28 janeiro 2004

Intervalo


Perdido. Actuara toda a vida e agora só no meio do deserto, não tinha público, era só ele mesmo. E a vontade que tinha era de rir. O deserto era belo, um mar de areia em tons dourados. Merecia um Óscar, porque fora um excepcional actor. Toda a sua vida fora actuar para os outros, representar um papel.
Agora estava só com os seus demónios, mas o deserto, a ausência de gente, a leveza de não ter que interpretar um papel, dava-lhe uma paz, que nunca antes sentira. Olhou para dentro de si, não para procurar, não para encontrar, não para descobrir, mas apenas para entender se a sua vida tinha qualquer sentido.
Poderia interpretar ainda um último papel? O do herói que sobrevive? A tentação era forte.
Sentou-se na areia de uma duna alta, os grãozinhos rolavam um após outro, depois que os sobressaltara. Talvez a duna representasse a vida, e os grãos de areia fossem os instantes que guardámos. Tinha muitas imagens na cabeça, milhares delas, da sua permanente representação. Mas eram apenas recordações duras, como areia. Onde estava o sentimento?
Deixou-se levar no corrupio louco das recordações sem qualquer nexo. Eram imagens a invadi-lo, como se fosse um resumo de toda a sua carreira, numa qualquer sessão de prémios da Academia. Mas não eram sequências de nenhum filme, eram restos da sua vida.
Tinha tido algum sentido?
Forçou-se a olhar para dentro de si, não havia ali ninguém, o tempo era dele. Riu-se outra vez. Sentia-se nervoso por estar frente a frente consigo mesmo.
-- Olá! Sou o António… -- riu-se de novo, fingindo apresentar-se a si mesmo.
"Não tem graça!" -- pensou.
Via-se como um menino, sensível, a esconder-se de alguém (de si mesmo?), atrás de uma porta. Lá dentro, onde ele estava como menino, havia muita luz, tanta como a que há no deserto no pino do dia.
-- Posso entrar? -- perguntou ele ao menino.
O menino continuou a espreitar por detrás da porta, agora um pouco mais aberta, a cara do menino num sorriso. Se ele era aquele menino, até que era simpático. Avançou, rumo à porta. E quando avançou, o menino pareceu assustar-se numa cara de medo, e rápido bateu com a porta.
Ainda não seria daquela vez que conseguiria entrar. E enquanto não conseguisse entrar, teria que imaginar o que o menino poderia ser. Representaria ainda mais uns quantos papéis, na tentativa de descobrir um em que se sentisse confortável.
Deitou-se na areia e olhou as estrelas, no ar límpido do deserto. Era noite. Em breve pegaria no sono, ficaria bem. Seria intervalo.

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