15 dezembro 2018

A Guerra








As bombas rebentam a toda a volta. Já ceifaram a vida a alguns amigos meus e a alguns companheiros de destino. É uma guerra, sim. Estúpida como todas as guerras. É a guerra das colónias, com a Terra e as suas petulantes nações armadas em impérios. Mas as colónias querem a sua independência, não depender de ninguém. E nasceram assim, como filhas órfãs de pai e de mãe. Cidadãos de segunda e de terceira, como cobaias para experimentarem os riscos de um destino para além da Terra, criados a pontapé e na tentativa-erro. “Vai e desenrasca-te!” era o lema. Agora que conseguimos resistir a tudo, que conquistámos a nossa autossuficiência, querem reclamar o pedaço! É tarde.


Não esperavam que estivéssemos preparados e estão zangados, por de alguma forma terem sido apanhados de surpresa. Mas a presunção traz surpresas desagradáveis. Dominamos melhor o espaço que eles, nós sempre cá estivemos ou pelo menos estamos há mais tempo aqui do que eles, sempre agarrados ao berlinde azul, como o puto às saias da mãe. Nós andámos por aqui a arriscar a pele, a visitarmo-nos uns aos outros da Lua a Marte e mais longe, sujeitos sempre a levar um pedregulho pelo caminho. Se houvesse uma mãe para nós, seria sempre a Lua, de onde saímos para apanhar uns asteroides e recolhermos ainda mais minerais valiosos e outras tretas, porque há sempre tretas em que alguém está interessado e disposto a pagar o preço. Aprendemos a cavalgar os asteroides a laçá-los, como os antigos cowboys faziam no oeste selvagem, a tirar-lhes o que tinham para dar para alimentar um mundo de tratas e a atirá-los com precisão para as armadas patéticas com que a Terra nos quer subjugar. Os asteroides eram a nossa vida, precisávamos deles para sustentar os nossos mundos. Daí que já há tanto tempo que não ajoelhamos! Nem submetidos, nem sequer em adoração a um Deus imaginário. Reclamamos ser o pó que as estrelas espalharam e agora estamos aqui a reclamar que o nosso, que o pó é o mesmo.


Não percebo porque há-de sempre alguém querer deitar a mão ao que não construiu, ao que não plantou. Mas são os genes que se hão-de esgotar no cansaço de não passarem de chimpanzés. Transcendemos, porque quisemos mudar e ascender. Os outros ficaram sempre a esgravatar o chão, como as galinhas, remanescentes pré-históricos que ciscam o chão.


Não queria a guerra. Nenhuma das colónias queria. Mas foi o que nos trouxeram só porque dissemos que “Não!” Mas não quiseram ouvir. Quem tem o poder não sabe, não concebe sequer ouvir um “Não!” Como vivemos no espaço e não há atmosfera, por isso sentem que podem atacar-nos com bombas atómicas. Se não fossem os nossos antimísseis capazes de destruir os deles, a quase maioria desses bichos de morte, teria sido pior, mas bem pior. Se a falta de atmosfera não mata por radiação os efeitos, mesmo assim permanecem, que o resto fica radioativo.


Porque vim parar às colónias? Pelo mesmo motivo de toda a gente, pela oportunidade de ter uma segunda oportunidade, fazer o “reset” na vida e começar tudo de novo outra vez. Foi um sonho, mas agora há aqui um intervalo causado por esta guerra. Não precisava de uma guerra. Ninguém precisa de uma guerra. O que se precisa é de justiça. Alguns não querem justiça, querem tudo.


Agora temos de descer aos subterrâneos que a vaga de mísseis que aí vem, é uma chuva. Estes imperialistas da treta estão dispostos a que paguemos caro pela nossa independência. Mesmo que não ganhem esta guerra, sonham deixar-nos tão debilitados que lhes tenhamos que comprar alguma coisa e assim pagar os custos desta guerra, já que alguém tem de pagar estas orgias de destruição.


Mas estão enganados! No subsolo temos a maioria das fábricas e eles nem sonham a extensão do que criamos aqui por baixo. Vamos mandar-lhes umas surpresas lá para a Terra, para ver se tomam juízo e acordam!


Também tenho de descer aos subterrâneos para descansar um pouco, permitir que as luzes apaguem para poder chorar, o que perdemos, os amigos que deixámos na Terra e que serão recrutados à força para nos vir combater. Nada que se queira, mas a força do império... Tão prolíficos a fazer abundar a morte... E ao sentarem-se nessas mesas onde hão-de assinar tratados de paz, nem sequer vêm o sangue que delas escorre e mancha tudo até ao chão. E filhos da puta de um lado e doutro, psicopatas agora em cargos de poder, congratular-se-ão pelos que morreram, como se os mortos fossem o adubo da prosperidade futura.


Não se ouve nada ao contrário dos filmes que via em miúdo. Mas sinto as vibrações dos mísseis que caem e dos antimísseis que sobem, anunciadores de destruição e caos. Estou cansado, oh tão cansado de morte...

10 dezembro 2018

O Homem Mais Velho do Mundo



O homem foi identificado como o homem mais velho do mundo! Era português, pois claro, funcionário público. E só quando ao passarem do papel para registo informático o cadastro dos funcionários, é que deram conta que o homem já devia estar reformado há cerca de 60 anos! Estava no topo da carreira e até aí ninguém se tinha lembrado dele. A sua função era a de auxiliar de administração que era uma função onde cabia quase toda a gente com funções mais ou menos indefinidas. O homem passara por todas as reformas burocráticas que haviam atingido a função pública em mais de meio século sem uma queixa ou um soluço sequer. Fora sempre discreto, vestindo um fato preto, chegara a usar mangas de alpaca em tempos idos, mas já há umas duas décadas que deixara de as usar.

Agora queriam compulsivamente passá-lo à reforma. Diziam que ele estava desadequado aos novos tempos, apesar de sempre se ter adaptado bem à mudança. Nem sequer tinham tido a simpatia de lhe perguntar se queria continuar ou reformar-se, já que a legislação fora alterada de modo a que para além da idade da reforma, o funcionário que quisesse, podia continuar a trabalhar.

Alguns colegas diziam que sempre fora simpático e discreto e ficaram mesmo chocadamente surpreendidos ao saber que a sua idade era de 118 anos. Alguns tinham a certeza que devia haver algum engano grosseiro e que pelo aspeto dele, dificilmente teria mais de 60 anos.

A descoberta de funcionário da família de Matusalém chegou mesmo a ser aproveitada no Parlamento pela oposição para gozar com o atual governo cuja eficiência seria semelhante ao dos comboios a vapor, mas era uma auto piada, porque quando lá tinha estado também não tinham dado conta de tão vetusto funcionário e os serviços também não tinham funcionado de forma mais célere. A malta nas mesas de café dizia que ao que os funcionários públicos faziam, a sorte era não o terem encontrado mumificado dentro de algum armário de arquivo!

O pobre homem viu a sua vida pessoal desmoronar de um dia para o outro. Eram as TVs de volta dele a querer saber qual o seu segredo. Ora o homem limitara-se a viver a sua rotina sem qualquer sobressalto e nem sequer era capaz de perceber o alcance da pergunta! Tinha casado, mas a mulher morrera nova e sem lhe dar filhos e ele não casou outra vez, possivelmente por se ter adaptado perfeitamente à sua condição de viúvo, o que mostrava aliás a sua resiliência face à mudança, sem quaisquer dificuldades em adaptar-se.

Comeu regularmente nos restaurantes que havia perto da repartição. Os restaurantes tinham aberto e fechado, conforme os diferentes ciclos económicos dirigidos por essa mão invisível dos mercados, o que o obrigara a mudar de poiso, mas era um homem de hábitos fixos. Confessou que só comia uma refeição de faca e garfo por dia, a tal no restaurante mais próximo. De manhã comia uma torrada com café. Tinha experimentado cereais como as crianças, mas não se lhe tornou hábito, que achara aquilo demasiado carregado de açúcar. À noite podia comer uma sopa, quando tinha tempo de passar no “take-away" e levar uma, mas o que gostava mesmo era de umas bolachitas com um chá. Variava no chá, umas vezes verde, outras negro, ele bem que gostava de uma marca antiga o Chá Li-Cungo, mas que deixara de encontrar nas lojas e mais tarde nos supermercados, depois que as lojas de bairro foram fechando. Um amigo tinha-lhe trazido dos Açores da marca “Gorreana” e ele tornara-se fã. O Amigo foi-lhe fornecendo até ter morrido de ataque cardíaco e ele limitou-se depois disso a trazer de uma marca qualquer do supermercado aonde ía. As bolachas eram simples sem cremes, tipo bolacha Maria ou torrada. Nada de dietas especiais ou com algum ingrediente exótico ou fora do vulgar.

Em termos de exercício físico, não tinha automóvel e ia a pé para a repartição. Quando o percurso era mais longe, ia de bicicleta, uma velha pasteleira imaculadamente conservada. Para ir à cidade ia de comboio e em casos muito urgentes chamava um táxi. A única vez que estivera mal e precisara de ser hospitalizado, fora com uma crise de fígado que ele atribuíra a maionese estragada que comera numa mariscada entre amigos. Havia ganhado um torneio de sueca e os amigos tinham decidido festejar com uma mariscada. Para sua emenda, que era muito rigoroso nestas coisas, nunca mais comeu maionese. Certamente uma excelente decisão que nunca mais teve nenhuma crise de fígado ou foi de novo hospitalizado.

Há pessoas assim, de gestos lentos como é próprio e adequado a um funcionário público. Essa lentidão, às vezes exasperante para quem estava do outro lado do balcão, criava um ambiente cerimonioso, como quem vai à igreja e não lhe adianta ir lá com pressas.

Os vizinhos da casa onde vivia pelo menos há uns 30 anos tinham por ele um respeito deferente. Sempre o cumprimentavam e apreciavam a sua imaculada educação. Nunca lhe haviam ouvido soltar uma palavra mais alta ou sua boca manchada com vernáculo. A única vez que se irritara fora com uma Testemunha de Jeová que à viva força queria que ele ficasse com uma publicação qualquer, quando ele deixara claro não estar interessado. Mesmo assim não foi rude, apenas bateu a porta com mais força do que habitual, quando se conseguiu livrar do pregador. Não se lhe conheciam simpatias políticas, e nem sabiam bem se ele era católico visto nunca ir à missa, a menos das idas sociais como casamentos, batizados e funerais aos quais era convidado ou de pessoas de sua estima. Portanto, o segredo também não estaria nalgum sentido da vida, alguma filosofia ou espiritualidade.

Para se divertir, ouvia rádio e lia bastante. O jornal todos os dias, ultimamente menos que os cafés já não têm esse hábito. E normalmente à mesinha de cabeceira um livro. Lia tudo a que podia deitar a mão, visto que era frequentador assíduo da biblioteca municipal, antes tinha sido da biblioteca Gulbenkian. Adorava ler. E era um bom conversador, o que queria dizer que escutava mais do que o que falava. Não tinha televisão, preferia ouvir rádio. Deitava-se cedo e acordava cedo.

Agora era uma romaria à cidade, todos queriam conhecer o homem mais velho do mundo! Todos queriam apalpá-lo, tirar umas selfies com ele em imitação do Presidente, enchê-lo de perguntas parvas. Cuidava-se de modo muito discreto. O fato e a camisa sempre impecavelmente limpos, tinha uma mulher a dias que lhe limpava a casa e cuidava dos fatos e das camisas. Normalmente talvez por irem perdendo a vista os velhotes ficam mais badalhocos. Ele não. E usava óculos o que numa pessoa da sua idade era perfeitamente normal. O homem não usava placa dentária e ainda tinha aquele cabelo que resta a todos os carecas, no caso dele impecavelmente penteado, mas sem aquelas fantasias de um lado cobrir a careca toda. Por causa disso talvez, perguntavam-lhe se lavava os dentes todos os dias e com que pasta e sendo tão velho e tendo ainda tanto cabelo, todo ele em tom prata, perguntavam-lhe se lavava a cabeça todos os dias e qual o champô. No início até respondia que não era pessoa nem para segredos nem para indelicadezas, mas agora sentia-se cansado de todo aquele assédio.

Dizia um seu conterrâneo:
— Mas que vêm esta cambada de imbecis ver? O homem mais velho do mundo? Vejam-no na TV ou nas fotografias dos jornais! Esperam o quê? Vir a ser tão velhos quanto ele por contágio? Então e as "selfies" servem para quê? Para colocar nas redes sociais, como antes a malta esculpia na casca das árvores ou nas portas das casas-de-banho “Fulano esteve aqui!”? Mas já não têm consolas de jogos para perderem o tempo?

Alguém referiu que ao conhecerem e conversarem com alguém mais velho ficariam mais sábios.

— Mais sábios?! Esta gente nem votar sabe! — Dizia irritado esse conterrâneo. — Como é que hão-de ganhar alguma sabedoria a conversar com alguém que toda a vida foi funcionário público? Se tivesse alguma sabedoria seria... sei lá! Professor! Talvez até mesmo filósofo. Ou então talvez tivesse escrito poemas, ou contos... Agora um gajo que a única escrita que fez foi escrever requerimentos?

As pessoas ficaram zangadas com esse conterrâneo, que por acaso até era o Presidente da mais importante associação cultural do conselho. Isso irritou o sindicato dos funcionários públicos que disse que as afirmações eram ultrajantes e que um pedido de desculpas era devido a todos os funcionários públicos que com honra e lealdade exercem as suas funções. Deu para uma troca de mimos entre o Presidente da Associação Cultural e o Sindicato, mas sem quaisquer consequências de maior. Aliás o homem mais velho do mundo passou ao lado dessa polémica, acusando um certo cansaço que se ia acumulando e como o chefe de repartição lhe havia concedido umas férias adicionais, foi até Lamego respirar melhor ar. Alojou-se numa pensão modesta tentando passar despercebido. Deu alguns passeios higiénicos e procurou ler os seus livros nos bancos de jardim. Mas de novo foi acossado por mirones que o perseguiam e tiravam fotografias sem sequer terem a gentileza de lhe pedir permissão. Assim encurtou as suas férias e regressou a casa.

Regressou realmente combalido, não tinha já o mesmo porte elegante, refinado. Agora dobrava-se como de repente sentisse o peso todo da idade que tinha. Voltou à repartição, onde foi acarinhado, mas donde o mandaram embora, com a desculpa de que não havia nada para ele fazer.

Nesse dia não passou pelo café para ler o jornal, meter dois dedos de conversa com os companheiros de sueca, mas ninguém pareceu dar conta. Nesse dia deitou-se mais cedo, o rádio ligado, leu umas páginas de Dostoiévski o seu preferido.

Foram encontrá-lo com o rádio ainda ligado, o livro caído das mãos que tombara no chão, um sorriso nos lábios, mas já não havia homem mais velho no mundo...

08 dezembro 2018

Vida de Cão



Não importava como chegava à fala com ela que o resultado era inevitavelmente o mesmo: uma frieza e um distanciamento educado. Talvez isso também fizesse parte do plano, chamar-lhe imbecil de forma subtil, que ainda não percebera que o tempo dele se tinha esgotado inexoravelmente. Agora vir como um cachorro abandonado pedinchar-lhe um afago, devia dar-lhe um enorme gozo, a ela que só aceitava cães com “pedigree”. Em relação a ele era apenas vir humilhar-se em múltiplas variantes.

Esta sua vida de cão e os cães dependem da sorte, consumia-lhe a alma e era tempo de lhe por um fim. Por mais que a amasse, se ela era demasiado orgulhosa para não o aceitar, que podia ele fazer? Tudo termina até os amores eternos sem terra fértil para germinar e deitar raízes. A ele apenas davam ossos e eram restos.

Era um cão de tal maneira vadio que nunca o procurava para lhe fazer uma festita na cabeça, ele é que se aproximava e era recebido de maneira fria e a desejar distância. Mesmo os cães, que são muito humildes neste respeito, acabam a perceber a mensagem e depois de uma vez ou duas a serem recebidos assim, percebem que é melhor procurar outro dono, que dali não levam nada! Ele demorou a perceber depois que tentara muito mais que duas vezes. Talvez ela tivesse razão e ele não passasse de um cão estúpido. 

Todo este introito apenas para vos explicar como Manuel se apaixonara por uma mulher que nitidamente não era para ele. Aliás ela apaixonou-se por ele, uma daquelas coisas eruptivas e telúricas como só as mulheres são capazes de sentir e conversou com o Manuel milhares de conversas íntimas, e este a princípio não acreditou que fosse para ele. Mas depois, que até os cães gostam de amor, deixou-se ir, entregou-se e como os cães, depois que se entregam são fiéis quase para a vida toda. Quis entregar-se de tal maneira que lhe escreveu um livro de poemas e tudo! Deu-lhe tudo o que pode. Fez dela o centro do seu universo.
Mas a realidade quer-se sempre impor, que a mulher embora apaixonada, estava num momento baixo da sua vida. Tinha sido uma profissional bem-sucedida, mas um erro estúpido tinha-lhe feito interromper a carreira. Ele, e só sabia fazer isso, animou-a, fê-la sentir-se desejada e era tudo sincero da parte dele. Ela pensou até divorciar-se para viver o resto dos seus dias com ele, mas ele não estava preparado e declinou. 

Dizia-me o meu pai que uma mulher rejeitada é perigosíssima e ainda aqui há uns dias li que uma namorada só porque o namorado mandara os parabéns a outra, matou-o à facada. Talvez ela se tenha sentido rejeitada, ou talvez tenha sido o retomar da sua atividade profissional e o começar a privar outra vez com a “high society”, passou a olhá-lo de outra maneira. Tenha sido o que foi, o que é certo é que passou a tratá-lo com distância. Educada, mas fria e a dar para trás. Ele reafirmou-lhe o seu amor, mas já não havia nada que a aproximasse. Sempre que ele tentava, às vezes até lhe parecia sentir a antiga chama, mas que ela pressurosa, vinha apagar de extintor ou com balde de água fria.

A coisa perdera mesmo o sentido, de todo e em pleno e com choque, quando ele a foi visitar ao seu escritório e ela o recebeu como quem recebe um cliente. Foi lá para lhe oferecer uma pintura e ela desdenhou do quadro quanto pode, desdenhou do tema e não gostou das cores e a única coisa a que achou piada foi à moldura, coisa que não tinha sido ele a fazer. Como se tudo o que tivesse dito fosse medido num crescendo para o magoar o máximo possível. Saiu de lá com o coração despedaçado. Como os cães corridos a pontapé, a quem se deu de comer por pena, mas de quem agora se quer distância, não vá o animal querer dono. Tentou manter o contacto mesmo que marginal, e era recebido sempre com uma agressividade mal contida. Sentia que havia até uma espécie de provocação com o fito de o atingir o fazer sentir mal, ou era ele apenas a ampliar essa sensação de se sentir rejeitado.

Não podia fazer nada, da mesma forma que os cães abandonados não podem levar os donos ao arrependimento. Baixou a cabeça resignado, como o rafeiro que segue o seu caminho porque mais nada há a fazer do que não ser segui-lo.

Há cães com sorte, mas não era o caso dele, apesar da sua vida de cão.

07 dezembro 2018

Jogo Violento




Os jogos de bilhar deviam ser considerados jogos violentos, perigosos. O fato de se jogar com bolas pesadas que podem ser usadas como autênticas armas de arremesso, o taco que pode ser usado como espada pronto a desferir uma estocada ou pela parte mais grossa a funcionar como bastão, deviam ser considerados potenciais armas letais.

Para além de toda a simbologia masculina do jogo: as bolas como representação dos testículos e o taco como símbolo fálico. Não é por nada que uma mulher jogar ao bilhar é excitante e provocador e na sequência da tese, um elemento perturbador, qual catalisador rumo ao desacato.

Quando se questiona e bem, se as touradas são ainda divertimentos com cabimento no século XXI, quando mais não são de que um circo romano dos provincianos, esquecemos esse outro jogo que por poder ser praticado numa sala, no recato do lar ou em algum recanto de um café mal afamado se joga bilhar.

Ela entrou com um vestido relativamente curto, com um decote que não era escandaloso, mas as curvas do corpo dela eram. Aliás ela era um perigo ambulante quando passeava naquele vestido, revelando contornos perfeitos. Ela nunca se atrapalhava pensando nas eventuais consequências de ser uma causadora de acidentes, de dramas. Apenas passeava desenvolta e numa leveza que apenas lhe dava graciosidade. Os velhos no jardim ficavam melhores das cataratas, os de meia-idade falavam mais alto e algum mais afoito talvez se arriscasse a um piropo. Os mais novos, tenho a certeza, sonhariam longamente com ela e alguns em ocasião mais solitária teriam lindos momentos de onanismo só a pensar nela. Não, ela não sabia destas coisas e mesmo que lhe dissessem continuaria na mesma, como se não lhe tivessem dito nada. Talvez até dissesse alguma graça, que a tornaria ainda mais encantadora.

Que tem isto que ver com jogar bilhar? Se calhar nada. É só para verem como coisas inocentes (ou que o parecem) podem ser realmente violentas, levando alguns a loucura. Talvez fujam para um desses lugares cheios de fumo (agora proibidos) onde se jogam esses jogos perversos, como o bilhar. Sempre debaixo do controlo de um relógio que marcará a despesa que temos por gastar do nosso próprio tempo! E um dia num desses lugares (sem fumo, como é próprio agora) ela entrará com a sua habitual leveza. Pegará no taco, inclinando-se sobre a mesa do jogo, onde o seu decote discreto atingirá um clímax que fará correr os impacientes para a casa de banho mais próxima. Não importa nada se ela saberá jogar, embora ela como pessoa inteligente que é, aprenderá depressa. Nas jogadas difíceis colocará a anca em cima do bilhar e o seu vestido curto subirá pela sua coxa, deixando os machos paralisados, numa espécie de câmara lenta que parecerá não ter fim, como uma paralisia que só será quebrada com o som das bolas a bater uma na outra com força. Talvez pela tensão no ar, alguém decida aplaudir, para aliviar. E se houver outras mulheres no salão sentirão animosidade e inveja aumentando a probabilidade de um confronto por uma palhinha de nada.

Quando ela se esticar sobre a mesa de bilhar para uma bola mais difícil, os homens correrão todos, para ficar por detrás dela, esperando o vestido subir, só para a ajudar a medir a geometria da pancada. Alguns esperarão que ela não leve roupa interior e terão, só na expetativa, ereções monumentais que procurarão disfarçar metendo as mãos nos bolsos. Mas o ar ficará carregado de feromonas e de testosterona e ficará pesado, denso, como aquele ar que antecede as tempestades. E sim, queira Deus que ela nesse dia use roupa interior! Porque quando o pé dela levantar do chão para dar a tacada, dezenas de homens ascenderão ao céu...

Ela sairá vitoriosa, mesmo que tenha perdido o jogo e aposto que não pagará nada, nem o tempo, nem a eventual cerveja. Quem jogou com ela, há-de ser admirado por alguns dias e depois remetido ao esquecimento, mas ela será sempre lembrada.

E ai de quem se atreva a dizer qualquer coisa negativa sobre ela! Alguma palavra depreciativa ou mesmo ofensiva pode dar origem a uma conflagração sísmica. Os tacos serão despedaçados, as bolas lançadas como pedras agrestes e selvagens. Mas ela não estará presente para ver este circo. E cheirará a suor e a sangue no salão de bilhar, com o dono a lamentar o prejuízo e sabendo a causa. Mas nunca se levantará para lhe proibir a entrada. E mais do que o prejuízo, lamentará que ela não vá mais vezes. Porque tem a ideia que é o ela ir lá raras vezes que lhes dá mais raiva e impulso.

Realmente o bilhar é um jogo que não se deve recomendar na educação de uma pessoa de bem. É coisa de criminosos, presidiários e homens sem ocupação. Devia ser proibido. Acho que apenas mantêm esses espaços abertos, com a esperança que ela um dia entre e os ilumine! O bilhar é realmente um jogo violento...

06 dezembro 2018

Terapia Brutal




Quando apanharam o suspeito de espancamentos e homicídios a suspeitos de violência doméstica ele mostrou-se profundamente calmo. Dizem que as boas consciências permitem um sono profundo. A boa consciência deste indivíduo apesar das agressões e mortes de que seria autor não podia deixar de causar admiração. E temos de admitir que mesmo na polícia, muitos daqueles a quem a violência doméstica metia nojo, nutriam por ele uma certa simpatia. Mas não passava de um suspeito. E para todos os efeitos andar a espancar e matar pessoas era um crime e a Lei era para todos, se bem que pouco fizesse pelas vítimas, mas não há sistemas perfeitos.

Quando lhe perguntaram qual a sua profissão, agitou-se um pouco na cadeira afirmando estar desempregado. Mas gostava de pensar em si como um terapeuta, ouvindo as queixas dos outros e procurando ajudar. Alguns riram-se com a sua pretensão de “terapeuta” já que a sê-lo praticaria uma terapia radical! Tinham um dos últimos casos documentados, em que a vítima morrera a esvair-se em sangue com as mãos cortadas e um golpe no abdómen. Apesar da violência da cena a vítima não era ninguém por quem se chorasse, pois, antes de ter esse fim trágico, tinha no seu historial anos de prática de violência doméstica contra a sua companheira. Para além das pisaduras regulares devido a cargas de pancada, a pobre companheira deste monstro tinha sofrido vários olhos negros, pontos na cabeça, costelas e braços partidos e por último tinha sido morta à facada na cozinha do apartamento onde habitavam. Foi dois dias depois da morte da companheira que ele foi encontrado com as mãos cortadas e sem vida no meio da rua. Numa das mãos decepadas havia uma pistola carregada, que presumem o agressor terá empunhado para se defender do “Justiceiro”, e que de nada lhe valeu. Não havia testemunhas que tivessem assistido ao crime.

Sem testemunhas como podia o cidadão pretenso terapeuta ser suspeito? Coincidências e circunstâncias. Não era o primeiro caso de assassinato de agressores em contexto de violência doméstica. Nem todos tinham sido mortos, que parecia haver alguma proporcionalidade entre os danos infligidos. Os que apenas batiam nas mulheres ao ponto das nódoas negras, era com isso que ficavam, nódoas negras. Os que partiam ossos, tinham os ossos quebrados. Os que matavam... Acabavam mortos.

A polícia não aprecia vigilantes, nem vingadores, nem milícias, não porque não lhes reconheça algum valor, às vezes meramente pedagógico, mas porque não se pode permitir competição. No fundo, eles estão na cadeia da administração da justiça e não podem, nem querem, ser arredados dela por um qualquer justiceiro, por mais justo e pedagógico que seja.

Haviam chegado até este suspeito, porque as descrições no geral coincidiam ao menos na altura do suspeito, nem sempre na sua corpulência ou aparência, mas essas eram coisas que podiam ser alteradas. O problema com este, entre os muitos que tinham entrevistado, é que não tinha alibi em nenhum dos casos que estavam em investigação. Um mandato de busca à residência do suspeito tinha sido inútil no sentido da prova do seu envolvimento. Apesar de ter telemóvel, este nunca tinha sido apanhado na proximidade dos locais dos ataques. A essas horas permanecia em casa, onde o suspeito dizia ter estado a essas horas. Os vizinhos não podiam ajudar, pois embora o conhecessem e o achassem simpático e prestável, não lhe vigiavam as saídas e as entradas.

As TVs dedicadas a estes casos de faca-e-alguidar tinham promovido “O Justiceiro das Mulheres” como lhe chamavam, o que deixara as chefias policiais e o Ministro da Administração Interna e o da Justiça bastante chateados, pois ninguém gosta que lhe tirem o trabalho ou a importância. Houve algum valor pedagógico, que os casos de violência doméstica diminuíram. O caso ganhou mais pressão para ser resolvido quando um juiz conhecido por bater na mulher e que, entretanto, se divorciara, foi encontrado brutalmente espancado no seu próprio apartamento. O juiz também não foi capaz de um testemunho muito coerente até porque não soubera dizer ou não quisera dizer, onde tinha estado antes de entrar no seu apartamento e ser espancado. Sem ser por vias legais, soubera-se que estivera nas imediações da residência da ex-mulher e quando confrontado com essa possibilidade negara. Possivelmente era um “stalker” o que não deixa de ser violência psicológica. A polícia também não nutria simpatias pelo juiz e desconsiderou que tivesse sido espancado por causa de ser um agressor, mas apontavam antes para uma vingança de alguém por ele condenado. Isso também diminuía a importância do “Justiceiro” e salvava a face ao juiz. Em relação à tromba tinha ficado bastante estragada, por sinal.

Perguntaram então ao suspeito o que ele achava da violência doméstica ao que ele disse que era irrelevante o que ele achava, mas afirmou que achava uma realidade deplorável. Quiseram saber se alguma vez teria tido vontade de fazer justiça, ao que disse que para a administração da justiça havia canais próprios como as polícias e os tribunais e não pensava substituí-los, tanto mais que nem sequer lhe pagavam para isso. Quando lhe perguntaram o que devia ser uma medida de combate à violência doméstica respondeu: Sessões de terapia. Como não havia nada que lhes permitisse dizer que estavam diante do “Justiceiro” foram obrigados a libertá-lo. Talvez o pudessem por de vigilância, mas os recursos eram escassos e não houvesse evidência mais substancial, seria inútil esse desperdício de meios. Olharam para ele com um sorriso entre o frustrado e o simpático e a acharam que a ser ele, exercia uma terapia brutal!

05 dezembro 2018

Tenham Piedade





Nesta nossa vontade de progresso, às vezes andamos em círculos ou até retrocedemos porque nos tornamos demasiado delicados para lidar com o mal. Achamos que tudo deve ser tratado de maneira diplomática, como se todos se regessem por nobres princípios ou até fossem sensíveis à voz da razão. É bom ter em mente que todos nascemos egoístas e alguns por nunca serem propriamente educados desenvolvem posturas trogloditas incompatíveis com a diplomacia ou até mesmo com a vida em sociedade. Tais criaturas a quem a evolução conferiu inevitavelmente a selvajaria própria a uma sobrevivência na selva, são inadequadas a sociedades requintadas. Vem isto a propósito de alguns criminosos refinados e de outros menos refinados, que parece que na sua senda de causar o mal dos outros, parecem sair-se muito bem, sem problemas de maior.

Conta a história que neste jardim à beira-mar plantado, se praticava a arte do varapau, para dirimir atitudes menos próprias. O nosso grande poeta Camões era ao que diziam bom também nessa arte, o que prova que a poesia e algo mais sólido fazem uma boa combinação. Em diversas terras portuguesas havia esta pedagógica provisão em que os anciãos reunidos em conselho multavam os prevaricadores da aldeia e caso não fosse suficiente algo mais sólido nas costas dos pecadores, servia-lhes de penitência e algumas vezes de emenda. Ou emendavam-se ou mudavam-se, pois diz antigo ditado: Quem não está bem, muda-se!

Essas velhas tradições e eu nem sequer sou muito defensor de tradições, mas sou obrigado a reconhecer que a diplomacia e o politicamente correto não mostram os resultados que esperávamos e temos então de procurar as velhas fórmulas. Afinal a quem não evoluiu no tempo é preciso encontrar a pedagogia adequada ao seu estado evolutivo. Trata-se apenas de pragmatismo. Muitas vezes a teoria não concorda com a prática. E ou se descarta ou se define a exceção e se age em conformidade.

Toda esta conversa a respeito de um caso ocorrido no sul do país numa área suburbana, em que um mocinho perseguia mulheres jovens para as encher de pancada, masturbar-se diante delas e para cima delas. Direis que era um espírito perturbado e naturalmente que o era. Fora diagnosticado com esquizofrenia. Quando tomava a medicação era civilizado, mas amiúdes vezes esquecia-se de a tomar e os seus familiares sentiam dificuldades em fazê-lo tomar a dita medicação com a regularidade necessária. Afinal para muito esquizofrénico, quem quer que eles tomem os medicamentos quer-lhes fazer mal, nesta mania da perseguição que também desenvolvem.

As miúdas continuavam a ser atacadas, causando o pânico na região. A polícia dizia que nada podia fazer, pois quando o prendia, ele acabava invariavelmente solto. E voltava a repetir a dose, traumatizando as que selvaticamente atacava. Não raro precisavam de tratamento hospitalar e algumas ficaram bem próximo de acabar desfiguradas. Houve mesmo um movimento cívico que pugnava que ele fosse internado compulsivamente. Contudo, mesmo que fosse, um dia dar-lhe-iam alta, receitar-lhe-iam medicação que ele acabaria por deixar de tomar e voltaria novamente à sua atividade preferida de perseguir mulheres e de lhes bater e esporrar para cima. As autoridades voltariam a lamentar não poder fazer nada e viveria todo o mundo na expectativa de um dia um mal maior acontecer...

Vou falar-vos do mal maior, que é termos de recuar na civilização e passarmos a fazer justiça pelas próprias mãos. Em especial quando o Estado se está nas tintas para os cidadãos e só ama o contribuinte. Talvez alguém tenha tido uma irmã espancada ou uma namorada com medo de andar na rua e se tenha decidido dar ao espécimen uma lição. Nunca saberemos ao certo a não ser pelo relato do próprio, que sossego-vos já, sobreviveu ao ataque de que foi vítima. Ouçamo-lo quando apresentou queixa na esquadra:

— Fui selvaticamente agredido! Uma besta à solta, têm de fazer alguma coisa!

Alguém lhe lembrou que antes disso tinha atacado uma mulher de tal forma que esta teve de receber tratamento hospitalar.

— Mas isso não justifica tratar-me assim! Agarrou-me pelos cabelos e bateu-me com a cara na parede! Se bati na mulher é porque sou doente e não me controlo...

Perguntaram-lhe se admitindo que era doente e perdia o controlo, se estava a seguir algum tratamento.

— Sim.

Perguntaram-lhe qual.

— Querem que eu tome uns comprimidos... Mas eu sei que são para eu ficar pior!

Quiseram saber se ele os tinha tomado ou não.

— Não... Mas ele disse-me que na próxima me partia as mãos com um martelo! Mostrou-me o martelo! Disse-me que me deixaria as mãos de tal forma que eu nunca mais bateria em ninguém! Eu não quero bater em ninguém... É a doença que me leva.

Choramingou. Alguém lhe fez lembrar que se ele não quisesse ser dominado pela doença, bastava tomar os comprimidos e não faria tais coisas.

— Vocês estão feitos com ele! Ele também me disse isso! A médica está feita com vocês todos. Dão-me comprimidos para me matar! O que vocês todos querem é matar-me! São vocês e essas putas que me gozam! Não querem nada comigo, acham-se demasiado boas para mim! Mas hei-de mostrar-lhes quem manda...

Frisaram que isso não era verdade, nem resolvia coisa nenhuma e que se arriscava a encontrar alguém que lhe fizesse a folha.

— É o que eu digo: Estais feitos uns com os outros para me matar! Cabrões! Ele disse-me que se eu não parasse que depois de me desfazer as mãos para eu nunca mais bater em ninguém, que se eu mesmo assim não parasse, me desfazia as pernas! Vocês não são meus amigos. Querem o meu mal. Todos uma cambada de filhos da puta, é o que vocês são!

Alguém disse que o soltassem e que talvez todos tivessem sorte e o tal que o tinha ameaçado de partir mãos e pernas cumprisse a ameaça.

— Vêm seus cabrões, filhos da puta! Vocês querem é que ele me mate! Prendam-me! Não deixem que esse cabrão venha atrás de mim e me parta todo! Não me podem soltar sem o prenderem primeiro!

Os polícias sorriram, mas explicaram-lhe que não lhe podiam fazer a vontade. A Lei não lhes permitia prendê-lo sem uma ordem do juiz, que certamente consideraria que por ele ser doente seria inimputável e portanto, posto em liberdade. E quanto ao cidadão que o ameaçara, não sabiam quem era e a descrição dele era insuficiente para fazerem uma detenção mesmo que quisessem fazê-la.

Em baba e ranho suplicou:

— Não me soltem! Por favor, sou apenas um pobre homem doente! Tenham piedade!

03 dezembro 2018

Paquiderme



Uma vez na savana africana veio uma seca terrível que condenou à morte muitos animais. Não é incomum a morte visitar África de muitas maneiras, pelo que se calhar todas as criaturas que por lá vivem já deviam estar habituadas e considerar como parte normal do ciclo da vida, nunca morrerem de velhice.
Mas a história que vos quero hoje contar fala de solidariedade e da mais nobre que é aquela que ultrapassa até as fronteiras da espécie, e sobre a ingratidão. Uma ingratidão que poderíamos considerar natural, já que a vida aprendeu há muito que o egoísmo funciona.
Então neste cenário de seca horrível, uma manada de elefantes sofrendo também com a falta de chuva decidiu por ordem da sua matriarca ir procurar água. Um dos elefantes observava já por dias uma leoa esquelética que mal se mexia à sombra das poucas árvores habituadas a resistir. Não sei qual o pensamento do bicho que nunca privei com nenhum, mas é sabido que os elefantes são empáticos entre si, percebendo e procurando consolar-se quando perdem um deles. Fazem luto. Enterram as ossadas dos seus semelhantes num costume que nós, algures no processo evolutivo aprendemos a copiar.
Dizia eu que este elefante se compadeceu da moribunda leoa e se aproximou dela, que rosnou debilmente e sem convicção, talvez aceitando resignada morrer espezinhada por um elefante irritado. Mas não, o elefante com a delicadeza dos elefantes, usou a sua tromba e colocou-a sobre os seus dentes e transportou-a junto com a manada por muitos quilómetros, muitos dias. À noite, quando a manada parava para dormir, ele tirava-a dos seus dentes e procurava-lhe uma cama confortável no pó ou nas ervas secas.
Temos de considerar que os elefantes são os animais que mais sofrem de “bulling” entre o Reino Animal. Gozam do seu ar anafado, meio sem jeito, como se o seu criador fosse uma criança de 3 anos sem grande jeito para o desenho. Aquelas orelhas enormes, a incapacidade de pularem, o medo que têm dos ratos, a sua tromba… Oh quantas vezes se gozou com a sua tromba! Só o seu tamanho impõe respeito e mesmo os leões sabem que embora sejam os reis da floresta, o elefante está fora da sua soberania.
Apesar do nicho que ocupam, este gesto do elefante de transportar por quilómetros uma leoa até um local onde houvesse água, tem de ser designado como sinal de empatia, de abnegação, de solidariedade e arriscaria mesmo dizer de bondade. Apesar da debilidade de também sofrer com a falta de água, o elefante fazia o sacrifício adicional de a transportar. E havia intencionalidade neste transporte, não era uma transferência como às vezes acontece quando uma mãe perde um filho e adota outro em substituição. Este elefante ia levar a leoa a uma fonte de água. Os elefantes são os especialistas nesta questão da água na savana africana, percorrendo centenas de quilómetros e encontram-na. Naturalmente bichos tão grandes não teriam sobrevivido sem estes dons particulares.
Chegaram ao leito seco de um rio que costumava parecer-se com um mar. Andaram por ali a farejar com as trombas e depois começaram a cavar com as patas e as trombas, o que resultou numa espécie de poços, onde a água não tardou a acumular-se. Os elefantes dessedentaram-se e o nosso elefante encheu a sua tromba de água e foi molhar a leoa. Esta recebeu aquela água como uma bênção e apesar da sua fraqueza conseguiu arrastar-se depois até à borda da poça que os elefantes haviam criado e com a sua língua felina bebeu até inchar a barriga. E deixou-se ficar por ali, até que a água milagrosa lhe trouxesse a vida às células traumatizadas. Lentamente a leoa sentiu voltarem-lhe as forças e arrebitou as orelhas. Sonhou que tinha sido transportada nos dentes de um elefante até ali.
E sim, diante de si, a pouca distância um elefante sereno vigiava sobre ela. Sentiu uma dor no estômago, era de fome. Com uma presa tão grande ali ao lado não podia perder a oportunidade. E sem pensar lançou-se sobre o elefante tentando atacar-lhe a tromba. No entanto, talvez estivesse ainda mais fraca do que pensava e o elefante recuou, levantou a tromba para evitar as suas garras e urrou numa espécie de aviso. Mas ela precisava de bifes e não se fazia de esquisita se fossem duros e de elefante. Tentou rodear o elefante para novo ataque, mas esse foi um erro que o elefante estava em melhores condições e agarrou-a pelo rabo com a tromba e fê-la girar no ar duas voltas completas, e atirando-a para longe disse:
-- Vá ser ingrata para a puta que a pariu!
A experiência tirou-lhe o resto das forças e a leoa deixou-se ficar onde caíra e o elefante virou-lhe as costas e foi ter com a sua manada, onde foi recebido com urros de carinho, eu diria mesmo com felicitações por ter dado uma malha na ingrata.
Conclusão moral: Nunca sejas ingrato para o paquiderme que te deu ajuda, porque ele te pode dar cabo do canastro.

02 dezembro 2018

Poesia Revolucionária


Manuel é um estivador. Não é bem, porque não tem nenhum vínculo com a empresa que lhe paga quando o contrata. É contratado dia a dia, ou como já pensava que tinha caído em desuso ou só se usava em trabalhos por natureza sazonais à jorna. Pode entrar à uma da manhã e sair às oito, sem ter a certeza de ter trabalho no dia seguinte. Pode até acontecer que tenha de fazer dois turnos seguidos e ao invés de sair às 8h, saia à 16h da tarde.
Manuel anda à jorna vai para vinte anos. Vinte anos de anulação de todo o progresso civilizacional que nos trouxe aqui, como se aqui houvesse uma bolha que nos remetesse para tempos remotos ou pelo menos que se haviam extinguido nos meados do século vinte, após a queda das ditaduras fascistas. Parece que a bolha é fascista e está infetada…
Manuel já teve mulher, que o deixou porque queria uma vida menos no arame, menos ansiosa. Felizmente não tiveram filhos, porque Manuel teria mais um problema para lidar caso fosse obrigado a pagar pensão de alimentos. Manuel ficou triste que nenhum homem é para viver sozinho. Mas é melhor ter emprego do que não ter. E aqui não é a falta de trabalho que impede o emprego. É apenas um bando de exploradores capitalistas semelhantes a aranhas, que depois das vítimas caírem na sua teia os suga até não terem mais nada para sugar.
Manuel fartou-se desta precariedade. Ele e os camaradas com ele, da estiva, que arriscam a vida para que os gordos continuem anafados. Manuel e os camaradas do sindicato, decidiram dizer basta e fizeram greve. Vieram de imediato as hienas e os abutres dizer que por causa deles a economia nacional seria afetada e quem sabe uma grande fábrica, com um importante peso no PIB talvez decidisse deixar o país!
Manuel perguntava-se se seriam todos idiotas: Então se a sua greve era assim com tais repercussões, não seria mais sensato a entidade contratadora dar-lhes um vínculo permanente, já que trabalho para justificar a criação de emprego existia? Não seria mais sensato vincularem todos os precários que realmente precisavam, pois se não precisassem a greve teria pouco impacto, do que estarem a fazer finca-pé?
Manuel ficou pasmado quando estando no piquete de greve sentado à entrada do porto, viu um autocarro chegar com estivadores contratados para furar a greve. Mais pasmado ficou quando a polícia de choque chegou e tirou um a um os grevistas. A Lei dizia que é ilegal contratar trabalhadores para substituir os trabalhadores em greve. Mas desta vez a ilegalidade veio acompanhada pela ação da polícia.
Manuel nunca se sentiu com vocação de estivador. E não estava contente por ser precário e trabalhador á jorna. Até fora bom aluno na escola, mas o pai não o pudera manter a estudar e aceitou começar a trabalhar logo a seguir ao ensino obrigatório. Ainda tirou um curso profissional e depois de vários empregos mal pagos, viu na estiva uma oportunidade. Ganhava bem, mas bem que lhe saia do pêlo e nunca era certo. Por isso nunca comprou um carro novo ou uma casa. Mas aqui o importante é que o Manuel não foi por vocação que se tornou estivador. Foram mais as circunstâncias. Quando era mais novo ainda sonhava ser um desportista famoso. Mas com a idade isso passou-lhe. Às vezes sonhava em ser artista, e como na escola fora bom a português sendo que o professor sempre lhe elogiava os trabalhos, talvez ser um escritor, um poeta!
Manuel recebeu um dia de um primo seu que tinha vindo da América um bastão de basebol. Ficou admirado com a prenda, mas achou que o ignorante do primo não fazia ideia que em Portugal não jogamos basebol. Mas agora até achava que era um sinal. Algo a alimentar-lhe os sonhos antigos, a dirigir os seus passos. Muitas vezes pensamos que não somos nada, mas só somos nada até que tudo se conjura para nos transportar nas asas do que tem de ser, sendo que este tem de ser tem realmente muita força. Manuel compreendeu que tinha de cumprir o seu destino…
Pegou no taco de basebol e foi escrever poesia revolucionária nas trombas de exploradores capitalistas.

01 dezembro 2018

Torrada ou cacete



Blozonov era rico, muito rico, mas não fora por trabalhar muito ou ter algum dom artístico e feito uma brilhante carreira. Blozonov era rico porque como todo o indivíduo que não herda e enriquece, era um ladrão. Não, não um desses pilha-galinhas ou mesmo um habilidoso carteirista ou assaltante de Bancos. Aliás hoje em dia são os Bancos que assaltam. Blozonov fez fortuna como é de regra fazer-se fortuna a roubar o Estado. Quando se deu o colapso da União Soviética, ele “nacionalizou” em seu favor algumas propriedades coletivas, ou seja que pertenciam ao Estado.
É sempre bom, de vez em quando, o Estado andar assim perdido sem autoridade, para que uns indivíduos como Blozonov possam ter uma oportunidade de se tornarem uns oligarcas. Claro que não foi sozinho que o conseguiu, teve de haver umas cumplicidades, uns jogos de cintura e uns idiotas úteis, mas depois tudo se resolveu em seu benefício e à cautela meteu logo algum dinheiro no estrangeiro. O dinheiro não conhece pátria e ficar assim onde se ganhou podia ser a tentação de alguém mais ladrão do que ele. Ou então algum patriota decidido a fazer voltar ao Estado o que dele tinha sido. A sorte de Blozonov foi nesse época gloriosa para todos os candidatos a oligarcas, haver muitos! Alguns até com ainda mais ambição que ele ou vivendo em zonas mais favoráveis e ricas.
Finalmente veio um patriota que lhes tornou as coisas claras: Desde que não fizessem muita merda e não se metessem na política ele deixava-os governar-se com o saque. Mas um pé fora do risco e ficavam sem nada. Alguns tentaram desafiá-lo e com o seu poderio económico quiseram também a parte política. Azar! Processos relativos a fuga aos impostos e rapidamente acabaram na prisão, pelo menos os que não conseguiram fugir a tempo para Londres, que desde que o roubo fosse fora das terras de Sua-Majestade, não se importava de lhes receber as fortunas.
Blozonov ganhara tanto dinheiro que desenvolveu certas bizarrias tão típicas de quem não consegue resolver todas as psicoses que adquire. Blozonov tinha uma relação violenta com os telemóveis. Gostava deles, mas às vezes eles não se comportavam como ele esperava, ou não lhe davam as notícias que ele queria. Ele tinha um mau acordar. Os seus empregados, procuravam não manter muito contacto com ele após o seu acordar. (Acho que é um traço comum a todos os psicopatas…) Mas já se tinham habituado a perguntar-lhe:
-- Torradas ou cacete, Senhor?
Se ele acenasse com a mão queria dizer torradas, mas se abanasse o telemóvel na sua mão direita queria dizer cacete. Um dos seus guarda-costas, neste último caso entregar-lhe-ia um bastão de basebol, enquanto ele lhe passaria o telemóvel para a mão. Depois numa espécie de coreografia previamente encenada, o guarda-costas procuraria lançar-lhe o telemóvel que ele tentaria acertar com o bastão de basebol. Nem sempre lhe acertava e nesses casos, pularia com evidente ataque de fúria, sobre o telemóvel a pés juntos até este ficar irremediavelmente perdido.
Claro que Blozonov usava sempre os mais caros telemóveis. Não por causa das características, que a maioria não usava, mas pelo status que conferiam. A principio os seus empregados observavam a cena estarrecidos mas sem protestarem, não fosse Blozonov usar-lhes a cabeça com o taco! O tempo foi passando até que algum deles se lembrou de trocar o telemóvel novo por um que já antes tivesse conhecido destino semelhante, enganando Blozonov que pensava estar a largar a sua fúria no telemóvel culpado e não num que já havia sofrido semelhante sentença. Assim todos os empregados acabaram a ter telemóveis de topo de gama, coisa a que com os seus magros salários nunca poderiam chegar. Blozonov era rico, mas capitalista convicto e por isso nunca pagava salários altos. Depois os empregados compravam umas capas para disfarçar e a coisa tinha corrido bem, com benefícios para todos os envolvidos. Blozonov também era ligeiramente míope, mas recusava-se a usar óculos ou lentes de contacto o que também facilitava.
Mas quis um dia que um empregado menos dotado de inteligência, lançasse um telemóvel com uma capa cor de rosa. Blazonov nunca usaria um telemóvel com uma capa cor de rosa e de imediato reconheceu que ali havia qualquer coisa fora do lugar.
Felizmente um outro empregado, mais dotado de cérebro e anterior carteirista, apanhou rápido o telemóvel de capa cor de rosa, trocando-o pelo de Blozonov e que tinha sido temporariamente safo do martírio. Blozonov olhou para o telemóvel que lhe foi entregue reconhecendo-o como seu mas perguntou:
-- Então e qual era o cor-de-rosa que vi?
-- Era o meu… -- disse o empregado carteirista – Sua Excelência deve ter visto o meu.
Blozonov continuou na dúvida, mas já tinha o seu telemóvel na mão e sem apelo nem agravo decidiu executar-lhe a sentença, colocando-o em cima da mesa e mandando-lhe uma tremenda tacada que o fez entregar a alma e as tripas. A chávena de porcelana e o pires que estavam sobre  a mesa para o pequeno-almoço, em solidariedade também saltaram e acabaram em cacos no chão.
Criaturas como Blozonov tem este dom de fazer tudo em cacos.