18 janeiro 2024

A Criança

 

Foto de Brandon Day in Unsplash
 


Não sabias e foste uma vítima. Vivias um mito de uma família boa, preocupada e cuidadosa, mas no fundo sempre viveste com essa sensação de abandono, de que te podiam largar a qualquer instante e deixar-te entregue a ti mesmo. Sentias isso numa sensação estranha de ter sido adotado e de não pertencer por direito natural à família onde estavas.

Lembras quando choravas à noite na cama, pedindo perdão a um Deus que nunca te informou que não eras pecador, mas inocente e pobre de afeto, de amor incondicional? Choraste por muitos motivos diferentes, às vezes choraste mesmo sem saber porquê. Outras julgaste que choravas pelos outros, mas isso era só porque a dor dos outros te fazia lembrar a tua.

Pensaste milhares de vezes da razão dos outros te deixarem tão facilmente, sem mesmo reparares que eras tu que antes do abandono, no medo de ficar outra vez só, te afastavas deles como estratégia de lidar com a dor e o medo que tão bem conhecias e correres a te refugiares na solidão, que aprendeste a considerar abrigo contra todos os perigos. Porque dizias que eras feio? Uma justificação para deixares a namorada com a desculpa que era ela que não gostava de ti, por seres feio? Elas deixavam-te ir porque pensavam que não as querias. Agora sabes, foi tudo uma sabotagem que fizeste a ti próprio. Mas compreendes que não foste culpado de nada, apenas uma vítima do pior dos traumas? É difícil não é?

Sim, é difícil e no entanto aí estás tu de pé, enfrentando-te. Não há luta mais difícil do que essa, de nos olharmos num espelho que nos desnuda até a alma e nos enfrenta. Vês agora no espelho aquela criança adorável, inteligente, e tão frágil? Não te apetece agarrá-la com força nos teus braços e encher de beijos e de amor incondicional até às lágrimas? Força nisso! Essa criança merece rir, feliz! Essa criança merece todo o amor do mundo, incondicionalmente! Essa criança és tu.