05 dezembro 2018

Tenham Piedade





Nesta nossa vontade de progresso, às vezes andamos em círculos ou até retrocedemos porque nos tornamos demasiado delicados para lidar com o mal. Achamos que tudo deve ser tratado de maneira diplomática, como se todos se regessem por nobres princípios ou até fossem sensíveis à voz da razão. É bom ter em mente que todos nascemos egoístas e alguns por nunca serem propriamente educados desenvolvem posturas trogloditas incompatíveis com a diplomacia ou até mesmo com a vida em sociedade. Tais criaturas a quem a evolução conferiu inevitavelmente a selvajaria própria a uma sobrevivência na selva, são inadequadas a sociedades requintadas. Vem isto a propósito de alguns criminosos refinados e de outros menos refinados, que parece que na sua senda de causar o mal dos outros, parecem sair-se muito bem, sem problemas de maior.

Conta a história que neste jardim à beira-mar plantado, se praticava a arte do varapau, para dirimir atitudes menos próprias. O nosso grande poeta Camões era ao que diziam bom também nessa arte, o que prova que a poesia e algo mais sólido fazem uma boa combinação. Em diversas terras portuguesas havia esta pedagógica provisão em que os anciãos reunidos em conselho multavam os prevaricadores da aldeia e caso não fosse suficiente algo mais sólido nas costas dos pecadores, servia-lhes de penitência e algumas vezes de emenda. Ou emendavam-se ou mudavam-se, pois diz antigo ditado: Quem não está bem, muda-se!

Essas velhas tradições e eu nem sequer sou muito defensor de tradições, mas sou obrigado a reconhecer que a diplomacia e o politicamente correto não mostram os resultados que esperávamos e temos então de procurar as velhas fórmulas. Afinal a quem não evoluiu no tempo é preciso encontrar a pedagogia adequada ao seu estado evolutivo. Trata-se apenas de pragmatismo. Muitas vezes a teoria não concorda com a prática. E ou se descarta ou se define a exceção e se age em conformidade.

Toda esta conversa a respeito de um caso ocorrido no sul do país numa área suburbana, em que um mocinho perseguia mulheres jovens para as encher de pancada, masturbar-se diante delas e para cima delas. Direis que era um espírito perturbado e naturalmente que o era. Fora diagnosticado com esquizofrenia. Quando tomava a medicação era civilizado, mas amiúdes vezes esquecia-se de a tomar e os seus familiares sentiam dificuldades em fazê-lo tomar a dita medicação com a regularidade necessária. Afinal para muito esquizofrénico, quem quer que eles tomem os medicamentos quer-lhes fazer mal, nesta mania da perseguição que também desenvolvem.

As miúdas continuavam a ser atacadas, causando o pânico na região. A polícia dizia que nada podia fazer, pois quando o prendia, ele acabava invariavelmente solto. E voltava a repetir a dose, traumatizando as que selvaticamente atacava. Não raro precisavam de tratamento hospitalar e algumas ficaram bem próximo de acabar desfiguradas. Houve mesmo um movimento cívico que pugnava que ele fosse internado compulsivamente. Contudo, mesmo que fosse, um dia dar-lhe-iam alta, receitar-lhe-iam medicação que ele acabaria por deixar de tomar e voltaria novamente à sua atividade preferida de perseguir mulheres e de lhes bater e esporrar para cima. As autoridades voltariam a lamentar não poder fazer nada e viveria todo o mundo na expectativa de um dia um mal maior acontecer...

Vou falar-vos do mal maior, que é termos de recuar na civilização e passarmos a fazer justiça pelas próprias mãos. Em especial quando o Estado se está nas tintas para os cidadãos e só ama o contribuinte. Talvez alguém tenha tido uma irmã espancada ou uma namorada com medo de andar na rua e se tenha decidido dar ao espécimen uma lição. Nunca saberemos ao certo a não ser pelo relato do próprio, que sossego-vos já, sobreviveu ao ataque de que foi vítima. Ouçamo-lo quando apresentou queixa na esquadra:

— Fui selvaticamente agredido! Uma besta à solta, têm de fazer alguma coisa!

Alguém lhe lembrou que antes disso tinha atacado uma mulher de tal forma que esta teve de receber tratamento hospitalar.

— Mas isso não justifica tratar-me assim! Agarrou-me pelos cabelos e bateu-me com a cara na parede! Se bati na mulher é porque sou doente e não me controlo...

Perguntaram-lhe se admitindo que era doente e perdia o controlo, se estava a seguir algum tratamento.

— Sim.

Perguntaram-lhe qual.

— Querem que eu tome uns comprimidos... Mas eu sei que são para eu ficar pior!

Quiseram saber se ele os tinha tomado ou não.

— Não... Mas ele disse-me que na próxima me partia as mãos com um martelo! Mostrou-me o martelo! Disse-me que me deixaria as mãos de tal forma que eu nunca mais bateria em ninguém! Eu não quero bater em ninguém... É a doença que me leva.

Choramingou. Alguém lhe fez lembrar que se ele não quisesse ser dominado pela doença, bastava tomar os comprimidos e não faria tais coisas.

— Vocês estão feitos com ele! Ele também me disse isso! A médica está feita com vocês todos. Dão-me comprimidos para me matar! O que vocês todos querem é matar-me! São vocês e essas putas que me gozam! Não querem nada comigo, acham-se demasiado boas para mim! Mas hei-de mostrar-lhes quem manda...

Frisaram que isso não era verdade, nem resolvia coisa nenhuma e que se arriscava a encontrar alguém que lhe fizesse a folha.

— É o que eu digo: Estais feitos uns com os outros para me matar! Cabrões! Ele disse-me que se eu não parasse que depois de me desfazer as mãos para eu nunca mais bater em ninguém, que se eu mesmo assim não parasse, me desfazia as pernas! Vocês não são meus amigos. Querem o meu mal. Todos uma cambada de filhos da puta, é o que vocês são!

Alguém disse que o soltassem e que talvez todos tivessem sorte e o tal que o tinha ameaçado de partir mãos e pernas cumprisse a ameaça.

— Vêm seus cabrões, filhos da puta! Vocês querem é que ele me mate! Prendam-me! Não deixem que esse cabrão venha atrás de mim e me parta todo! Não me podem soltar sem o prenderem primeiro!

Os polícias sorriram, mas explicaram-lhe que não lhe podiam fazer a vontade. A Lei não lhes permitia prendê-lo sem uma ordem do juiz, que certamente consideraria que por ele ser doente seria inimputável e portanto, posto em liberdade. E quanto ao cidadão que o ameaçara, não sabiam quem era e a descrição dele era insuficiente para fazerem uma detenção mesmo que quisessem fazê-la.

Em baba e ranho suplicou:

— Não me soltem! Por favor, sou apenas um pobre homem doente! Tenham piedade!

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