12 novembro 2020

O Homem Que Falava Sozinho

 

Capítulo Terceiro

 


Photo by bantersnaps on Unsplash

 

Um dia em que deambulava pelos corredores da casa grande, com a mão ao longo da parede, a criança apanhou-o de surpresa e perguntou-lhe:

Quem é a Leonor?”

Ele nunca tinha falado no seu nome, porque não precisava. Ela era uma memória indelével e perene. Mas agora o uso do seu nome alterava tudo. E respondeu:

Leonor, é quando a tua boca se enche de flores e os teus lábios ficam macios como pétalas. É quando na tua boca há o mel e as fragrâncias agradáveis te inundam o palato…e te assaltam recordações felizes da tua infância.”

Leonor é o calor do Verão, temperado por uma brisa fresca. É o melão que refresca e revigora. A laranja que se desfaz em sumo, o morango que te adoça a boca. A água morna que escorre pelo teu corpo e te dá a sensação de que és novo outra vez.”

Leonor é o jardim cheio de flores, os perfumes que te entontecem e te fazem respirar fundo. O zumbido das asas das abelhas recolhendo pólen, o cantar dos pássaros felizes, porque há abundância e renovação.”

Leonor é o Sol quando pinta o céu no horizonte em todos os tons de fogo que possas escolher. Ela aquece a alma e faz sorrir.”

Leonor é o sonho que acontece…”

E abruptamente a criança interrompeu e com uma vozinha cândida perguntou:

Leonor é Deus?”

Aquilo soou-lhe profundamente blasfemo e ao mesmo tempo, como minhocas que revolvem a terra e aparecem finalmente à luz do sol, um pensamento dizia-lhe que Leonor não era Deus, mas podia provir Dele. Mas o pensamento ainda era confuso como a minhoca que à luz do Sol, apenas consegue revolver-se a ver se se enfia na terra outra vez.

Preferiu responder seco:

Não sei.”

E depois com um jeito traquinas acrescentou:

Mas nunca podia ser deus, apenas uma deusa!”

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O livro pode ser encontrado aqui.

07 novembro 2020

O Homem que Falava Sozinho

 Este é o meu último!


Já podem procurar na vossa livraria preferida.

Entretanto podem espalhar o anúncio, fico-vos agradecido!

26 abril 2020

Uma outra vez, um outro tempo, no café em Damasco.



Agora pode trazer isso quantas vezes quiser. O problema é que ninguém vai ver. Lembra-se de quando viajava pelo país? Pois é bom que lembre, porque as memórias agora serão mais valiosas. Sabe o que é isto? Uma daquelas recordações turísticas que não servem para nada! Mas sabia que há gente dando fortunas por estes cacaréus? Enchendo vitrinas sofisticadas com isto… Quem havia de imaginar!

E lembra aquelas camisetas ou mesmo as t-shirts com dizeres como “I love Algarve”? Vendem-se muito bem lá fora. Mas há muita camiseta dessa chinesa. Eles fazem tudo o que você queira… Mas não tem o mesmo valor, além de que estão muito caras agora. Toda a gente aqui acha que os chineses devem pagar taxas altas sobre as suas exportações…

Não, não acho nada disso. Mas imbecis e oportunistas há em todo o lado. Além de que se queremos um carro em condições não há como ter de outro jeito, é comprar um chinês. Na Europa deixaram de os fabricar. Os europeus não têm dinheiro para isso e os ricos foram para onde podem gozar a sua riqueza. A única coisa que está funcionando na Europa é o turismo. E olhe só a ironia, turismo chinês! E o mais engraçado é que eles pagam a conservação dos monumentos, vêm visitá-los e ainda trazem o pessoal deles e as suas agências para mostrar o que é nosso. Tudo isso porque não querem contaminar ninguém, a mais absoluta condição de isolamento. Foi o que ficou da praga.

Faz lembrar quando os europeus iam fazer safaris em África, nunca sobrava grande coisa para o autóctone. Os ocidentais ficavam com tudo, até com as peles dos bichos ou as cabeças embalsamadas dos animais em extinção para enfeitar a sala de algum Lord! Mais tarde para decorar a casa de algum ricaço parolo americano.

Não fique triste. Eu tenho boas recordações e posso morrer em paz. Tenho pena por você, é como um italiano que já teve em Roma um dos expoentes da civilização, ou como os gregos, hoje autênticos terceiro-mundistas e que foram o berço da civilização ocidental! Isto tem a sua ironia, um mundo que roda e volta e rodar e com ele a roda da fortuna. Uns uma vez estão com sorte e outras… Bem, não precisa que lhe diga, porque está experimentando isso agora. Anime-se. Na roda do tempo nada é permanente e esta situação há-de mudar. E hão-de mudar as pedras do caminho, ficar gastas, e as montanhas serem rachadas por rios e as planícies crescerem e os oceanos secarem… Não pense nisso. Faz parte da natureza deste mundo. Um mundo engraçado, com criaturinhas a pensar que são deuses. E são, mas não têm grande poder apesar das ilusões todas.

Olhe, olhe aqui. Tenho este postal, que até tem selo e está escrito. Alguém esteve lá e o mandou para alguém. Um postal da Nazaré. Li sobre o lugar. Foi um sítio para surfistas radicais, as maiores ondas da Europa e do Mundo. Estimulou o turismo, apesar de que o lugar antes do surf já era turístico. Diziam que foi no monte, uma lenda, que um certo nobre devoto por protagonista. Andava no meio do nevoeiro a caçar um veado e perdeu-se sendo que a certa altura reconheceu o lugar percebendo estar na beira do precipício, uma falésia de mais de cem metros. Apelou a Nossa Senhora e eis que o cavalo estacou ali mesmo no penedo suspenso no vazio. A Humanidade gosta de contar histórias. Fazem de nós o que somos.

A minha grande curiosidade é só essa, que histórias contaremos? Em Damasco havia o costume de ter um contador de histórias nos cafés. Enquanto se bebia um café apreciava-se também uma história. Há poesia num costume assim. Apetecia-me escrever umas tantas histórias e fechá-las num cofre de pedra para que um dia as encontrassem e lessem… Sim eu sei, não saberiam lê-las, mesmo que se conservassem! A língua muda. Por isso é preciso estar sempre a inventar histórias…
Talvez em Damasco, num café, num outro tempo, ainda uma outra vez.

15 abril 2020

Puzzle



Sei que algo não está certo. Os sonhos despedaçam-se no vidro da janela, nas folhas que caiem, no pássaro que se engana e nela embate. Sabem vocês dizer-me o que o futuro trará? Posso assegurar-vos que trará sempre coisas más. A maldade é a tessitura do Universo, onde alguns sonhadores, ou meramente alucinados, querem anunciar um Deus de amor, bondoso e protetor. Mas como a realidade desmente esses delírios, vez após vez.

No terramoto de 1755 muitos perderam essa ilusão num mundo protegido por divindades. A devastação foi imensa, a ponto de quebrar a dissonância cognitiva e obrigar a repensar as coisas. Se bem que as velhas ideias, porque são velhas e teimosas, habituadas a resistir, acabaram por permanecer. Não com a mesma forma, mais atenuadas, menos fortes, mas teimosas. Resistentes. Há sempre uma ignorante teimosia nas velhas ideias. 
E agora? Ainda estamos no início de um “bicho” que anda à solta, invisível, predador irracional que nos apanha na primeira oportunidade. Dizem-nos que este vírus virá ensombrar-nos nos próximos anos em vagas sucessivas. À medida que virmos os desconhecidos morrerem em números crescentes, isso não passará de um preparo, para quando forem os conhecidos, os nossos amigos, familiares, um pai, uma mãe, um irmão. Na Idade Média, durante a peste negra, esperava-se a morte no cemitério, talvez dançando que era a última das alegrias. Mas tudo o que se esperava era a morte. Talvez dessa dolorosa noção, não houvesse mal em esperar um Deus para no outro lado nos explicar a razão das coisas. Mas a vida é sem razão, ao acaso.

Portanto, que importa o que acreditas face a face com a aniquilação anunciada? Ou percebes agora porque a recompensa divina é sempre depois de morreres? Não se pode confirmar que seja verdadeira, pelo que assumi-la como uma mentira, mesmo que piedosa, é um caminho seguro.

Tanta coisa com que nos enganaram! Tanta ladainha em vão. Tanto sacrifício que se traduziu em pontapés no ar, alcançando coisa nenhuma a não ser dor. E a dor multiplica-se e repete-se. Nenhum salvador, porque somos todos patetas humanos, alimentando ilusões para não soçobrar de imediato. Porque mantemos o nariz fora de água?

Peões que se sacrificam. Formigas num carreiro sem fim e com que fim? Sentido, haverá algum sentido? Nenhum neste contínuo. Se fossemos um gigante do tamanho do mundo, observando-o, a humanidade inteira seria uma névoa, uma poeira. Mesmo que a notasse no seu movimento ordenado, de idas e vindas pelos mesmos caminhos, não daria a isso mais do que uma passageira atenção. Mesmo Deus existindo, é essa a atenção que nos dará, que para ele a poeira é um mero incómodo, como as formigas no carreiro do jardim.

Há um Universo enorme por entender. E nele somos meras peças.

Peças de um puzzle sem solução.

02 fevereiro 2020

Instante




Não sei porque passam os dias por mim, sem se importarem com aquilo que me fazem. Podiam só passar sem magoar, sem fazer da pressa seu único objetivo. São dias cinzentos mesmo quando está sol e até consigo sorrir. Felizmente esqueço-me. Não me importa, como se a vida fosse uma conta de subtrair que vai reduzindo o valor até ao zero.

Presumo que para alguns o tempo passe feliz. Mas talvez seja uma benção da sua ignorância, que não conseguem antever o destino. Mas sim, são felizes, sem amarguras na alma. Às vezes preferia não saber nada como Sócrates e ser feliz. Mas mesmo este até saber que nada sabia, apenas lhe trazia desgosto, um amargor de a vida ser curta e a quem sonha e quer, retirar tudo no final.


O tempo corre, apesar de passar sempre igual. Talvez correr seja da sua natureza e sejamos nós que às vezes queremos congelar o instante, em volta de um acontecimento feliz ou travá-lo antes de um momento doloroso e triste. Antes da morte, antes de todas as mortes que nos subtraíram e reduziram, rumo ao zero.


“Pai, o que há depois que morremos?”

“Não interessa.” respondeu de pronto.

“Porquê?”

“Porque todos ficaremos a saber, queiramos ou não...”

Acho que estou ficando louco, agora que o pai partiu, na sua descoberta do que fica para além.


Os crentes acreditam, fazendo das suas incertezas certezas, acreditando mesmo sem haver nada em que basear a crença e chamam-lhe fé. Gostava de acreditar só pela facilidade, pela falta de exigência, de poder levar uma vida mais leve mesmo que apressada, sempre apressada.

Haverá alguma solução para a angústia existencial?

“Porque tu te preocupas se nada é permanente? Que vaidade é essa tua, de julgar que a tua existência é mais importante que todas as existências passadas? Que cegueira é essa de pensar que és a mais importante de todas as criaturas sencientes?”

“Quem fala?”

“Eu que me rio da tua patética existência! Desse narcisismo permanente de acreditar que a vida é o mais importante!”

“E não é?”

“Sim, mas só enquanto vives. E tu vives? Como podes dizer que vives se te angustia a existência? Esse medo permanente da chegada da morte. Essa paranoia de visualizares um futuro sem ti. Que te pode importar o futuro se nem aprecias o presente? Que sentido faz olhar além se não és capaz de olhar aqui, usufruir o momento? Acalmar.”

Respiro fundo e vejo o mar azul, de inverno, de um azul cinzento e de espuma que se agita. É belo. Sim, consigo ouvir a música que toca no rádio e é serena. Sorrio. Talvez baste. Talvez seja só isso. Sem nenhuma interrogação. Sem nenhuma preocupação. Mergulhar no aqui e agora. Abrir o vidro e sentir esse cheiro a maresia. Oh! Que cheiro fantástico. Que cheiros fantásticos! Cheira à areia molhada... (Esta é a minha praia).

“Vês como é simples? Tudo é demasiado simples. Aceita que não são precisos grandes pensamentos para compreender. Tu sabes tudo! Nasceste com tudo o que é preciso para usufruir a tua vida. Aquela que é só tua...”

A música era bela e tão serena, mas tão serena, que senti vontade de chorar.

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