02 dezembro 2018

Poesia Revolucionária


Manuel é um estivador. Não é bem, porque não tem nenhum vínculo com a empresa que lhe paga quando o contrata. É contratado dia a dia, ou como já pensava que tinha caído em desuso ou só se usava em trabalhos por natureza sazonais à jorna. Pode entrar à uma da manhã e sair às oito, sem ter a certeza de ter trabalho no dia seguinte. Pode até acontecer que tenha de fazer dois turnos seguidos e ao invés de sair às 8h, saia à 16h da tarde.
Manuel anda à jorna vai para vinte anos. Vinte anos de anulação de todo o progresso civilizacional que nos trouxe aqui, como se aqui houvesse uma bolha que nos remetesse para tempos remotos ou pelo menos que se haviam extinguido nos meados do século vinte, após a queda das ditaduras fascistas. Parece que a bolha é fascista e está infetada…
Manuel já teve mulher, que o deixou porque queria uma vida menos no arame, menos ansiosa. Felizmente não tiveram filhos, porque Manuel teria mais um problema para lidar caso fosse obrigado a pagar pensão de alimentos. Manuel ficou triste que nenhum homem é para viver sozinho. Mas é melhor ter emprego do que não ter. E aqui não é a falta de trabalho que impede o emprego. É apenas um bando de exploradores capitalistas semelhantes a aranhas, que depois das vítimas caírem na sua teia os suga até não terem mais nada para sugar.
Manuel fartou-se desta precariedade. Ele e os camaradas com ele, da estiva, que arriscam a vida para que os gordos continuem anafados. Manuel e os camaradas do sindicato, decidiram dizer basta e fizeram greve. Vieram de imediato as hienas e os abutres dizer que por causa deles a economia nacional seria afetada e quem sabe uma grande fábrica, com um importante peso no PIB talvez decidisse deixar o país!
Manuel perguntava-se se seriam todos idiotas: Então se a sua greve era assim com tais repercussões, não seria mais sensato a entidade contratadora dar-lhes um vínculo permanente, já que trabalho para justificar a criação de emprego existia? Não seria mais sensato vincularem todos os precários que realmente precisavam, pois se não precisassem a greve teria pouco impacto, do que estarem a fazer finca-pé?
Manuel ficou pasmado quando estando no piquete de greve sentado à entrada do porto, viu um autocarro chegar com estivadores contratados para furar a greve. Mais pasmado ficou quando a polícia de choque chegou e tirou um a um os grevistas. A Lei dizia que é ilegal contratar trabalhadores para substituir os trabalhadores em greve. Mas desta vez a ilegalidade veio acompanhada pela ação da polícia.
Manuel nunca se sentiu com vocação de estivador. E não estava contente por ser precário e trabalhador á jorna. Até fora bom aluno na escola, mas o pai não o pudera manter a estudar e aceitou começar a trabalhar logo a seguir ao ensino obrigatório. Ainda tirou um curso profissional e depois de vários empregos mal pagos, viu na estiva uma oportunidade. Ganhava bem, mas bem que lhe saia do pêlo e nunca era certo. Por isso nunca comprou um carro novo ou uma casa. Mas aqui o importante é que o Manuel não foi por vocação que se tornou estivador. Foram mais as circunstâncias. Quando era mais novo ainda sonhava ser um desportista famoso. Mas com a idade isso passou-lhe. Às vezes sonhava em ser artista, e como na escola fora bom a português sendo que o professor sempre lhe elogiava os trabalhos, talvez ser um escritor, um poeta!
Manuel recebeu um dia de um primo seu que tinha vindo da América um bastão de basebol. Ficou admirado com a prenda, mas achou que o ignorante do primo não fazia ideia que em Portugal não jogamos basebol. Mas agora até achava que era um sinal. Algo a alimentar-lhe os sonhos antigos, a dirigir os seus passos. Muitas vezes pensamos que não somos nada, mas só somos nada até que tudo se conjura para nos transportar nas asas do que tem de ser, sendo que este tem de ser tem realmente muita força. Manuel compreendeu que tinha de cumprir o seu destino…
Pegou no taco de basebol e foi escrever poesia revolucionária nas trombas de exploradores capitalistas.

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