30 janeiro 2004

Triagem de Manchester



Leia antes esta notícia (está em inglês)

O Primeiro recomendara a maior descrição, iríamos reunir-nos na sua quinta em preparação para a habitual reunião do conselho. Levei um bloco de apontamentos, e pedi ao motorista que me deixasse e só voltasse quando eu o chamasse.
Em breve todos os que o Primeiro convocara estavam lá. Tomamos um café, e dirigimo-nos para uma das salas. Um dos homens da segurança verificou com um aparelho se havia alguns dispositivos de escuta, mas a sala estava limpa.
-- Pedi-vos para aqui virem, porque tenho um assunto da maior urgência a falara convosco... -- começou o Primeiro. -- O raio da Saúde gasta mais do que todos os outros juntos!
A das Finanças abanou a cabeça em concordància.
-- Qualquer dia, os impostos vão todos para pagar salários aos funcionários e a porra dos gastos da saúde! -- continuou furioso o Primeiro. -- Quero soluções!
Falou o da Saúde:
-- Primeiro, compreendo o seu mal-estar, mas que é que quer? Todos os velhos, recebem reforma e vivem à custa de remédios!
-- Nem percebo como conseguem comprar o carago dos medicamentos com as reformas que lhe pagamos... -- murmurou a das Finanças.
-- É um milagre! -- acrescentou o da economia.
De facto viver com uma reforma miserável, comprar medicamentos que levavam metade ou até mesmo a reforma por inteiro, era inacreditável como alguns reformados ainda conseguiam viver.
-- Quero soluções! Raios partam! -- Vociferou o Primeiro. -- Qualquer dia num há dinheiro para a nação nos pagar! Querem ir para o desemprego? Vão viver de quê, seus imbecis?
Ficaram calados. O da Economia abriu a boca:
-- Em Inglaterra tiveram o mesmo problema...
-- Ai sim? E como resolveram a coisa?
O da Saúde aproveitou para falar:
-- Fizeram um novo método de triagem...
-- Que raio é isso? -- perguntou a das Finanças.
-- É o que tu tens para perdoar impostos à Banca, e deixar prescrever dívidas ao fisco ao Amorim... -- atirou o da Economia.
-- ‘Tás muito engraçadinho, vê lá se queres que te corte o orçamento... -- rosnou a das Finanças.
-- Por favor, senhores! -- disse o Primeiro. -- Estou a tentar resolver o carago de um problema sério, não estou aqui para brincar à apanhada!
O da Saúde voltou a falar:
-- Os ingleses, começaram a fazer triagem nos hospitais... Determinavam nessa triagem quem seria atendido em primeiro lugar...
-- Traduza lá para a gente perceber... -- comentou o da Economia.
-- Quer dizer que eles não atendiam toda a gente com o mesmo grau de cuidado... Havia alguns que podiam esperar...
-- Estou a ver... -- sorriu a das Finanças.
-- Explique lá melhor, por favor... -- pediu o da Economia.
-- Doentes crónicos, que só se penduram no sistema de segurança social, e nunca ficarão curados eram relegados... Da mesma forma os reformados...
-- E isso resolve alguma coisa? -- perguntou o da Economia.
-- Claro que resolve! -- vociferou a das Finanças -- Se morrerem poupamos em tratamentos e com sorte em reformas e em baixas! Percebe agora?
Percebia-se claramente.
-- Ahhhhhh... -- disse espantado o da Economia. -- Dessa só um nazi é que se lembrava!
-- Não seja parvo! -- ripostou a das Finaças.
-- É uma excelente ideia! -- aprovou o Primeiro.
Ficou tudo calado.
A das Finanças voltou a abanar a cabeça em sinal afirmativo.
-- Já repararam? -- convidou o Primeiro. -- As nossas famílias não serão afectadas, temos seguros de saúde, clínicas privadas e reformas gordas. Ah Ah Ah...
O riso do Primeiro soou num tom sinistro.
-- Quero isso aprovado no próximo conselho. Conto com o vosso apoio. -- concluiu o Primeiro.
-- Já agora como se chama esse método de triagem tão interessante? -- Quis saber a das Finanças.
Responde o da saúde:
-- Triagem de Manchester...

29 janeiro 2004

Outra carta de amor...


Amor,

Escrevo-te esta nova carta, para que não gastes as antigas, à força de repetidamente as leres. Fica tranquila, pois reitero nesta o que já te tinha dito nas anteriores: Que te amo!
Também como podia ser de outro modo? Se o tempo que passa, me faz conhecer-te melhor? E igual à ostra no teu íntimo, escondes uma pérola!
Sei que já não está na moda escrever cartas de amor, mas que me importa? E tu importas-te que as escreva? Acho que não… Afinal, continuas a ler as antigas.
Deixa que te conte que o tempo não te rouba o encanto, apenas renova os teus mistérios, e me incita a descobrir-te de novo. É como quando depois da chuva num dia de Verão, a luz parece mais clara, as cores mais saturadas, a nitidez da paisagem parece saída de um desenho perfeito.
Sim, tens razão, exagero. O desenho nunca poderia estar ao teu nível, por muito perfeito que fosse, seria sempre um esboço de ti.
Às vezes gostava de ser cego. Assim deixarias que me aproximasse e te tocasse, sem qualquer constrangimento. Ou então talvez pudesse ser ao menos escultor. E tu posarias para mim… Mas sei que não ficaria bem, as minhas tremeriam todo o tempo!
Tens razão, exagero de novo. Sou cego, pois só te vejo a ti, e as minhas mãos tremem todo o tempo com a vontade louca que tenho de te tocar!
Vou terminar por aqui, tem de ser. É que o tempo me é pouco para te sonhar!
Fica bem amor, espera-me em breve,

Do teu mais que tudo

28 janeiro 2004

Intervalo


Perdido. Actuara toda a vida e agora só no meio do deserto, não tinha público, era só ele mesmo. E a vontade que tinha era de rir. O deserto era belo, um mar de areia em tons dourados. Merecia um Óscar, porque fora um excepcional actor. Toda a sua vida fora actuar para os outros, representar um papel.
Agora estava só com os seus demónios, mas o deserto, a ausência de gente, a leveza de não ter que interpretar um papel, dava-lhe uma paz, que nunca antes sentira. Olhou para dentro de si, não para procurar, não para encontrar, não para descobrir, mas apenas para entender se a sua vida tinha qualquer sentido.
Poderia interpretar ainda um último papel? O do herói que sobrevive? A tentação era forte.
Sentou-se na areia de uma duna alta, os grãozinhos rolavam um após outro, depois que os sobressaltara. Talvez a duna representasse a vida, e os grãos de areia fossem os instantes que guardámos. Tinha muitas imagens na cabeça, milhares delas, da sua permanente representação. Mas eram apenas recordações duras, como areia. Onde estava o sentimento?
Deixou-se levar no corrupio louco das recordações sem qualquer nexo. Eram imagens a invadi-lo, como se fosse um resumo de toda a sua carreira, numa qualquer sessão de prémios da Academia. Mas não eram sequências de nenhum filme, eram restos da sua vida.
Tinha tido algum sentido?
Forçou-se a olhar para dentro de si, não havia ali ninguém, o tempo era dele. Riu-se outra vez. Sentia-se nervoso por estar frente a frente consigo mesmo.
-- Olá! Sou o António… -- riu-se de novo, fingindo apresentar-se a si mesmo.
"Não tem graça!" -- pensou.
Via-se como um menino, sensível, a esconder-se de alguém (de si mesmo?), atrás de uma porta. Lá dentro, onde ele estava como menino, havia muita luz, tanta como a que há no deserto no pino do dia.
-- Posso entrar? -- perguntou ele ao menino.
O menino continuou a espreitar por detrás da porta, agora um pouco mais aberta, a cara do menino num sorriso. Se ele era aquele menino, até que era simpático. Avançou, rumo à porta. E quando avançou, o menino pareceu assustar-se numa cara de medo, e rápido bateu com a porta.
Ainda não seria daquela vez que conseguiria entrar. E enquanto não conseguisse entrar, teria que imaginar o que o menino poderia ser. Representaria ainda mais uns quantos papéis, na tentativa de descobrir um em que se sentisse confortável.
Deitou-se na areia e olhou as estrelas, no ar límpido do deserto. Era noite. Em breve pegaria no sono, ficaria bem. Seria intervalo.

27 janeiro 2004

NISAC20


Vinha a sentir-se mal há vários dias, uma terrível dor de barriga, e sentia-se inchada. Foi ao médico de família e este mandou fazer uma ecografia.
-- Pois é, fica tranquila que não estás grávida... -- disse-lhe o médico.
Ela sorriu:
-- O que é Sr. Doutor?
-- Bem... pelos resultados são quistos... é uma coisa que Às vezes aparece. Só que este quisto está crescido, tem 4 cms. Parece que estás grávida de 2 meses...
-- E o que me aconselha Dr?
-- Acho que está na hora de tirar isto. é o que penso... Mas se quiseres outra opinião, acho que fazes bem.
Ela ficou a matutar nas palavras do Dr e aquilo soava-lhe a coisa séria. Teve medo. Seria um cancro?
-- Sr. Dr poderá ser um cancro?
O médico ficou calado a olhar para ele e depois disse:
-- Não posso dizer... Mas depois da operação e da biopsia, podemos saber.
-- E se for Sr. Dr.?
-- Se for, quanto mais cedo dermos cabo dele, melhor! Temos mais hipóteses quando os descobrimos no início...
-- E o Sr Dr acha que com 4 cms estamos no início?
O médico que se tinha posto de mim para lhe dar a notícia voltou a sentar-se atrás da secretária.
-- De facto num é famoso... Mas não é assustador, se for benigno...Vou receitar-te uma coisa para as dores entretanto. Mas acho que deves pensar na operação o mais rápido possível.
Saiu perturbada e tinha em exames em breve. E aquelas dores horríveis... Saiu com todos os medos possíveis e impossíveis a bailarem-lhe no pensamento.

-- Não, Dr Leonel, ainda não temos os resultados toxicológicos nos primatas... -- respondeu Alex, o estagiário mais recente da Med-Gen, a empresa farmacêutica multinacional dedicada à pesquisa de novas drogas no combate ao cancro. Ele estava a trabalhar na unidade avançada de pesquisa do cancro dos órgãos reprodutores femininos, em especial do cancro do ovário. Trabalhavam na altura mais 5 pessoas na equipa, desenvolvendo uma espécie de vacina para o cancro do ovário. Várias empresas experimentavam esta original linha terapêutica. Tratava-se de vacinar os pacientes contra os seus próprios cancros.
De qualquer forma nos últimos 20 anos a sobrevivência ao cancro do ovário tinha aumentado 5%, e as expectativas para os novos tratamentos eram um aumento de sobrevivência de 15%! O que era óptimo para o cancro que de todos os do órgão reprodutor feminino era o mais mortífero. A terapia mais avançada para o cancro do o vário era o transplante de células estaminais e altas doses de quimioterapia. No fundo era apenas uma bomba para matar mosquitos e reduzir os efeitos colaterais. Pretendíamos algo melhor. Outra estratégia recente, eram os inibidores de proteína kinase que tinham por função desligar um enzima nas células cancerosas e que causa o crescimento anormal. Esta terapia parecia dar bons resultados, mas não era garantia de remissão do cancro. O elemento mais "fora do baralho" da equipa era o Prof. Herberto um apaixonado pela botânica. Formara-se em medicina, depois fizera carreira em oncologia, depois tirou farmácia mas apaixonou-se pela botânica e formou-se também em biologia com especialização em botânica. Estava convencido que a "árvore-da-vida" mencionada na Bíblia no livro de Génesis não era mitológica. Acho que era por isso que era olhado como excêntrico. Era afável, simpático, uma espécie de aventureiro de olhos escuros mas que faiscavam como lume.
-- Nunca mais me arranjam orçamento para ir para a Amazónia Alex... -- desabafou o Prof.Herberto. -- Sendo assim, temos de trabalhar com as plantas da casa! -- E riu-se.
Alex gostava de trabalhar com o Prof. Herberto, e o professor gostava dele.
-- Tinha graça, se a solução dos problemas oncológicos estivessem na grama, não era Prof.?
-- Tens razão meu filho, mas se isso fosse verdade, as vacas eram eternas!
Riram-se os dois. De facto a prova que a vida eterna era possível, centrava-se nas células cancerosas. A sua vitalidade excepcional, mostrava que se fosse possível controlar o seu crescimento, isto é, se essas células crescessem no lugar certo, podíamos ser eternos. Esse era a secreta investigação do Prof. Herberto. Ele não queria combater o cancro mas aproveitar-se dele!
-- Anda cá Alex! -- chamou o Prof Herberto.
-- Sim professor...
-- Aqueles ratos... que tu sabes, como estão? -- O professor referia-se a uma experiência paralela, que ele e o professor estavam a desenvolver. O professor tinha isolado uma substância numa planta, que Alex desconhecia, tinham-na administrado a ratos com cancro.
-- Professor, os ratos estão bem... Aparentemente. Não morreu nenhum, embora os do grupo de controlo já morreram todos. -- disse Alex. O professor sorriu.
-- Tiras-lhes um scan, vê como estão os tecidos tumorais. Diz-me isso logo tenhas os resultados. E... cuidado hein!
Alex sorriu, parecia que estavam a fazer qualquer coisa clandestina. E até estavam! A investigação era completamente desconhecida, e estavam a apontar os resultados nos PCs pessoais em vez de nos servidores da empresa.

Alex não conseguia acreditar nos resultados!
-- Professor!
-- Calma rapaz... -- aconselhou o Prof. Herberto. -- Que é que há?
-- é espantoso professor! Não há células tumorais!
-- O quê?!!
-- é isso professor! -- dizia Alex -- Nunca estiveram tão saudáveis! Fiz análises a tudo, e está confirmado, estes ratos estão cheios de vitalidade, eu diria até mais jovens professor!
-- Tens a certeza que não trocaram os ratos? -- perguntou com alguma ansiedade na voz o professor.
-- Tenho! Aliás eu e a estagiária da sala dos animais damo-nos muito bem...
O Professor sorriu:
-- Temos de testar isto em alguém...

Ela continuava a ter dores de barriga. E tinha medo de ir à operação. Decidiu consultar o melhor médico que havia, deram-lhe o nome do Dr. Herberto. Decidiu ir à consulta.
-- Olá menina... -- cumprimentou afável o Dr.Herberto.
-- Dr. aconselharam-me a ser operada, como vê aí na ecografia, tenho quistos nos ovários...
-- Já vi menina... Tem um quisto grande.
-- Será um cancro? -- perguntou ela com medo na voz.
O Dr Herberto sorriu:
-- Pode ser... -- o Dr. Herberto tinha visto também as análises especiais que mandara fazer e sabia que a miúda tinha mesmo um cancro. Nem precisava de fazer qualquer biopsia! Era uma questão de tempo até as metástases começarem a levar "o mal" a outros órgãos.
Decidiu arriscar:
-- A menina num quer ser operada, não é?
-- Se fosse possível evitar, preferia não ser Sr Dr.
O Prof. Herberto coçou o queixo.
-- Há uma nova substância que a pode ajudar... Mas está ainda em fase experimental. Não sabemos os riscos...
-- Acha que devo Sr Dr?
O professor detestava sempre dar aquelas notícias, em especial quando se tratava de gente muito jovem como era o caso.
-- A menina tem um cancro e este já se começa a espalhar através da corrente sanguínea... é uma mera questão de tempo.
A moça ficou branca, os olhos rasos de lágrimas.
-- Lamento. -- disse o Prof Herberto.
Ela respirou fundo e recompôs-se. O Prof Herberto gostou da atitude.
-- Quanto tempo tenho?
-- Sinceramente não sei... Tudo depende de onde ele vai surgir da próxima vez.
Ela respirou fundo outra vez. O Prof Herberto percebeu que esta não era uma miúda qualquer.
-- Esse seu medicamento novo, dá alguma esperança?
-- Muito sinceramente penso que sim...
-- Posso experimentar?
O Prof Herberto sorriu, a miúda era corajosa:
-- Sim, podemos experimentar.
-- E como se chama esse seu medicamento?
O Prof Herberto nunca pensara nisso! Olhou o nome dela e a idade, e juntou tudo:
-- NISAC20.

26 janeiro 2004

A vida e a morte, num breve apontamento


Não sei porquê, gosto mais das pessoas depois que morrem. São todas boas, como se a morte por milagre limpasse do registo todas as sacanices que fizeram em vida. E quanto mais importante o personagem, tanto mais as manifestações de pesar e de homenagem parecem ser amplificadas.
Até na morte há uma distinção social entre os que "são alguma coisa" e os "que nunca foram coisa nenhuma"!
Morrem uns miúdos intoxicados por monóxido de carbono, e prontos olha, azar! Mas já imaginaram? Porque tinham o esquentador na casa-de-banho? Porque não tinham o esquentador na cozinha, ou a instalação bem feita? Eu digo-vos amigos: Condições económicas! Eram pobres! Terem um esquentador já era luxo suficiente, assim não tinham que aquecer água ao lume numa panela e tomar banho numa bacia de plástico! Ainda há muita gente que toma banho assim, neste jardim à beira-mar plantado. É pena que seja um jardim de urtigas para a maioria. Estas duas crianças não precisavam ter morrido. Foram mortes plenamente evitáveis, desnecessárias, um crime no sentido da palavra.
Outros morreram, porque morreram. Não havia nada a fazer. A vida é assim, uma espécie de relógio, um dia pura e simplesmente não tem mais corda. Acaba-se!
É uma tragédia, mas é incontornável. É a tal morte da qual não se pode fugir, mesmo quando apanha alguém cedo na vida.
Lamento. Mas lamento essa, tanto quanto todas as outras.
Sonho um mundo sem morte, onde seremos todos eternos e felizes. Onde mesmo os mortos terão outra oportunidade e voltaram, aí sim, livres de todos os erros passados. Depois poderão escolher se quer repeti-los, ou se vão aproveitar a segunda oportunidade para serem melhores no sentido mais humano de ser melhor.
Sim acredito nisso, porque se não a vida é ainda mais vazia de sentido do que a futilidade actual, e acho a vida demasiado preciosa para se perder em futilidades.
Corram atrás do que quiserem, de uma bola ou de um tempo que sempre nos atraiçoa e nos condena e nos engole no esquecimento.
Prefiro correr atrás de sonhos que tenham sentido e que valham a pena.
Prefiro as ilusões nobres às realidades patéticas e perversas. Prefiro pensar no futuro, do que chorar o passado.
Prefiro sonhar a vida, do que viver a morte!

20 janeiro 2004

Um toque


Não sei porque ainda me lembro de ti, e te mando toques para o telemóvel. Nem sequer respondes, como se o teu tempo, não pudesse dar para o meu tempo. Nem era grande coisa o que esperava de ti, apenas uma retribuição, um toque teu. Mas não. Deves estar cheia de razões para não me ligar de volta. A maior de todas é que deves ter vergonha, porque dizias que me amavas e não passava tudo de uma enorme imposturice. Nunca me amaste, mas quiseste pensar que sim, que amavas. Como podias amar, se tu desconhecias até então o significado do verdadeiro amor?
Ficaste maravilhada quando to dei a descobrir, mas ao mesmo tempo assustada. Amar era dar. Dar dessa maneira como eu te mostrei, desprendida, sem olhar a consequências. Amar loucamente e sem condições. Foi demais para ti.
Não tens culpa. Apenas tens culpa de um corte tão radical. Podias ter ao menos ficado grata. Mas nem isso. Não admira, este mundo é ingrato e tu ainda fazes parte dele. Eu não. Sou um velho e os velhos têm o condão de pertencer a um tempo que se vai esquecendo. Por isso os velhos se esquecem, nesta corrida de andar para a frente, a um tempo onde tu também serás velha, e onde espero te recordes de mim. Será tarde nessa altura, mas é uma espécie de consolo que ainda conservo. Sei que terás saudade das nossas conversas, terás até mesmo saudades das coisas simples como um toque de telemóvel.

19 janeiro 2004

Em fuga!


As guerras sempre foram uma enorme estupidez! Mas agora ao olhar os estropiados que se aproximavam depois de cairem numa emboscada, a conclusão era mais do que óbvia. Chegaram queimados, desalentados, mortos embora respirassem e se mexessem.
E se morressem? Morreriam em nome de quê? Da pátria? Do Império? Da Liberdade?
E que importava isso? Morreriam e ponto final.
Sim, eu sei, os seres humanos são os únicos seres vivos, para quem há coisas que superam o valor da vida. Deve ser por isso que o sentimento religioso emerge. Mas mais vale um adorador vivo, do que um morto. Porque carga de água, os paraísos são sempre após a morte? Se viver é uma passagem como alguns dizem, então Deus é um sádico. Prefiro outra compreensão das coisas: Acho que os homens devem estimar a vida, e devem adorar a Deus, porque Ele é fonte da vida. O resto é mais complicado...
Eu era apenas um médico de uma organização não-governamental a fazer o meu trabalho: salvar vidas! Vidas que se obstinavam para a morte, atrás de um ideal, ou apenas de uma ideia. Não sei se morriam por si mesmos, para fugir à sua existência pobre ou se o faziam por não terem outra coisa para fazer, na pobreza mais extrema de todas.
Sou médico e não filósofo. Mas não entendo a facilidade com que a humanidade aceita cultivar e libertar ódios. Nem entendo esta força que nos impele para matanças sem fim. Não acho isso natural. O instinto mais básico é o da sobrevivêmcia, e a medecina tem vindo a mostrar como a maquinaria da sobrevida está tão bem montada em nós.
Julgo assim, que esta vontade de morte que às vezes nos habita é exógena. Eu diria mesmo que é alíenigena.
Em tempos remotos, julgavasse que era possível algo ser possuído por espíritos malignos. Eu tenho quase a certeza de que eles existem, na devassa que fazem à nossa dignidade, à nossa humanidade.
E acho presentes esses espíritos em cada ditador político, ou nos jogos de poder nas altas esferas. É um xadrez maldito, jogado por forças superiores às nossas. Quem nos acudirá?
E lá estava eu, outra vez interrompido nos meus pensamentos inquietantes, a fazer suturas ou administrar morfina.
Se perguntasse a qualquer destes porque morrem, olhar-me-íam de olhos abertos de pasmo ou de estupefcação e implorar-me-íam que não os deixasse morrer. E contudo depois de curados, seguirão inevitavelmente o rumo de uma qualquer escaramuça, até cairem mortos.
Nunca compreendi as guerras, nem neste continente, nem noutro qualquer. A guerra é contra a humanidade e sempre achei que os vencedores, são os que as evitam! E evitam-se poucas. Dizem que o melhor do mundo são as crianças, mas essas mesmas pegam cedo no gatilho e são capazes das maiores atrocidades. As crianças são afinal tão boas, quanto o mundo em que vivem. Deixei de acreditar em crianças há muito tempo. Por isso, não tenho filhos e foi uma opção deliberada.
As tropas inimigas (não minhas inimigas que não tenho partido em guerra nenhuma), aproximam-se. É a debandada geral! Já vi tantas, que esta é só mais uma. Aconselham-nos a abandonar as instalações, pois correm risco de serem bombardeadas. Os meus colaboradores apanham os medicamentos ainda disponíveis, e colocam-nos dentro do jipe. Por mim decido ir a pé, dar-me-á a possibilidade de ir reflectindo. Olhando so rostos dos sobreviventes dos que fogem. Mas ninguém foge por muito tempo. Sempre acabaremos por sucumbir a esse poder mortífero. Todos acabamos por morrer, de um modo ou de outro.
Talvez afinal a morte seja uma doença que contraímos ao nascer e que é incurável. Se compreendessemos isso, em toda a sua magnitude, devíamos fazer deste mundo um lugar melhor, mais justo, equitativo, amoroso. Afinal somos todos pacientes. Mas comportamo-nos como se fossemos eternos!
Os morteiros começaram a zumbir por cima das nossas cabeças e instintivamente mergulhamos no chão, na valeta à beira da estrada, alguém deixou cair um saco de milho que rolou até ao campo e explodiu. Fora da estrada havia minas nos campos. O pesadelo para as gerações vindouras, uma espécie de sementeira de morte e dor. Pensar que alguém ganhava dinheiro com isso, sentado numa poltrona confortável, tornava surrealista a vida. Como se tudo fosse um filme louco e sem sentido.
Voltamos a caminhar... Em breve todos os caminhos estariam terminados.

17 janeiro 2004

Vítimas das feras


Era noite escura como bréu e chovia torrencialmente. O sargento Almeida, arfava não sei se apenas de nervosismo se tinha apanhado mesmo uma bala como dizia que tinha apanhado.
-- Porra, apanhei uma bala no cu! -- gemia o sargento Almeida.
-- Vire-se lá meu sargento... -- pediu o enfermeiro. -- Não se vê nada...
-- Como quer que se veja neste inferno escuro como breu, meu enfermeiro? -- comentou o soldado Alves.
-- Eu se fosse a vocês falava mais alto... -- gemeu o sargento. -- Assim eles podem vir acabar o trabalho...
A malta percebeu a mensagem e estabelecemos um perímetro de segurança.
-- Tenho a perna presa... -- queixou-se o sargento
O enfermeiro puxou-lhe as calças e com o soldado Alves a segurar a laterna examinou melhor.
-- Tem um cu lindo meu sargento, mas nada de sinal de bala...
-- Queres que te parta o nariz? -- Perguntou o sargento.
-- Caro sargento, antes isso que o meu sargento apanhar uma bala! Mas acho que não apanhou bala nenhuma, mas tem aqui uma mordedura de cobra!
-- De cobra? Raios partam a puta do bicho... -- praguejou o sargento.
-- Vou dar-lhe soro anti-ofídico e esperemos que dê certo.
-- Obrigado pelo optimismo... -- comentou o sargento.
Estava o enfermeiro José a picar o lindo cu do sargento quando pertíssimo, à direita da sua posição rebentou o matraquear de uma metralhadora ligeira.
O enfermeiro deitou-se sobre o sargento para o proteger, e sabe-se lá porque carga de água, nenhum homem da companhia disparou um tiro. Ainda bem! Para dispararem assim tão perto, de certeza que não sabiam que estávamos ali. Em silêncio os homens posicionaram-se e esperaram para a emboscada.
Mas a metralhadora calou-se e nunca mais deu pio. E o silêncio prolongou-se por horas. O sargento adormeceu, e estava com febre. Tínhamos de partir, não podíamos ficar ali à espera que morresse.
Em voz sussurrada ,o enfermeiro mandou improvisar uma maca. Colocaram nela o sargento e partiram com o medo na garganta, e o dedo nervoso no gatilho.
O dia começava a clarear e estavam todos exaustos e cansados. Era pouco provável que voltassem a atacar à luz do dia.
O soldado Alves que carregava o sargento atreveu-se a perguntar:
-- Como está ele enfermeiro?
O enfermeiro aproximou-se, apalpou-lhe o pulso.
-- Está morto soldado.
-- Morto meu sargento? Porra!
-- Sim, não tem pulso... -- confirmou o enfermeiro.
-- Isto é incrível enfermeiro! Um gajo vem prá guerra e morre de picada de cobra!
Os homens pararam. Tudo ficou em silêncio como se fosse uma homenagem.
O céu clareava de vermelho a nascente, o dia ía ser quente.
Puseram-se a caminho, e foram dar a uma picada.
-- Cuidado... -- disse alguém. -- Estes sacanas costumam minar as picadas!
Alguém arranjou uma vara e foi a picar o caminho na frente, e de repente surgindo de lugar nenhum um hipopótamo atacou o rapaz e estralhaçou-o em dois nas suas enormes mandíbulas! Dispararam todos por instinto quando viram que não havia nada a fazer.
-- Meu Deus! Isto é de loucos! Agora um hipopótamo?
Foi então que se ouviu a retaguarda um rugido medonho e gritos.
-- O Zeca foi apanhado por um leão!
-- Estamos feitos! -- disse o soldado Alves.
-- Calma! Tudo em passo de corrida...
-- Foi feitiço... -- disse alguém.
-- Qual feitiço, qual carapuça! -- disse o Luís -- É a maldita seca! Os animais andam tresloucados com a fome...
-- Pois! Somos vítimas das feras!

16 janeiro 2004

Há coisas dos diabos!


Tudo não passaria de um caso comum de mal-entendido, mas os males entendidos nos dias actuais têm tendência a converterem-se num drama, e sem quê nem para quê, este foi um desses tristes casos.
O rapaz ía apressado, todas as testemunhas são unànimes nesse ponto, mas quando ele encontrou o outro sujeito estava longe de imaginar que a sua vida andava no fio da navalha. E acabou por escorregar num dos deslizes impensáveis, que caiem na categoria de improvável! Mas a natureza gosta de confirmar o facto de que embora improvável existe sempre a remota possibilidade de acontecer, ou seja, é improvável mas não de todo impossível. Depois as regras do acaso fazem o resto.
O rapaz avançou na passadeira sem perceber que o camião vinha um nadinha acelerado para aproveitar o sinal verde, que na perspectiva do camionista estaria quase a cair. Destas duas percepções, tanto uma como a outra estavam redondamente desajustadas, deu-se o inevitável: O camião bateu violentamente no rapaz, que foi projectado alguns metros fora da passadeira.
Juntaram-se os mirones habituais, e tal como em todas as coisas improváveis, o espanto começou a tomar conta das pessoas que iam ouvindo a história. Afinal o rapaz era professor do filho do camionista, e como demorara um bocadinho mais do que o habitual para arranjar um estacionamento, atrasara-se. Se fosse um dia de aulas normal, não haveria problema chegar um pouco atrasado, o contínuo segurava os míudos dez minutos, tempo mais do que suficiente, para ele chegar. Mas naquele dia havia um teste, e era precisamente à turma à qual pertencia o filho do camionista. Mais ainda, o professor atrasara-se porque de manhã o carro não pegara, estava com a bateria em baixo e quem o desenrascara fora o irmão do camionista que era mecànico e estava a caminho da oficina!
Mas as coincidências ainda não tinham acabado! O polícia que entretanto chegou para fazer a participação do sinistro era casado com a prima da esposa do professor. O médico do INEM que ocorreu ao local era sobrinho do camionista, e o bombeiro que conduzia a ambulància era vizinho do polícia que fazia a participação e o filho andava na mesma escola onde o professor dava aulas, sendo colega de turma do filho do camionista!
Como alguém resumiu muito bem: Isto é uma coisa dos diabos!

15 janeiro 2004

PERFECT ACTOR MACHINE


---- Connosco o grande inventor Professor Nero! O inventor do ORGASMOTRON e da LOVE REMOVAL MACHINE. Inventos que demos notícia nesta rádio em primeira--mão! Pr. Nero é mais uma vez um grande prazer tê--lo entre nós! O que nos trás desta vez Pr. Nero?
---- Desta vez trata--se de um aparelho biónico, portanto é um implante electrónico, que pode revolucionar a arte de representar...
---- Explique--nos por favor Professor!
---- Recentemente António Damásio, o mais conceituado neurologista e estudioso do funcionamento do cérebro, desenvolveu conceitos muito relevantes sobre emoção, sentimento. Com base no seu trabalho, procurámos criar um dispositivo que intervêm a nível cerebral, gerando os padrões relacionados com a expressão das emoções...
---- Quer dizer Professor, que com essa máquina pode suscitar sentimentos de tristeza ou alegria?
---- Sim, basicamente é isso...
---- Mas Professor essa máquina até pode ser utilizada para ajudar os deprimidos!
---- Bem... É precisa alguma moderação. A máquina cria um mapa cerebral correspondente a uma determinada emoção, mas esta emoção carece de conteúdo. Numa analogia, para o caso de uma pessoa deprimida: É como ter fome e esta máquina dá--lhe a ilusão de saciedade, mas não lhe mata a fome, entende? Portanto será de pouca utilidade para um deprimido, porque findo o efeito da máquina a pessoa continuará deprimida. Eventualmente pode ser um recurso em episódios que envolvam tendências suicidas. Mas como depreende, não seria bom andar sempre com a máquina ligada...
---- Mas porque não Pr.Nero? Afinal há pessoas cuja vida depende de uma máquina todos os dias. Imagine as pessoas que usam pace--makers!
---- Faz uma analogia sem dúvida interessante, mas nutro algumas reservas. De facto e como mostrou o ilustre Damásio, as emoções resultam de configurações corporais percebidas por meio da maquinaria neurológica. Não fazemos ideia do que poderá acontecer, se induzirmos permanentemente no cérebro uma configuração do corpo que não corresponde à realidade. Presumo, e só uma presunção intuitiva, que poderíamos danificar de um modo perigoso o nosso corpo físico. Como sabe há uma correlação entre o corpo e a emoção, e o que percebemos depois como sentimento. Induzir um estado de beatitude permanente, contrário ao que o corpo realmente configura, pode criar uma espécie de divórcio entre o que sentimos que somos e o que realmente somos.
---- Seríamos como que possuídos?
---- Talvez seja uma boa analogia sim. Seria um ser a que não corresponderia o corpo. Temo só de pensar nas consequências. Daí que este implante tenha por orientação, os profissionais da representação. Aqueles que induzem emoções em si mesmos, para expressar sentimentos que afinal não têm enquanto parte integrante das suas vidas. Trata--se de uma representação e não de uma vivência. A máquina actua como facilitadora da expressão dos sentimentos que se pretendem representar...
---- Desculpe interrompê--lo Professor, mas isso não quererá dizer que se perde um pouco o talento? Isto é, com essa máquina qualquer actor menos talentoso pode dar um realismo impressionante à sua actuação!
---- Sim, creio que sim, embora ache, que não basta ter uma representação corporal induzida para expressar bem um sentimento. Ou seja, para expressá--lo com arte. Isso é que constitui o talento do actor. Essa capacidade de povoar a emoção, com conteúdos tirados da sua própria experiência e dessa forma colorir uma emoção, que é apenas um receptáculo para a sua representação.
---- Caro Prof. Nero, o seu trabalho deixa--nos pasmos de admiração! Sinceramente desejo que continue as suas investigações e que o seu génio seja reconhecido...
---- Agradeço as suas amáveis palavras, mas em ciência, avançamos sobre o trabalho dos que nos antecedem ou são nossos contemporàneos e nos estimulam a nossa própria actividade intelectual. Nenhum de nós é um ser isolado e é isso que de alguma forma faz a nossa grandeza. Por isso, sem falsas modéstias, é preciso perceber que o meu trabalho é apenas um contributo no avanço do campo do conhecimento humano e vale apenas como uma diminuta parcela dele.
---- Agradecido por ter vindo Pr.Nero. E reconhecemos nas suas palavras uma humildade que o engrandece como homem. Obrigado! E caros rádio--ouvintes, estivemos com o Pr. Nero e a sua nova invenção o PERFECT ACTOR MACHINE, mais conhecida como PAM!

14 janeiro 2004

O Veneno da Aranha


Agora o planeta era deles. Fora nosso e era inteiramente deles. Chegaram com as suas naves, como embaixadores de um Império distante para comerciar, diziam. Mas foram velhacos subtis. As suas naves espalharam na atmosfera do planeta uma substância que nos entristeceu, desmoralizou. Depois vieram eles como benfeitores, substituíram os nossos líderes e ficaram eles. Só mais tarde compreendemos, mas era tarde demais. Eles eram especialistas em farmácia, dominavam todas as substâncias psicotrópicas existentes e dominavam técnicas de psicologia de massas.
Ainda agora há milhares de compatriotas meus que julgam que a única solução dos nossos problemas são estes estrangeiros. Como é fácil enganar os ignorantes, ou manipular populações inteiras!
Os estrangeiros não queriam saber de nós para nada, apenas lhe interessava o seu comércio. Depois de nos terem rapinado tudo, deixar-nos-íam entregues à nossa sorte, só que bem mais pobres!
Vieram como libertadores, mas a única coisa que lhes interessava era libertarem-nos das nossas riquezas! Era uma espécie de Império com táctica de aranha, deixavam-nos bater na rede, estrebuchar um bocadinho e depois enrolavam-nos em fio de seda e chupavam-nos tudo quanto lhes interessava. Depois largavam a presa e partiam à procura de outra.
Só que neste caso a presa eram planetas inteiros.
Estou na região desértica do meu planeta. Aqui os estrangeiros não têm qualquer interesse e não largam substâncias psicotrópicas, pelo menos se julgarem que não somos nenhuma ameaça. E por agora não somos...
Somos a resistência, uma resistência que nunca lhes passou pela cabeça! Vamos combatê-los com a sua própria doença, estamos a desenvolver uma substância psicotrópica que actua da seguinte maneira: Quanto maior a ganância da pessoa, quanto mais for hipócrita e mentirosa na declaração das suas intenções mais profunda é a sua acção! Ela dá uma sensação de mau estar de náusea e se a pessoa persistir na ganância, na hipocrisia, passa a ter dores viscerais tão intensas que podem levar à loucura! Ainda por cima, não passam imediatamente e apenas podem ser atenuadas pela supressão dos sentimentos de ganância e de hipocrisia.
Fizemos uma experiência num dos mercados próximos com alguns mercadores estrangeiros e foi demais! Até reviravam os olhos com as dores!

Estamos agora curiosos de experimentar esta droga em políticos!

13 janeiro 2004

Sem Nome


Por muitos anos Yago foi chamado Planeta X, porque os seus habitantes se recusavam a dizer o seu nome. Os habitantes de Yago não se tratam nunca pelos nomes. O nome de alguém é-lhe dado pelos pais depois de escutarem o seu mestre. Apenas sabem o seu nome que lhe é transmitido da boca do pai ao seu ouvido numa cerimónia que marca a passagem da adolescência à idade adulta. Só depois de saber o seu nome, é que um yagoano é realmente um homem. No caso das meninas é em tudo semelhante, só que nesse caso é a mãe que diz o nome ao ouvido da sua filha.
Os yagoanos acreditam piamente no poder da palavra. Curiosamente acham que a palavra pode mudar montanhas, e que só com um grito dado de acordo com os antigos ritos, é possível matar um homem.
Eles não dão nomes às coisas, embora cada coisa tenha um nome. A sua literatura mais selecta chama as coisas e os personagens por nome, mas esses livros apenas podem ser lidos por pessoas maduras, isto quer dizer que ninguém os lê antes da meia-idade. Eles acreditam que nomear as coisas condiciona-as. Chamar a pessoa por seu nome imprime nela uma direcção, e eles que amam a liberdade sentem que não podem fazer isso. As coisas e os seres devem seguir o seu próprio caminho, e este é ímpar segundo a filosofia yagoana.
Embora uma rosa, seja uma rosa, talvez descubra que para os yagoanos ela é ‘a flor cor-de-rosa de perfume intenso’ ou ‘a flor de suaves pétalas com perfume intenso’ ou qualquer coisa semelhante. Esta indefinição na coisa referida, a ausência de nomeação, fez dos yagoanos um povo de poetas, de músicos, de artistas. São também extraordinários observadores e percebem subtilezas que nos escapam. É de mau tom, perguntar o nome de alguém. Normalmente a única ocasião em que alguém diz o seu nome é na cerimónia de casamento, quando o noivo diz o seu nome ao ouvido da noiva, e esta faz o mesmo ao noivo. Dizer o nome, é um acto de intimidade, de profunda intimidade. Saber o nome de alguém é como ter a chave que dá acesso à alma da pessoa.
Não sei se eles têm razão, nem se não. Acho que isso nem é o mais importante. Afinal sabemos o nome de muitas pessoas e contudo desconhecemo-las em absoluto. Identificar alguém sem nome, obriga a uma atenção redobrada, a outro interesse, a conhecer a pessoa melhor, de modo a identificá-lo pelas suas peculiaridades, pelo que o faz ímpar entre todos os outros. É algo que confere dignidade e profundidade às relações entre as pessoas.
Estou em Yago há 30 anos, estabeleci-me aqui como comerciante, aqui é também aque le que faz a ponte entre as culturas exógenas e a cultura de Yago. Como depreendem para os yagoanos os estrangeiros são uns bárbaros rudes, que tratam tudo por nome.
Hoje é-me concedida uma grande honra. O círculo de amigos aqui em Yago, decidiu que eu merecia um nome, tal como eles têm, um nome secreto, que só eu e o meu mestre (todo o yagoano tem um mestre), saberemos. Eu di-lo-ei a quem me for mais íntimo apenas.
Até agora fui alguém sem nome, um adolescente, finalmente vou tornar-me um homem.

12 janeiro 2004

Joana


Há dias em que acordo como cego.
Em que olho à volta e nada vejo, ou melhor o que vejo não corresponde ao que lá está. É pura imaginação. Como quando sonho com a Joana, nos seios dela, na curva das costas, na pose que ela faz. A Joana é uma gata que ronrona, que arranha e que no fundo me consegue dar a volta à cabeça. Mas a Joana não existe! Ela é uma pura criação da minha cabeça ou dos meus desejos. Embora me sinta quase levado a concluir que ela é o meu corpo a ultrapassar a frustração.
Não entendo nada disto muito bem. É como os pesadelos. Para que raio de coisa queremos os pesadelos, se a vida já por si, é pesadelo que baste? Será que a nossa mente conserva uma matriz sádica?
No meu caso acho que deve até estar exacerbada essa matriz, porque até sonhar, em especial com a Joana, é no mínimo sadismo puro. Acordo com a boca a saber aos beijos dela, e ela não existe! Podia procurá-la em todos os lugares do mundo, que ela existe apenas na minha cabeça, nos meus sonhos ou quando penso nos sonhos que tive!
Será que isto é endoidar?
Ou à falta de bons programas de televisão, o cérebro compensa com isto? De facto sou pessoa de ver pouca televisão, quase nenhuma. Dantes era um viciado em telejornais, conseguia ver diversos ao mesmo tempo e depois ainda apanhava por inteiro os que davam em horas desencontradas. Mas agora, já não consigo ver as notícias e manter o meu juízo perfeito. As injustiças são tantas, que se continuar a ver as notícias me converto de certeza em terrorista!
Mas se calhar é mesmo para ser assim. Os políticos precisam de terroristas, para justificarem o seu terrorismo de estado.
Mas percebem agora porque o meu cérebro prefere a Joana, não?

11 janeiro 2004

A Flor de Iridanis



No planeta Iridanis, existe uma flor. É uma flor extraordinária de singular beleza, de perfume delicado; o que por si só, já seria digno de nota. Mas a flor de Iridanis, que apenas se dá em Iridanis e em mais lugar nenhum do Universo, tem propriedades que mais nenhuma tem. O povo de Iridanis é feliz, sempre bem-humorado, sorridente, despreocupado. Em Iridanis a tristeza é fugaz, a ansiedade desconhecida. Tudo por causa das flores que aí existem.
Os cientistas estudaram-na e assemelham o seu efeito ao Prozac ou à cocaína, mas suspeitam que por estes princípios serem liberados de forma tão branda, perdem a sua toxicidade e não geram habituação. Não se conhecem nenhuns efeitos secundários desagradáveis ou nefastos.
Os puritanos acham que os habitantes de Iridanis andam sempre ‘pedrados’ e dessa maneira acham que eles são como os hippies dos anos 60. Só que perdoam-lhes o facto de nunca terem tido outra alternativa. Presumo que no entender dos puritanos, a falta de alternativas converte-se numa virtude.
Iridanis atraiu toda a espécie de infelizes à procura da felicidade, mesmo que sustentada a flores psicotrópicas. Abriram-se clínicas de bem-estar e há sempre alguém a lucrar com o que a natureza tão generosa, forneceu de graça. Para aqui vem todos os deprimidos crónicos, os que escaparam de tentativas de suicídio ou os que já não tinham outra alternativa. Aqui dão-se bem, aqui permanecem bem. Mas é só aqui.
Filósofos postulam, que este é verdadeiro paraíso, mas não sabem de que falam. Se isto fosse o paraíso, então o paraíso era um conjunto de infelizes ‘pedrados’, donde um drogado em ‘viagem’ encontrava o paraíso no caminho! Penso que é por isso também que os políticos à falta de melhor alternativa, querem legalizar o consumo. Além disso é a única forma de travar o afluxo para Iridanis, que já tem todas as rotas comerciais congestionadas.
Para aqui vêm também os moribundos, doentes com cancro terminal, ou então velhos que não esperam mais nada do que a morte. Os filhos trazem-nos para aqui, e acham que é tudo o que lhes devem. Embora estes velhos sorriam, nunca os vi rir, e nota-se-lhes nos olhos um negrume que nenhum perfume de flor pode mascarar.
Vim também.
Não sei bem em que categoria me colocar. Devo ser mais um infeliz apenas. Vim de boleia num cargueiro galáctico, a servir refeições a uma tripulação de broncos, que se divertiam a sujar o chão para eu ter que fazer. As humilhações porque passamos à procura da felicidade!
Em novo (agora estou na meia-idade), sempre me portei bem, como era de esperar na sociedade em que vivia. Não bebia em demasia, não fornicava, nem me meti em drogas. Mas também nunca me senti verdadeiramente feliz. É justo equilibrar os pratos da balança agora, embora saiba que os puritanos nunca me perdoarão! Eles acham que o sofrimento e a dor, expurgam a alma de pecados. Mas eu sei que a alma não existe. Por isso, conto passar os meus dias aqui, cheirando flores, como outros cheiram cocaína. Ficarei aqui como os infelizes em busca de felicidade, como os deprimidos ou os suicidas. Ficarei aqui como aqueles com cancro terminal, ou os que vêm de velho para morrer. Pelo menos sentir a felicidade, nem que seja por uns breves dias, ou meses, ou anos. No fundo está tudo muito bem feito.
Nunca digam que Deus é injusto.

10 janeiro 2004

A Caixa de fósforos


Por todo o redor havia sinais de destruição. Nem sabia muito bem como encarar tudo aquilo, mas acordara com a cama a tremer e onde fora a janela e uma parede era um buraco negro escuro, por onde entrava frio.
Sim tinha a percepção de que aquilo era pior que um pesadelo. Fora um terramoto e sentado na cama, ao ar frio da madrugada tomava a consciência do luto e da dor que viria. Tomou rapidamente a decisão, saiu da cama, vestiu as meias, calçou as sapatilhas, arrancou uns cobertores da cama e enrolou-se neles. Gritou:
-- Está alguém a aí?
Ouviu uns gemidos logo abaixo, mas não fazia ideia de como sair dali. Estava escuro como breu, e a única claridade vinha apenas do sítio onde antes houvera uma parede. Qual a decisão mais sensata? Dirigir-se à porta? Foi isso que decidiu. Tacteou ao longo da parede, até à porta e abriu... A corrente de ar, atirou a porta, e tomado de surpresa caiu, e ouviu ranger o chão, uma espécie de gemido da placa, e teve medo. Ficou quieto, sustendo a respiração. Levantou-se com cuidado, e foi fechar a porta, que resistiu, mas por fim lá conseguiu. Teria que aguardar a manhã, até que fosse claro e pudesse ter noção da sua situação.
Invadiu a frustração, ele vivo, talvez centenas a precisarem desesperadamente de ajuda, e ele encurralado no terceiro andar de um prédio, talvez prestes a ruir.
A ansiedade e o cansaço, venceram o frio e o medo, e acabou por adormecer. Acordou, enrolado nos cobertores, ao uivo dos cães domésticos, que anunciariam por certo os dramas dos seus donos. Sem conseguir retê-las, as lágrimas escorreram-lhe pela cara, e sentiu-se profundamente culpado por estar vivo. Ao olhar diante de si, para onde outrora fora uma parede com uma janela para os andares vizinhos, não havia nada. Nem a janela, nem a parede, mas também não havia os prédios, era apenas um mar de entulho, fumegante aqui e ali.
Pateticamente, naquela manhã de Dezembro, o sol nascia radioso, sem qualquer nuvem, e não fazia frio, o tempo estava tépido, e o vento que soprara quando ele acordara acalmara a ponto de ser uma brisa.
Tentou aproximar-se da borda da parede que ruíra, mas a laje de concreto, começou a oscilar de modo perigoso e ele remeteu-se para o canto, onde passara as últimas horas. Pensou nos seus, e voltou de novo a chorar. Pensou nos vizinhos, e continuou a chorar. Pensou em todos aqueles montes de entulho que faziam um mar diante de si, e ao pensar nas pessoas que havia ali, na cidade, continuou a chorar.
Pensou gritar, mas a voz ficou-lhe presa na garganta. Sentiu-se culpado, como se a morte de todos os outros, lhe perguntasse com que direito ficara vivo!
Já o Sol ia alto quando houve um helicóptero sobrevoando a área. O instinto de sobrevivência apoderou-se dele, e sem pensar levantou-se e descobrindo-se, agarrou um cobertor e agitou-o. Não ouviu a laje ranger outra vez, e nem ligou quando pedaços de parede e do tecto foram desabando. O helicóptero aproximou-se e depois deu uma curva e desapareceu. Sentou-se de novo no chão do seu quarto, ou melhor, no que restava dele. Pensou na vida como uma sequência de acontecimentos trágicos, que de salto em salto nos aproximam cada vez mais da morte. Riu-se!
Afinal todas as tentativas de viver, eram apenas mais uma frustração. No fim a morte sairia mais uma vez vitoriosa. O buraco em frente a si, convidava-o a correr e atirar-se para o monte de entulho. Todas as vidas não passavam afinal disso, entulho!
Ao mesmo tempo reflectiu no paradoxo da sua sobrevivência, e ficou curioso de saber o que a vida arquitectara para ele. Como uma folha nas correntes de ar, que acaba sempre por cair. Devia aproveitar o voo, já que é só de ida!

Finalmente uma equipa de resgate veio ao seu encontro. Todo o prédio onde vivia ruíra de alto abaixo e apenas a parede do seu quarto, onde havia a porta, era tudo o que restava. Os vizinhos de baixo, e os vizinhos de cima, estavam lá em baixo no entulho, e ele pateticamente, num pedaço de laje, do que fora o chão do seu quarto, como um pássaro numa gaiola.
A equipa de resgate, não sabia como o tirar de lá. Não havia escadas suficientemente altas disponíveis, e não sabia se o peso das escadas quando as encostassem, não fariam tombar a frágil parede que ainda sustinha o pedaço de chão onde ele estava. Não podia aproximar o helicóptero, pois a deslocação de ar das hélices, seriam com certeza suficiente para deitar abaixo o que restava do prédio. Tinham até medo de lhe atirarem comida, ou água, porque o prédio era como uma flor, e ele como um insecto sem asas.
Só podia esperar... esperar...

As equipas de socorro começaram a remover o entulho, e apressavam-se para fazer chegar a ele uma grua, de modo a que fosse possível tirá-lo daquela situação. Ao fim de dois dias chegaram perto, com a grua. Ele estava cansado, muito cansado, desidratado, com frio. Alternava períodos de consciência, com períodos em que ia por um túnel, e em que os seus o chamavam para um lugar de luz, mas ele não queria ir.
Ficava imaginando que todos somos como fósforos dentro de uma mesma caixa… Sim, e de vez em quando acendesse um. Vão acendendo todos até chegar ao fim da caixa.

Retiraram-no e transportaram-no rápido para um hospital. Depois as coisas seguiram o percurso das coisas rotineiras. Recebeu alta, algum apoio do governo e recomeçou a vida, tal como a cidade recomeçava a sua. Lembrou-se das coisas todas, como eram antes, durante e depois.
Agora sabia: A vida é como o riscar de um fósforo, começa num fulgor e acaba em cinza!

09 janeiro 2004

Os passos dela...


Ouvi os passos dela no andar de cima, nas tábuas rangentes do soalho. Esperava todas as noites aqueles passos leves e delicados e ficava imaginando os seus pés nus beijando as tábuas polidas e lisas, quem sabe até, enceradas.
Vi-a passar por mim às vezes nas escadas do prédio, sorria-lhe, com o meu melhor sorriso, ela sorria quase imperceptível, e eu ficava olhando os seus cabelos loiros compridos, que lhe desciam até ao fundo das costas como uma mantilha de ouro. Ela nunca olhava para trás... Eu ficava um tempo infinito olhando-a subindo os degraus.
Nunca soube se tinha namorado, se era casada, se viúva!
Ouvia-lhe os passos, e quase soavam a música, para o meu doido coração que se entregara, numa paixão platónica. Ouvia os passos dela, lembrava os seus longos cabelos loiros, e ficava a imaginar loucuras, olhando o tecto, deitado na minha cama.
Um dia na entrada do prédio tentara falar-lhe. Sobre o dia estar bonito, tão bonito como ela. Corou, mas mais uma vez furtou-se ao contacto. Que segredo guardaria?
Nunca vi qualquer visita. Entrava discreta, saía com a mesma discrição. Nunca ouvi qualquer tipo de música vir do seu apartamento, nem um ruído mais alto. Nem o barulho de panelas ou coisas a cair.
Ficava imaginando se não seria um anjo, apenas um anjo, que saía para cumprir missões das quais não fazia a menor ideia. Mas era um anjo bom, a fazer bem. A mim fazia! Embora começasse a sentir uma frustraçãozinha a crescer dentro do peito. Eu amava aquele anjo, consolando na ideia de que os anjos são inatingíveis.
Mas um dia, insisti em levar-lhe os sacos de compras, foi um acaso. Eu entrara no prédio e ela ía começar a subir as escadas. Agarrei-lhe nos sacos e ela pareceu assustar-se, mas nem um ai disse. Depois subimos, ela à frente, eu atrás encantado com os longuíssimos cabelos loiros. Chegamos à porta dela, e ela abriu a porta, agarrou os sacos e aproximou-se de mim, e deu-me um beijo na face. Não resisti, agarrei-a por um braço...
-- Desculpe, -- ela olhava-me fixamente, a ponto de me incomodar –- mas eu gostava muito de a conhecer melhor...
Ela sorriu-me de uma maneira tão doce, que quase chorei de emoção. Depois fez um gesto para que eu aguardasse. Fiquei na porta, olhos rasos de lágrimas. Eu amava-a, e temia perdê-la. Ela tão perto...
Quando ela voltou, trazia um caderninho na mão e uma esferográfica e escreveu:
“Eu também gostava muito de te conhecer, mas deves saber que eu sou surda-muda... ”