15 abril 2020

Puzzle



Sei que algo não está certo. Os sonhos despedaçam-se no vidro da janela, nas folhas que caiem, no pássaro que se engana e nela embate. Sabem vocês dizer-me o que o futuro trará? Posso assegurar-vos que trará sempre coisas más. A maldade é a tessitura do Universo, onde alguns sonhadores, ou meramente alucinados, querem anunciar um Deus de amor, bondoso e protetor. Mas como a realidade desmente esses delírios, vez após vez.

No terramoto de 1755 muitos perderam essa ilusão num mundo protegido por divindades. A devastação foi imensa, a ponto de quebrar a dissonância cognitiva e obrigar a repensar as coisas. Se bem que as velhas ideias, porque são velhas e teimosas, habituadas a resistir, acabaram por permanecer. Não com a mesma forma, mais atenuadas, menos fortes, mas teimosas. Resistentes. Há sempre uma ignorante teimosia nas velhas ideias. 
E agora? Ainda estamos no início de um “bicho” que anda à solta, invisível, predador irracional que nos apanha na primeira oportunidade. Dizem-nos que este vírus virá ensombrar-nos nos próximos anos em vagas sucessivas. À medida que virmos os desconhecidos morrerem em números crescentes, isso não passará de um preparo, para quando forem os conhecidos, os nossos amigos, familiares, um pai, uma mãe, um irmão. Na Idade Média, durante a peste negra, esperava-se a morte no cemitério, talvez dançando que era a última das alegrias. Mas tudo o que se esperava era a morte. Talvez dessa dolorosa noção, não houvesse mal em esperar um Deus para no outro lado nos explicar a razão das coisas. Mas a vida é sem razão, ao acaso.

Portanto, que importa o que acreditas face a face com a aniquilação anunciada? Ou percebes agora porque a recompensa divina é sempre depois de morreres? Não se pode confirmar que seja verdadeira, pelo que assumi-la como uma mentira, mesmo que piedosa, é um caminho seguro.

Tanta coisa com que nos enganaram! Tanta ladainha em vão. Tanto sacrifício que se traduziu em pontapés no ar, alcançando coisa nenhuma a não ser dor. E a dor multiplica-se e repete-se. Nenhum salvador, porque somos todos patetas humanos, alimentando ilusões para não soçobrar de imediato. Porque mantemos o nariz fora de água?

Peões que se sacrificam. Formigas num carreiro sem fim e com que fim? Sentido, haverá algum sentido? Nenhum neste contínuo. Se fossemos um gigante do tamanho do mundo, observando-o, a humanidade inteira seria uma névoa, uma poeira. Mesmo que a notasse no seu movimento ordenado, de idas e vindas pelos mesmos caminhos, não daria a isso mais do que uma passageira atenção. Mesmo Deus existindo, é essa a atenção que nos dará, que para ele a poeira é um mero incómodo, como as formigas no carreiro do jardim.

Há um Universo enorme por entender. E nele somos meras peças.

Peças de um puzzle sem solução.

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