03 dezembro 2018

Paquiderme



Uma vez na savana africana veio uma seca terrível que condenou à morte muitos animais. Não é incomum a morte visitar África de muitas maneiras, pelo que se calhar todas as criaturas que por lá vivem já deviam estar habituadas e considerar como parte normal do ciclo da vida, nunca morrerem de velhice.
Mas a história que vos quero hoje contar fala de solidariedade e da mais nobre que é aquela que ultrapassa até as fronteiras da espécie, e sobre a ingratidão. Uma ingratidão que poderíamos considerar natural, já que a vida aprendeu há muito que o egoísmo funciona.
Então neste cenário de seca horrível, uma manada de elefantes sofrendo também com a falta de chuva decidiu por ordem da sua matriarca ir procurar água. Um dos elefantes observava já por dias uma leoa esquelética que mal se mexia à sombra das poucas árvores habituadas a resistir. Não sei qual o pensamento do bicho que nunca privei com nenhum, mas é sabido que os elefantes são empáticos entre si, percebendo e procurando consolar-se quando perdem um deles. Fazem luto. Enterram as ossadas dos seus semelhantes num costume que nós, algures no processo evolutivo aprendemos a copiar.
Dizia eu que este elefante se compadeceu da moribunda leoa e se aproximou dela, que rosnou debilmente e sem convicção, talvez aceitando resignada morrer espezinhada por um elefante irritado. Mas não, o elefante com a delicadeza dos elefantes, usou a sua tromba e colocou-a sobre os seus dentes e transportou-a junto com a manada por muitos quilómetros, muitos dias. À noite, quando a manada parava para dormir, ele tirava-a dos seus dentes e procurava-lhe uma cama confortável no pó ou nas ervas secas.
Temos de considerar que os elefantes são os animais que mais sofrem de “bulling” entre o Reino Animal. Gozam do seu ar anafado, meio sem jeito, como se o seu criador fosse uma criança de 3 anos sem grande jeito para o desenho. Aquelas orelhas enormes, a incapacidade de pularem, o medo que têm dos ratos, a sua tromba… Oh quantas vezes se gozou com a sua tromba! Só o seu tamanho impõe respeito e mesmo os leões sabem que embora sejam os reis da floresta, o elefante está fora da sua soberania.
Apesar do nicho que ocupam, este gesto do elefante de transportar por quilómetros uma leoa até um local onde houvesse água, tem de ser designado como sinal de empatia, de abnegação, de solidariedade e arriscaria mesmo dizer de bondade. Apesar da debilidade de também sofrer com a falta de água, o elefante fazia o sacrifício adicional de a transportar. E havia intencionalidade neste transporte, não era uma transferência como às vezes acontece quando uma mãe perde um filho e adota outro em substituição. Este elefante ia levar a leoa a uma fonte de água. Os elefantes são os especialistas nesta questão da água na savana africana, percorrendo centenas de quilómetros e encontram-na. Naturalmente bichos tão grandes não teriam sobrevivido sem estes dons particulares.
Chegaram ao leito seco de um rio que costumava parecer-se com um mar. Andaram por ali a farejar com as trombas e depois começaram a cavar com as patas e as trombas, o que resultou numa espécie de poços, onde a água não tardou a acumular-se. Os elefantes dessedentaram-se e o nosso elefante encheu a sua tromba de água e foi molhar a leoa. Esta recebeu aquela água como uma bênção e apesar da sua fraqueza conseguiu arrastar-se depois até à borda da poça que os elefantes haviam criado e com a sua língua felina bebeu até inchar a barriga. E deixou-se ficar por ali, até que a água milagrosa lhe trouxesse a vida às células traumatizadas. Lentamente a leoa sentiu voltarem-lhe as forças e arrebitou as orelhas. Sonhou que tinha sido transportada nos dentes de um elefante até ali.
E sim, diante de si, a pouca distância um elefante sereno vigiava sobre ela. Sentiu uma dor no estômago, era de fome. Com uma presa tão grande ali ao lado não podia perder a oportunidade. E sem pensar lançou-se sobre o elefante tentando atacar-lhe a tromba. No entanto, talvez estivesse ainda mais fraca do que pensava e o elefante recuou, levantou a tromba para evitar as suas garras e urrou numa espécie de aviso. Mas ela precisava de bifes e não se fazia de esquisita se fossem duros e de elefante. Tentou rodear o elefante para novo ataque, mas esse foi um erro que o elefante estava em melhores condições e agarrou-a pelo rabo com a tromba e fê-la girar no ar duas voltas completas, e atirando-a para longe disse:
-- Vá ser ingrata para a puta que a pariu!
A experiência tirou-lhe o resto das forças e a leoa deixou-se ficar onde caíra e o elefante virou-lhe as costas e foi ter com a sua manada, onde foi recebido com urros de carinho, eu diria mesmo com felicitações por ter dado uma malha na ingrata.
Conclusão moral: Nunca sejas ingrato para o paquiderme que te deu ajuda, porque ele te pode dar cabo do canastro.

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