06 dezembro 2018

Terapia Brutal




Quando apanharam o suspeito de espancamentos e homicídios a suspeitos de violência doméstica ele mostrou-se profundamente calmo. Dizem que as boas consciências permitem um sono profundo. A boa consciência deste indivíduo apesar das agressões e mortes de que seria autor não podia deixar de causar admiração. E temos de admitir que mesmo na polícia, muitos daqueles a quem a violência doméstica metia nojo, nutriam por ele uma certa simpatia. Mas não passava de um suspeito. E para todos os efeitos andar a espancar e matar pessoas era um crime e a Lei era para todos, se bem que pouco fizesse pelas vítimas, mas não há sistemas perfeitos.

Quando lhe perguntaram qual a sua profissão, agitou-se um pouco na cadeira afirmando estar desempregado. Mas gostava de pensar em si como um terapeuta, ouvindo as queixas dos outros e procurando ajudar. Alguns riram-se com a sua pretensão de “terapeuta” já que a sê-lo praticaria uma terapia radical! Tinham um dos últimos casos documentados, em que a vítima morrera a esvair-se em sangue com as mãos cortadas e um golpe no abdómen. Apesar da violência da cena a vítima não era ninguém por quem se chorasse, pois, antes de ter esse fim trágico, tinha no seu historial anos de prática de violência doméstica contra a sua companheira. Para além das pisaduras regulares devido a cargas de pancada, a pobre companheira deste monstro tinha sofrido vários olhos negros, pontos na cabeça, costelas e braços partidos e por último tinha sido morta à facada na cozinha do apartamento onde habitavam. Foi dois dias depois da morte da companheira que ele foi encontrado com as mãos cortadas e sem vida no meio da rua. Numa das mãos decepadas havia uma pistola carregada, que presumem o agressor terá empunhado para se defender do “Justiceiro”, e que de nada lhe valeu. Não havia testemunhas que tivessem assistido ao crime.

Sem testemunhas como podia o cidadão pretenso terapeuta ser suspeito? Coincidências e circunstâncias. Não era o primeiro caso de assassinato de agressores em contexto de violência doméstica. Nem todos tinham sido mortos, que parecia haver alguma proporcionalidade entre os danos infligidos. Os que apenas batiam nas mulheres ao ponto das nódoas negras, era com isso que ficavam, nódoas negras. Os que partiam ossos, tinham os ossos quebrados. Os que matavam... Acabavam mortos.

A polícia não aprecia vigilantes, nem vingadores, nem milícias, não porque não lhes reconheça algum valor, às vezes meramente pedagógico, mas porque não se pode permitir competição. No fundo, eles estão na cadeia da administração da justiça e não podem, nem querem, ser arredados dela por um qualquer justiceiro, por mais justo e pedagógico que seja.

Haviam chegado até este suspeito, porque as descrições no geral coincidiam ao menos na altura do suspeito, nem sempre na sua corpulência ou aparência, mas essas eram coisas que podiam ser alteradas. O problema com este, entre os muitos que tinham entrevistado, é que não tinha alibi em nenhum dos casos que estavam em investigação. Um mandato de busca à residência do suspeito tinha sido inútil no sentido da prova do seu envolvimento. Apesar de ter telemóvel, este nunca tinha sido apanhado na proximidade dos locais dos ataques. A essas horas permanecia em casa, onde o suspeito dizia ter estado a essas horas. Os vizinhos não podiam ajudar, pois embora o conhecessem e o achassem simpático e prestável, não lhe vigiavam as saídas e as entradas.

As TVs dedicadas a estes casos de faca-e-alguidar tinham promovido “O Justiceiro das Mulheres” como lhe chamavam, o que deixara as chefias policiais e o Ministro da Administração Interna e o da Justiça bastante chateados, pois ninguém gosta que lhe tirem o trabalho ou a importância. Houve algum valor pedagógico, que os casos de violência doméstica diminuíram. O caso ganhou mais pressão para ser resolvido quando um juiz conhecido por bater na mulher e que, entretanto, se divorciara, foi encontrado brutalmente espancado no seu próprio apartamento. O juiz também não foi capaz de um testemunho muito coerente até porque não soubera dizer ou não quisera dizer, onde tinha estado antes de entrar no seu apartamento e ser espancado. Sem ser por vias legais, soubera-se que estivera nas imediações da residência da ex-mulher e quando confrontado com essa possibilidade negara. Possivelmente era um “stalker” o que não deixa de ser violência psicológica. A polícia também não nutria simpatias pelo juiz e desconsiderou que tivesse sido espancado por causa de ser um agressor, mas apontavam antes para uma vingança de alguém por ele condenado. Isso também diminuía a importância do “Justiceiro” e salvava a face ao juiz. Em relação à tromba tinha ficado bastante estragada, por sinal.

Perguntaram então ao suspeito o que ele achava da violência doméstica ao que ele disse que era irrelevante o que ele achava, mas afirmou que achava uma realidade deplorável. Quiseram saber se alguma vez teria tido vontade de fazer justiça, ao que disse que para a administração da justiça havia canais próprios como as polícias e os tribunais e não pensava substituí-los, tanto mais que nem sequer lhe pagavam para isso. Quando lhe perguntaram o que devia ser uma medida de combate à violência doméstica respondeu: Sessões de terapia. Como não havia nada que lhes permitisse dizer que estavam diante do “Justiceiro” foram obrigados a libertá-lo. Talvez o pudessem por de vigilância, mas os recursos eram escassos e não houvesse evidência mais substancial, seria inútil esse desperdício de meios. Olharam para ele com um sorriso entre o frustrado e o simpático e a acharam que a ser ele, exercia uma terapia brutal!

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