08 dezembro 2018

Vida de Cão



Não importava como chegava à fala com ela que o resultado era inevitavelmente o mesmo: uma frieza e um distanciamento educado. Talvez isso também fizesse parte do plano, chamar-lhe imbecil de forma subtil, que ainda não percebera que o tempo dele se tinha esgotado inexoravelmente. Agora vir como um cachorro abandonado pedinchar-lhe um afago, devia dar-lhe um enorme gozo, a ela que só aceitava cães com “pedigree”. Em relação a ele era apenas vir humilhar-se em múltiplas variantes.

Esta sua vida de cão e os cães dependem da sorte, consumia-lhe a alma e era tempo de lhe por um fim. Por mais que a amasse, se ela era demasiado orgulhosa para não o aceitar, que podia ele fazer? Tudo termina até os amores eternos sem terra fértil para germinar e deitar raízes. A ele apenas davam ossos e eram restos.

Era um cão de tal maneira vadio que nunca o procurava para lhe fazer uma festita na cabeça, ele é que se aproximava e era recebido de maneira fria e a desejar distância. Mesmo os cães, que são muito humildes neste respeito, acabam a perceber a mensagem e depois de uma vez ou duas a serem recebidos assim, percebem que é melhor procurar outro dono, que dali não levam nada! Ele demorou a perceber depois que tentara muito mais que duas vezes. Talvez ela tivesse razão e ele não passasse de um cão estúpido. 

Todo este introito apenas para vos explicar como Manuel se apaixonara por uma mulher que nitidamente não era para ele. Aliás ela apaixonou-se por ele, uma daquelas coisas eruptivas e telúricas como só as mulheres são capazes de sentir e conversou com o Manuel milhares de conversas íntimas, e este a princípio não acreditou que fosse para ele. Mas depois, que até os cães gostam de amor, deixou-se ir, entregou-se e como os cães, depois que se entregam são fiéis quase para a vida toda. Quis entregar-se de tal maneira que lhe escreveu um livro de poemas e tudo! Deu-lhe tudo o que pode. Fez dela o centro do seu universo.
Mas a realidade quer-se sempre impor, que a mulher embora apaixonada, estava num momento baixo da sua vida. Tinha sido uma profissional bem-sucedida, mas um erro estúpido tinha-lhe feito interromper a carreira. Ele, e só sabia fazer isso, animou-a, fê-la sentir-se desejada e era tudo sincero da parte dele. Ela pensou até divorciar-se para viver o resto dos seus dias com ele, mas ele não estava preparado e declinou. 

Dizia-me o meu pai que uma mulher rejeitada é perigosíssima e ainda aqui há uns dias li que uma namorada só porque o namorado mandara os parabéns a outra, matou-o à facada. Talvez ela se tenha sentido rejeitada, ou talvez tenha sido o retomar da sua atividade profissional e o começar a privar outra vez com a “high society”, passou a olhá-lo de outra maneira. Tenha sido o que foi, o que é certo é que passou a tratá-lo com distância. Educada, mas fria e a dar para trás. Ele reafirmou-lhe o seu amor, mas já não havia nada que a aproximasse. Sempre que ele tentava, às vezes até lhe parecia sentir a antiga chama, mas que ela pressurosa, vinha apagar de extintor ou com balde de água fria.

A coisa perdera mesmo o sentido, de todo e em pleno e com choque, quando ele a foi visitar ao seu escritório e ela o recebeu como quem recebe um cliente. Foi lá para lhe oferecer uma pintura e ela desdenhou do quadro quanto pode, desdenhou do tema e não gostou das cores e a única coisa a que achou piada foi à moldura, coisa que não tinha sido ele a fazer. Como se tudo o que tivesse dito fosse medido num crescendo para o magoar o máximo possível. Saiu de lá com o coração despedaçado. Como os cães corridos a pontapé, a quem se deu de comer por pena, mas de quem agora se quer distância, não vá o animal querer dono. Tentou manter o contacto mesmo que marginal, e era recebido sempre com uma agressividade mal contida. Sentia que havia até uma espécie de provocação com o fito de o atingir o fazer sentir mal, ou era ele apenas a ampliar essa sensação de se sentir rejeitado.

Não podia fazer nada, da mesma forma que os cães abandonados não podem levar os donos ao arrependimento. Baixou a cabeça resignado, como o rafeiro que segue o seu caminho porque mais nada há a fazer do que não ser segui-lo.

Há cães com sorte, mas não era o caso dele, apesar da sua vida de cão.

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