bebé. Mas não estava lá nada. Ainda agora ali estava e apenas rebolara um bocadinho que o pontapé até nem fora forte e desaparecera! O miúdo não era leve que sentira o impacto, mas que desaparecera, desaparecera. Ela zangada com ele, pôs-se a bater-lhe no peito o que acabou por lhe sujar a camisa toda:

“És um assassino! Um monstro! Vai procurar o menino!” intimou ela com um grito histérico.

Não percebeu se foi por isso se não, mas surgiram dois indivíduos do meio da floresta e certamente não pareciam convidados da festa de Don Vito. Um deles vestia uma camisa de lenhador vermelha e um macacão, um gorro de lã na cabeça que devia ter sido cinzento e tinha umas barbas brancas farfalhudas que perguntou:

“Perderam-se os pombinhos na floresta?”

Ela deixou de lhe bater no peito e ficou a olhar para os dois homens e sem dizer nada foi recuando em direcção à casa e à festa.

“Não viram por aí o bebé?” perguntou ele, sem saber bem o que dizer.

Os homens riram-se. Um deles o das barbas respondeu:

“Os bebés não se perdem por aqui. Às vezes vêm fazê-los para aqui... Mas hoje não é o teu dia de sorte!” E riu-se. Ele olhou para trás e viu que a mulher corria para a festa com os sapatos altos na mão. “Se ele tivesse dado sorte, ainda fazíamos os três uma festa!” E voltou a rir.

“São empregados de Don Vito?” perguntou.

O mais novo, barba de dois dias aproximou-se dele e de um ápice encostou-lhe uma lâmina de faca afiada ao pescoço. “Quando disseres ‘Don Vito’ faz uma vénia ou faço-te uma gravata, “capisce”?”

“Não tinha intenção...”

E outro sacudindo-o e mantendo a faca perigosamente encostada na sua garganta perguntou-lhe:

“Mas houve lá ó pombo arrulhador, já te dei permissão para falares?”

O outro das barbas veio acalmá-lo:

“Deixa lá o convidado de Don Vito... Ir usufruir a festa, já que de mulheres não tem sorte nenhuma.” E riu-se. Parecia que sempre que dizia alguma coisa lhe dava vontade de rir e pensou que talvez fossem pobres mas alegres o que certamente seria uma vantagem de terem Don Vito por patrão. Insistiu com o companheiro:

“Vá lá, larga-o. Ainda se vai queixar a Don Vito e não queremos que ele se aborreça connosco...”

Sem uma palavra o mais novo largou-o e deixou de ter a faca encostada à garganta.

“Bem, desejo-vos uma boa noite...” disse ele sem saber o que dizer e a coçar a zona do pescoço onde a lâmina estivera encostada.

“Vá-se lá embora.” disse o das barbas brancas farfalhudas “E desculpe aqui o meu amigo...”

O amigo mais novo, pareceu rosnar e acrescentou mal-humorado:

“Cheira-me a preto... Com este casaco branco, aposto que é um preto disfarçado!”

O velho do gorro e das barbas, pôs-lhe o braço pelos ombros e arrastou-o para dentro da floresta e olhando para trás piscou-lhe o olho.

“Vamos, não vês que é um desses embonecados que Don Vito costuma convidar?”

Ele tratou de se afastar e deixar para trás os dois homens, ficando com uma sensação estranha daquela floresta. Agora não tinha muito a certeza do encontro com o bebé, apesar de ao olhar para a camisa esta estar toda ensanguentada. Será que tinha imaginado aquilo e se ferido nalgum arbusto espinhoso? Será que tinham metido alguma droga na bebida?

Quando chegou mais perto da festa, as pessoas afastavam-se dele. Ele presumiu que fosse por causa da camisa de sangue. Mas depois apareceu a mulher que tinha ido com ele acompanhada por uns seguranças e em choro convulsivo apontou para ele:

“Foi ele! Foi ele que matou o bebé!”

Os seguranças aproximaram-se dele e de forma polida mas firme pegaram nele e levaram-no para uma sala. Passados minutos entrou alguém na sala, e apresentou-se como o chefe da segurança:

“Quer explicar-nos o que se passou na floresta?”

Ele ficou meio sem saber por onde começar, mas decidiu pelo mais simples e verosímil:

“Cortámo-nos nuns arbustos da floresta. Aliás, ela cortou-se primeiro e ofereci-lhe o meu lenço para estancar o sangue, depois também me feri num tornozelo...”

Um dos assistentes, puxou-lhe a calça e verificou-lhe o tornozelo. A meia estava rasgada, coisa que ele nem sequer reparara e via-se através do rasgão a clara marca de uma mordida. O chefe de segurança mostrou-lhe o lenço dele e perguntou:

“É este o seu lenço?”

“Sim, é esse mesmo.”

“A mulher diz que havia um bebé.” afirmou o chefe da segurança esperando o comentário dele.

“Bom...” ele sorriu, “tenho de confessar que já tínhamos bebido bastante, pelo que se calhar imaginámos ver coisas...”

Fez um ligeiro esgar.

“Imaginar bebés, suponho.”

“Deve ter sido isso, sim”

Ele segredou qualquer coisa a outro assistente e depois dirigiu-se-lhe com o olhar firme enquanto falava:

“Não queremos estragar a festa de Don Vito. O Sr já não está em condições de estar na festa, a sua camisa está imunda. Um dos meus assistentes vai levá-lo a casa. Uma amabilidade de Don Vito, que escusa agradecer. Mas há uma coisa que gostaria que guardasse só para si: A de que há um bebé à solta na floresta. Se quiser dizer que encontrou uns caseiros e que estes tem cara de poucos amigos...” ele fez uma pausa, sorriu agradado e acrescentou “Isso até pode contar! Estamos combinados?” rematou ele estendendo a mão. Ele apertou-lha e sentiu o aperto firme, forte.

Depois acrescentou:

“E não se preocupe com a menina, nós tomamos conta dela...” E aí recebeu um sorriso de todos.

O caminho até casa foi silencioso, que o condutor era de poucas falas. Não sabia como o condutor sabia onde era a sua casa, mas quando chegaram lá, o condutor esperou que ele abrisse a porta do carro e saísse, depois sorriu-lhe e disse:

“Devias mudar de pardieiro, isto é um bairro de negros.”

Depois como viu que ele ficou calado, se calhar sentiu pena dele.

“Olha, tens aqui o meu cartão. Se quiseres um emprego melhor, que te leve daqui para fora, para uma vida melhor. Liga-me. Hei-de arranjar-te alguma coisa...”

Ele agradeceu e seguiu para casa.

20 março 2019

TESSARACTO



Dos fatores de 30 que traduzem o privilégio de ser branco, macho e rico, decompondo-se na descida de um nível ao perder um privilégio, só um, à escolha: branco, macho ou rico. Não compreendo plenamente a matemática, já que há privilégios que não tens muita escolha: ou és branco ou não és, ou és macho ou és fêmea mesmo que te sintas uma graduação intermédia. Talvez a única escolha possível seja mesmo a de ser rico ou não...

Ouvi-te rir. E riste-te bem, porque é cómico apresentar a possibilidade de ser rico como uma escolha. Não é de todo, pois se fosse todos escolheríamos ser ricos. Portanto, o que podes escolher é ser pobre, se tiveres a fortuna de ser rico. Porque se fores pobre, dificilmente te tornarás rico. Podia alongar-me numa reflexão de como se chega a rico, mas todas as fortunas, têm na sua larga maioria, derramamento de sangue. Pelos menos as grandes fortunas.

Houve tempos em que nos salvaram a todos do comunismo por nos darem um Estado Social, em que se garantia um mínimo de subsistência, onde ainda nos iludiam com alguma migração social no sentido ascendente. Um pobre às vezes ascendia a uma pequena burguesia remediada e o burguês mediano ascendia um pouco mais a ponto de se julgar afortunado e fazer férias a crédito em Cancun e provar petiscos novos da cozinha “gourmet”. Agora só uma fina camada social compõe esta classe média-alta, e a camada vai ficando cada vez mais fina.

Dizem que ganhamos mais, que os rendimentos per capita aumentaram no mundo todo, mas que não aumentou a felicidade. São coisas estranhas estas das estatísticas, pois é difícil perceber como pode aumentar a felicidade humana, quando 1% da população detêm 80% de toda a riqueza do mundo. No final as estatísticas dizem que se formos 3 e comermos dois frangos o desgraçado que não comeu nenhum pedaço, por artes mágicas ainda se lambuzou com 2/3 de um! E certamente com tanto, ficam surpreendidos que não esteja feliz? E se apenas um de nós três se banquetear com os dois frangos, teremos dois infelizes, mesmo que estatisticamente sem razão.

Há estas construções cúbicas, os factores de 30, que não apenas se deformam mas que se conformam numa implosão. Olhamos friamente os números, esvaziados de pessoas e de rostos. Um tessaracto social que não encaixa neste mundo, aonde falta a dimensão humana.

Para ajudar a compreender ver esta conferência TED.

07 fevereiro 2019

As Três Laranjas




Os dias iam cinzentos, entre uns laivos de esperança e uma depressão que se arrastava, com os ricos ficando mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Havia alguns ainda crentes nos seus privilégios de classe média, uma classe média cada vez mais pelintra que disfarçava com tiques de altivez, com caridadezinha e com férias a crédito em Cancun. Era engraçado porque se encontravam todos nas férias como se encontravam todos os dias na sua cidade. Só aos políticos a coisa corria melhor, que os dinheiros públicos eram inesgotáveis.


Mas não era fácil para a maioria, que apesar da escolaridade, continuava analfabeta em relação às engrenagens do mundo. Nós vivíamos numa vila e tínhamos um quintal com árvores de fruto, laranjeiras na sua larga maioria. As laranjas dão fruto no inverno, porque a natureza é sábia e nos quer proteger das constipações com vitamina C, que é sabido haver em abundância nas laranjas.


O que era menos comum era aparecerem por ali pedintes, mendigos, já que as redes de solidariedade nestas povoações fora dos grandes aglomerados urbanos são extensas e vivem da partilha daquilo que a terra dá. Um vizinho dá couves, outro retribui com laranjas e por aí fora, sendo que embora haja necessidades, a pior das fomes não acomete estas comunidades. Ainda bem.


Lembro-me deste senhor que por lá apareceu um dia a bater-nos à porta, algo envergonhado, de cabelos grisalhos, roupas modestas, mas limpas. Não era dali e ao invés de pedir logo, começou com desculpas:


— Peço desculpa de o incomodar... — disse sorrindo — Mas estou desempregado e vi que tem ali umas laranjeiras. Será que me podia dar três laranjas?


Obviamente que não havia problema em dar-lhe um saco de laranjas até. A natureza fora generosa e tínhamos mais do que uma laranjeira pelo que podíamos mostrar-nos generosos, já que os vizinhos também tinham e não seria preciso dividir com eles. Mas achei estranha a objetividade do pedido:


— Mas claro senhor, não tem problema nenhum, venha comigo...


Chegamos à laranjeira e comecei a tirar as laranjas, quando ele viu que ia tirar a quarta disse-me:


— Não, por favor! Só quero mesmo três laranjas.


— Então? Mesmo que não queira, porque não leva para a família?


Ele baixou a cabeça:


— Não tenho família, estou sozinho...


Senti-lhe a tristeza na voz e não tive coragem de aprofundar o tema. Mas foi ele que continuou:


— Fui casado, sem filhos. Quando fiquei desempregado a minha mulher achou que era melhor separar-se de mim e foi à sua vida... Tive de sair de casa porque não a podia pagar, nem a água nem a luz e tive de morar na rua. Recorri à caridade...


Pensei que a mulher dela fora muito cruel, e se antigamente era “até que a morte os separasse”, agora era só até à primeira dificuldade maior. Mesmo assim insisti:


— Então, mas leva e depois quando tiver fome, come...


— Vou levar peso desnecessário e as pessoas terão mais dificuldade em dar-me algo se virem que carrego alguma coisa...


Aquilo soou-me tão profundamente cruel que não me pude impedir de os meus olhos ficarem húmidos. Não disse nada e entreguei-lhe nas mãos as três laranjas, mas não resisti a perguntar:


— Porquê, então, apenas três laranjas?


Ele sorriu-me, um daqueles sorrisos serenos de quem se sente detentor de uma profunda sabedoria, daquelas que nos transmitem tranquilidade e explicou:


— A primeira serve para matar sede, a segunda para matar a fome e a terceira para me saciar. É esta última que me dará mais prazer. Tudo depois disso será apenas desperdício.

29 janeiro 2019

"Reset"



O tempo ia frio, o que não era de admirar já que estávamos no Inverno. Mas não era apenas o frio, eram as pessoas frias, numa visão utilitária das amizades. Tudo é medido em termos utilitários. Se não és um elemento produtivo és um inútil, pelo que esta sociedade não suporta fracos. Não suporta velhos. Não suporta pobres. E nem sei bem se tolera crianças, que estas acabam sublimadas como pequenos príncipes. São portanto obras de ficção, até acordarem um dia...


Nada faz sentido neste mundo em que tudo é mentira. Dantes também era, mas não era tão evidente. Hoje, as elites escarrapacham o que são. Mas o QI diminuiu bastante, e é uma caricatura do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. Os idiotas arrebanhados em currais coloridos regurgitando o que lhes enfiaram pelas goelas abaixo sem qualquer sentido crítico. E se existe torna-se cínico, considerando o sofrimento humano, como um mero colateral, ou na novilíngua uma externalidade.


Será que para esta humanidade haverá esperança? Não. Nem para os que ainda lutam contra a maré das hipocrisias que engolem tudo. Nem para as Elites que numa espiral vertiginosa se precipitam para o fim da história, não por alguma hegemonia de pensamento, mas porque o seu pensamento de tão grotesco e anti-natural só pode levar a uma extinção em massa. No axioma de que todas as espécies estão a prazo. Mas a que fica, a que resistirá a este fim, não será humana, nem descendência da Elite. Talvez a Terra fique entregue aos insetos, e destes um dia algum consiga produzir uma cultura. Não faço ideia do que o futuro trará, porque ele tem vontade própria e não é domesticável, é uma besta selvagem e vai para onde quer e como quer. Sempre sonhei ser futuro, mas a história foi-me petrificando e um dia serei apenas pó.


Deixámos que os psicopatas ocupassem o poder e serão eles que nos hão-de exterminar. Não que se preocupem com isso, que a sua arrogância e presunção é maior que o seu medo de morrer, maior do que o seu instinto de sobrevivência. Quando alguém se acha intocável, inatingível, então o risco que corre é cada vez maior, até que um dia é um risco demasiado grande, daqueles que acaba com a espécie. A natureza gosta de brincar aos paradoxos. Insiste nisso. Acho que tem a estranha noção que só os paradoxos geram realidades novas. E são estas realidades que nos levam a questionar e a querer saber. Quando uma espécie julga saber tudo, ser dona de tudo, mete-se num evolutivo beco sem saída. Acho que já lá estamos há algum tempo.


Estamos doentes, terrivelmente doentes e nem nos apercebemos. Um mundo em que metade de toda a riqueza do mundo está na mão de vinte e seis criaturas, só pode ser fruto de uma sociedade extremamente doente em sentido ético. E aos religiosos sempre com a moral na boca, admiro-me como o fato não lhes queima o coração! Talvez não o tenham. Ou talvez esteja tão insensível que não lhes serve de compasso, uma consciência anestesiada, própria de ovelhas que se conduzem ao abate.


Alguns choram as vítimas do nazismo, sem se aperceberem que são cúmplices de milhares de vítimas que morrem por outra ideologia, esta que acha normal vinte e seis bestiais criaturas detenham a riqueza de metade do mundo! Não ver a obscenidade da situação é sinal de que já se morreu e há muito! Hão-de morrer essas vinte e seis bestiais criaturas, vítimas da sua abastança. Porque se assim não for, a natureza não soube cumprir o seu papel, restabelecer o equilíbrio, ou na impossibilidade recomeçar de novo.

24 janeiro 2019

Vazio


O vento frio de inverno cortava a serra a máquina zero, despida que estava de arvoredo. A aldeia em silêncio, de volta do borralho, olhos cansados, hipnotizados nos arabescos das chamas. Lugares escuros onde os vivos se sepultavam por de trás das paredes grossas. Por cima do lume, o fumeiro onde balançavam algumas chouriças.

Aldeias que se esvaziaram a pouco e pouco de gente. Uns procuraram um lugar melhor para viver e foram de todas as maneiras para terras distantes, por essa Europa fora, rumo a França e à Alemanha. Mas antes alguns já haviam buscado o Brasil ou a Venezuela. Nenhum havia voltado. Só alguns nas “vacances” para matar saudades, ou para casar, ou para enterrar algum parente. As aldeias eram agora fotografias de um tempo passado, tornando-se apenas cemitérios.

Ficaram os que não puderam sair, amarrados ao amor da terra, às rotinas seculares. Razões diversas que os aprisionaram nas aldeias serranas, nas casas da mesma pedra, nos caminhos que prometiam viagem, mas eram circulares. O mundo era pouco mais do que a aldeia. Viagens esporádicas à vila mais próxima para cumprir alguma obrigação legal ou por razões de saúde. A camioneta que mercê das forças de mercado deixara de passar, dando lugar ao táxi que era um luxo e só se consentia em emergências ou razões de força maior.

E as pedras ficaram sem gente, remetendo-se à condição de abandono. Como as almas quando os corpos morriam, e os abandonavam, para buscar recompensa na outra vida. Mas até as almas perdiam o tino e deixavam-se vagar, penadas, por não terem quem as encomendasse.

E na única taverna, loja e café da aldeia simultaneamente, que ameaçava fechar quando o octagenário do dono falecesse, falava-se em surdina dos mortos já enterrados e encomendados como tendo tido muita sorte. E afinam-se as vozes a palhete para a próxima encomendação.

“Quem cuidará das nossas almas?” Era a preocupação daquelas gentes de rostos sulcados por trabalhos de sol-a-sol ao frio, ao calor, ao vento, ao estio. Mãos que agora se curvavam como garras, mas que já tinham dificuldade em agarrar. Aldeia de bordões que matraqueavam as pedras gastas da calçada, saudosas de tempos idos, onde eram calcorreadas por bandos de meninos de pés descalços. Mas os meninos tinham seguido a força do tempo e se tornado homens, alguns casado, outros morreram em novos, alguns nas guerras coloniais para desespero das mães e das noivas. Sementeira de viúvas e orfãos. E os outros agora, por ali, espalhados como as árvores pela paisagem aguardavam o triste destino da humanidade e preocupavam-se com a sua alma eterna. Mas até a eternidade lhes parecia fugir, já não havia missa na igreja da aldeia grande. Talvez nem para os padres compensasse a deslocação, ou fosse apenas a carência de vocações a implicar com a carência de olhar além do presente, para a eternidade.

Um dia, restaria o último. O último que percorreria as estradas de pedra, com o bordão matraqueando a ladaínha da Encomendação das Almas. Cantaria os versos repetidos por gerações. Neste lugar não sabem que o Purgatório foi abolido e não faz mais sentido encomendar almas, incentivar para que rezem por elas, que afinal já lá não estão.

Nestes tempos modernos ninguém quer saber de onde veio nem para onde vai, que tudo deve dar gratificação instântanea. Tudo se tornou volúvel, fluído, passageiro. Cortando a continuidade entre as gerações e aumentando a solidão. Compensa-se com a toma de medicamentos, ansioliticos e outros psicotrópicos de modo que a ausência de alicerces e a subida às alturas, não causem vertigens que os façam tombar.

“Quem encomendará as nossas almas? Quem rezará por nós? Quem nos lembrará?” E o silêncio dos campos e das serranias, onde apenas assobia o vento, ou cantam os pássaros, é tudo o que responde. E os velhos, sim porque todos ali chegam, os que têm sorte pelo menos, curvam a cabeça, baixam os olhos. Sinal de uma desesperança profunda, de uma resignação sem nome. Vestem de preto, mas já não é apenas pelos parentes que se finaram, é por eles também, fado lusitano. Talvez Amália tivesse cantado uma encomendação de todas as nossas almas quando cantava: “Povo que lavas no rio/E talhas com teu machado/As tábuas do meu caixão”

Escutavam na rádio essas canções passadas e às vezes, num aperto de saudade uma lágrima pesada caia pela face. Enxugava-se com as costas da mão e permanecia-se cabisbaixo, nesse avassalador sentimento de saudade. Lembravam-se nas noites escuras e frias, paredes pintadas de negro pela fuligem, junto ao borralho, os que tinham partido: conhecidos, vizinhos e parentes. Era tudo o que tinham para fazer, que as cataratas já não deixavam olhar para fora, ou ver a TV no café da aldeia, com a nitidez necessária. Roía-se um pedaço de broa, ou de pão branco comprado, que os dentes também já não ajudavam. Para matar a solidão e o vazio, às vezes pegavam o terço e rezavam pelas almas numa ladainha hipnótica que ajudava a passar o tempo e a tornar as noites mais curtas.

Lá fora o vento frio da serra, silvava forte, talvez as almas zangadas por terem sido esquecidas. Ou então, talvez fossem as almas a correr, agitadas por não terem lugar de descanso e fazendo abanar as copas das árvores para chamarem a atenção dos vivos para a sua desgraça.

“Como seria a azeitona, este ano?” Preocupações de todos os anos, repetidas. Se bem que a maioria ficasse nas oliveiras que já não havia quem a apanhasse. “Será que este ano chove o suficiente?” Que neste mundo secular e em permanente busca da felicidade imediata, até o céu deixa de ter tempo para chorar e a chuva não vem. Copiosa e fértil a saturar a terra, encontrar semente que morre para renascer na novidade primaveril. Quebram-se as tradições e os ciclos desmoronam. A renovação substituída por geração espontânea.

“Bem diziam os antigos que quando vissem estradas negras e fios pelo ar, estava perto o fim do mundo…” dizem os mais velhos que acham que o alcatrão das estradas e os fios dos telefones e da eletricidade são presságios. Mas o único fim do mundo que vem é o seu, mesmo que num passo lento, vem seguro.

“Quem encomendará as nossas almas? Será que se deixarmos pagas as missas, isso nos salvará?” Perguntas que ficavam sem resposta, que o Senhor Prior agora só dava missa na igreja da vila. E eles não podiam lá ir, que era longe! Dantes ainda havia burrico e ao domingo gaiteiro ainda se podia, às vezes, consentir passeio na carroça. Mas o burrico já não havia. Como todas as coisas de um passado distante, eram apagados pelo presente e pelo anseio do futuro, que com vontade própria não se importa com a vontade de ninguém.

“Estarão as nossas almas, sem gente que reze por nós, condenadas a permanecer no Purgatório?” E rezava-se mais um terço, na tentativa de convencer esse Deus distante e severo, rigoroso na justiça, que eram boas pessoas, merecedores de uma oportunidade melhor no céu, que a vida na Terra já havia sido muitas vezes, inferno que chegasse. Escutava-se na rádio a missa, porque a salvação da alma, era a única ambição que lhes restava. Mas às vezes, nas noites compridas, adormecia-se a rezar o terço e para complementar a falta, voltava-se a repetir tudo do início. Talvez Deus se aborrecesse na repetição de ladaínhas e já nem quisesse saber e também os tivesse abandonado, deixando-os repetir como gira-discos avariados uma canção que já não importava a ninguém.

Talvez nem mesmo salvar a alma, fosse alguma coisa que importasse, num mundo ímpio cheio de criaturas edonistas. E só restassem velhos, presos a estranhas superstições, cantando para incentivar os piedosos, relíquias de um passado obscuro, a que rezassem, rezassem muito, para livrar as almas dos amigos, dos vizinhos bons e dos parentes, do fogo expiador do Purgatório. E olhando, com olhos cansados, os velhos crucifixos com um Cristo de braços abertos, diziam em jeito de resignação: “Até Nosso Senhor sofreu para nos dar o exemplo…” E isso redemia o seu vazio atual, o sofrimento da sua vida toda!

“Quem salvará as nossas almas?” E seguravam a cabeça com a mão, cotovelo enterrado no joelho, para esta não cair mais em desalento.

E passava o peixeiro pela aldeia, na velha carrinha buzinando. A sardinha não sabia ao mesmo, ou talvez fosse uma consequência da velhice, e comprava-se um carapau ou uma cavala que o dinheiro da reforma também não dava para muito. Junto à carrinha juntavam-se as comadres e sabiam-se as novidades das aldeias em redor. Aldeias tão vazias, quanto a sua, num destino a todas igual.

“Morreu?!” perguntava-se com espanto ao saber a novidade de mais um enterro de um conhecido de alguma aldeia vizinha. “Coitado! Não chegou a ver os netos que estão na Alemanha…” Porque a distância deixara um vazio no meio. E os vazios alargam-se da distância para o tempo, que espaço e tempo são inseperáveis. “Quem cá deixou?” perguntava-se numa preocupação por quem enfeitaria a campa, ao menos no dia de finados! Sabiam que um dia, quando os velhos que ainda se lembravam, esquecessem ou se fossem na força do tempo, ninguém mais cuidaria das campas, que ficariam abandonadas e esquecidas, como se vazias. Nada é para sempre, a não ser esse vazio, esquecimento de boca escancarada que tudo engole!

Sem haver quem lhe respondesse o último perguntaria: “Quem encomendará a minha alma?” E depois do silêncio responder entoará no vazio:
Agradecei a Deus a vossa vida!
Tende pena da alma perdida,
Não esqueçais as instruções,
Fazei por elas, vossas orações!

16 janeiro 2019

"Blues"

— Eu sei o que tu fizeste?
— E o meu amigo é louco?
— Porquê?
— Se sabe o que fiz, sabe o que faço. Se sabe o que faço, o que me impedirá de lhe abreviar a existência?
— Não sabes?
— O que não sei?
— Sou eu o teu criador, pá!
O diálogo prosseguia junto a uma piscina, do lado da prancha. Havia sete espreguiçadeiras, como há sete pecados mortais. Uns chapéus de sol, com cadeiras e mesa à volta, mas tudo vazio. A piscina estava cheia.
— Acho que não nos conhecemos da Escola, pois não? Como se atreve a tratar-me por tu? E tinha piada, já viu? Eu mataria o meu Criador. Isso faria de mim o quê?
— Um personagem morto.
— Morto? Como morto? Eu é que o mato!
— Pois sim! Mas quem é que manda na história? E se me conseguir matar, de morte morrida mesmo, quem continuará a sua vida?
Parecia quase lógico que a piscina tivesse o fundo azul e fosse no formato de uma viola eléctrica, apesar de não haver nenhuma estrela de rock presente. Talvez a ênfase devesse ser na associação da água e da electricidade e na respectiva consequência de misturar as duas coisas numa piscina. Um empurrão talvez…
— Mas eu preciso lá de si para continuar vivo?
— Claro que precisas! Fui eu que te criei!
— Não insista nesse tratamento por tu que me põe nervoso!
Talvez o azul da piscina se pudesse adjectivar de “eléctrico”.
— Ora, sou teu criador, trato-te como me apetecer!
— Querem lá ver, que tenho mesmo de lhe mostrar quem manda?
Em volta estava tudo vazio com os chapéus-de-sol a drapejar ao vento, mais ninguém a assistir nas mesas ou numa das sete espreguiçadeiras. À volta do recinto uma cerca de rede e lá fora o deserto. Talvez algo por construir.
— Não és capaz de me matar. Tenta lá!
— Isso agora parece uma infantilidade...
Talvez a piscina em forma de viola eléctrica.
— Ah! Vês como não és capaz!
O vento a varrer o chão, sem fazer ondinhas na água da piscina, azul. Quieto, tudo quieto, como num postal velho.


15 janeiro 2019

João, o Ganacioso

Eram exactamente nove horas, no relógio redondo do escritório, quando pousou a mala sobre a secretária. Alguém assomou à porta envidraçada e disse:
— Preparado para ganhar um milhão na próxima hora?
Sorriu e respondeu:
— Porque não dois?
A secretária entrou, murmurou um “bom-dia”, e deixou umas pastas com ele.
O telefone tocou. Deitou um olhar sobre os monitores em frente, onde se desenhavam curvas que subiam e desciam. Atendeu.
— Sim? Não, essas eram para vender ontem… Claro! Não conseguem cumprir objectivos e eu é que tenho de resolver? Também posso ficar com as vossas comissões? Se vender isso hoje, quero um porcento... Combinado.
Pousou o telefone e sorriu de novo. Pegou no telemóvel que trazia no bolso e procurou pelo contacto da Ana, enviou uma mensagem para saber se ela estaria disponível para jantar no Pierrot.
— O Banco Phoenix está a cair? Vais aconselhar a venda? — perguntou um loiro de olhos azuis e fato de corte impecável.
— Não dou conselhos… Mas se quiseres posso vender uma informação… — disse João sorrindo.
— Quanto?
— Dois milhões!
— Fica com a informação, ladrão! — disse o loiro afastando-se.
Ele riu-se. Pegou no telefone e marcou.
— Quando o Banco Phoenix tiver caído 50%, quero que comprem todas as acções…Ok.
Voltou a pegar no telemóvel e enviou uma SMS com palavras doces à Sofia.
O telefone voltou a tocar, mas antes de atender olhou os monitores: O Banco Phoenix continuava a cair. Atendeu.
— Não! Não! Os estaleiros Swang-Lo eram para manter! Quem mandou vender?
O telemóvel deu sinal de uma mensagem. Enquanto discutia ao telefone, confirmou com a Sofia o jantar no Pierrot.
Os monitores mostraram a linha de cotação dos estaleiros coreanos Swang-Lo a subirem como se estivesse na frente de um foguete.
— Ok! — acabou a concordar — Vendam todas as acções da Swang-Lo e com o resultado comprem as do Phoenix…
O telemóvel tocou, era Maria a sua mulher. Foi com irritação que desligou.
Voltou a agarrar-se ao outro telefone.
— Não desligue… Continue a vender Swang-Lo… — Para o outro bocal — Como estamos com o Phoenix, continua a descer? Sim… Óptimo.
O telemóvel voltou a tocar, era uma mensagem da sua mulher. Nem leu, o melhor era dizer-lhe que sim e escolheu a resposta automática.
— Sim, vendeu a posição total da Swang-Lo? Parabéns! Quanto realizamos? Quatrocentos milhões? E em mais valias? Cento e cinquenta milhões? É desta que compro a casa em Malibou!
Riu-se de felicidade. Desligou o telefone. Eram dez horas e já tinha facturado cento e cinquenta milhões, com a sua comissão de 5% sobre o total tinha ganho até aquela hora sete milhões e meio. Nada mau. Mas olhou de novo o monitor, onde as cotações do Phoenix pareciam estabilizar depois de caírem 47%.
Agarrou no telefone e marcou rápido.
— Temos ações do Phoenix? Sim? Vá vendendo… Sim até eu dizer…
Mordeu o lábio olhando a linha das cotações do Phoenix. A linha que tinha parado nos 47% voltou a mexer-se e foi caindo, primeiro para os 47,5%, depois para os 48% e de repente despencou para os 50%.
Voltou a marcar.
— Parem a venda do Phoenix.
Saiu do seu gabinete de vidro e disse à equipa que dirigia:
— Comprem tudo do Phoenix! Tudo! Até valorizar 30%. Depois perguntem-me…
A linha de cotações caiu mais dois pontos e depois começou a subir. Quando chegaram a valorizar mais 30% do que a cotação mais baixa, alguém veio dizer-lhe:
— Não há mais acções do Phoenix à venda, que fazemos?
— Qual é a nossa posição?
— Temos 40% das acções totais, somos donos do Phoenix!
Ele recostou-se na cadeira.
— Somos donos de um Banco comprado em saldo.
— Como foi possível?
— Swang-Lo…
— Como?
— Eram os principais devedores do Phoenix. Como vendemos Swang-Lo, alguns concluíram que era o fim do Phoenix. — Sorriu — Aprendam gafanhotos!

O dia correra-lhe bem, ganhara muito mais do que aquilo que era habitual numa “época de caça” e achava que merecia um prémio. Chegou no seu Aston-Martin ao Pierrot. Sentou-se na mesa que tinha sempre reservada para si. Aguardava pelo seu prémio, esperava que a noite fosse um festejo apropriado.
Chegou a Ana deslumbrante. Sem se levantar sorriu-lhe:
— Estás linda!
Ela trazia a pulseira de diamantes que lhe oferecera.
Mas depois chegou Sofia que descarada perguntou:
— Quem é esta aqui?
E a aproximar-se vinha a sua mulher…