25 outubro 2021

O destino dos Inspetores


 Photo by Maria Teneva on Unsplash

 

 

O país sofreu uma revolução dita socialista, apenas por puro marasmo e deixou-se acontecer porque o país não tinha qualquer interesse para a comunidade internacional, visto não ter uma posição geoestratégica importante ou recursos para explorar. O país era pobre e pacato com uma população que se dedicava maioritariamente à agricultura de subsistência e alguma indústria pouco desenvolvida, muito ligada quer à transformação da produção agrícola ou ligada à construção civil: Fábricas de compotas e sumos, descascadoras de arroz, fábricas de rações e as de vigas de pré-esforçado, tijolo e ladrilho. Algumas serralharias, havia uma siderurgia que funcionava com sucata importada e que às vezes, quase parava porque não havia dinheiro para comprar a sucata!

O país vivia apaticamente, entre as festas nas aldeias que aconteciam após as colheitas e os dois canais de televisão que tinham um horário curto, sendo que o primeiro canal começava pelas três da tarde e terminava à meia-noite. O segundo canal começava às seis da tarde e acabava o mais tardar pela uma da manhã, em especial quando o filme que passavam durava mais um bocado.

Havia um jornal diário, dois ou três semanários generalistas. Os semanários iam fechando e abrindo, que o povo não era muito de ler. Os únicos que resistiam eram os semanários desportivos dos quais existiam pelo menos três e nunca tinham fechado!

Assim a revolução socialista deve ter surgido por apatia, alguns militares aborrecidos sem nada para fazer a não ser coçar os genitais, devem ter-se lembrado que seria interessante por o país nas bocas do mundo, fazendo a Revolução. O povo aceitou sem resistência porque os militares revolucionários prometeram muito e já se sabe que todos vão atrás de quem promete, mesmo que seja o Paraíso após a morte.

Claro que pouco tempo depois a vida voltou ao mesmo de antes e os protestos foram apenas dos saudosos do passado. As pessoas voltaram às suas atividades quotidianas e o país voltou ao mesmo ritmo a que estava habituado. Os militares apenas conseguiram uma nota marginal nalguns noticiários e jornais do mundo com a sua Revolução. Também eles se sentiram desiludidos e procuraram manter as coisas a funcionar sem muitas ondas, com alguns esquissos de política de esquerda. Tentaram criar algumas cooperativas, o que conseguiram com bastante sucesso, já que estas introduziram alguma mecanização quer no trabalho árduo quer na transformação dos produtos agrícolas. Assim os bois usados nos trabalhos agrícolas passaram a deixar de ser fundamentalmente usados como máquina agrícola de lavrar e de transporte, para passarem a ser criados como animais para produção de leite e carne. Com isso, a vida melhorou um pouco, sendo que a carne e o leite se tornaram acessíveis a uma população muito maior, e eliminou a eventual desconfiança sobre as cooperativas. Também houve cooperativas especialmente dedicadas à criação de galinhas e de porcos. Assim melhorou muito o nível de vida da maioria dos cidadãos que por meio das cooperativas agrícolas ganharam um pouco mais de dinheiro e a produção destas pode ser canalizada para as cidades que sentiram positivamente esta abundância.

Outras coisas naturalmente correram pior. Embora a produção agrícola conseguisse a autossuficiência e as indústrias existentes fossem dando para o gasto, não era propriamente uma sociedade de abundância. A aposta após a Revolução foi na saúde e na educação. Os militares no governo deixaram entrar inclusive algumas Organizações Não Governamentais internacionais que ajudaram a criar o sistema nacional de saúde que antes não existia e o povo gostou, porque teve acesso pela primeira vez a cuidados básicos. Às vezes faltavam medicamentos e algumas regiões tinham falta de médicos. Isso obrigou o governo revolucionário a investir na educação.

Apenas havia uma Universidade no país que cresceu bastante através de um generoso orçamento e aos poucos foram formados mais médicos. Estes estavam proibidos de sair do país até quinze anos após a sua formação. Compreende-se que um país pobre tivesse de recorrer a estas violações dos direitos humanos, em especial da liberdade de circulação, já que o governo dizia onde o médico recém-formado ia exercer. Os novos engenheiros começaram a entrar nas indústrias levando a melhorias graduais que tornaram menos aleatória a qualidade dos produtos e até a fazer surgir alguma inovação que às vezes era abafada pelos burocratas do partido. Desses falaremos de uma classe em particular e do seu destino: Os inspetores.

Como surgiram os inspetores?

Um velho barco transportando uns quantos contentores de latas de spray lubrificante (de uma marca mundialmente conhecida), atracou no único porto do país devido a uma avaria. O navio foi reparado, mas isso levou a que houvesse um atraso na entrega dos contentores e o importador queixou-se da demora e acionou o seguro. Por sua vez a seguradora quis que fosse o país a assumir a despesa devido a “demoras inadmissíveis numa reparação simples”. Mas o país não tivera qualquer culpa pois ficara esperando que lhe fossem entregues as peças necessárias e recusou pagar! Aliás o país reclamava ser pago pela reparação ou ficava com o barco e o conteúdo. Isto claro não era do agrado do armador que por sua vez acionou o seu seguro e puseram esta gente toda a discutir o assunto. O elo mais fraco desta discussão era mesmo o país da revolução popular. Finalmente conseguiram chegar a acordo e o país ficou com os contentores e seu conteúdo a título de pagamento da reparação. Foi assim que o país se viu com uma abundância surpreendente de latas de spray de lubrificante!

Num golpe de marketing político o governo socialista decidiu que depois da indústria ser abastecida, segundo as suas necessidades, as latas iam ser providenciadas ao povo! Mas não da forma comum, por disponibilizar em loja as ditas latas. Como sempre nestas sociedades de economia planificada a coisa é sempre coberta por complicações desnecessárias, sempre estabelecidas com uma lógica que parece correta, mas que acaba ensarilhando tudo.

Anunciada a medida como o permitir a todos o acesso ao lubrificante fantástico e mostrando como a negociação do governo com as seguradoras fora uma vitória do povo, o governo com pompa e circunstância declarou a formação de inspetores que levariam a todos a oportunidade de usarem quando precisassem o lubrificante em spray e que isso era um enorme progresso tecnológico disponível a todos, enquanto nos países capitalistas só quem tinha dinheiro podia adquirir tal coisa!

A população não ligou coisa nenhuma para o anúncio da medida e preferiu continuar a discutir futebol. Embora o país fosse pequeno, existiam dez clubes na primeira divisão, com um ferrenho séquito de torcedores. A apatia apenas mudou quando os inspetores começaram a chegar às vilas e aldeias junto com o representante do partido único.

Os inspetores candidataram-se depois da publicação de anúncios no jornal, mas passou rapidamente de boca em boca, e como começava a haver uma juventude mais bem formada pelo acesso à educação e não absorvida pela agricultura, as cooperativas ou a pouca indústria, a profissão parecia apelativa por comparação à agricultura que devido à modernização já não sentia necessidade de tanta mão d’obra.

O partido examinou todas as candidaturas e deu preferência, como seria de esperar, aos que tinham um mínimo de educação e, portanto, sabiam no mínimo ler, escrever e contar. Portanto a maior parte dos inspetores eram gente nova em início de vida com essa arrogância de pensar que se sabe tudo e que o futuro pode ser eterno e brilhante!

A atribuição de um inspetor a toda aldeia era um espetáculo com a chegada de veículos militares que traziam o representante do partido e organizavam uma festa de posse para toda aldeia com fanfarra, ou algum cantor popular, porco no espeto, bifanas, frango de churrasco e muita cerveja e tudo à borla! Ora isto num quotidiano rotineiro e pobre era um acontecimento sempre bem-vindo. O inspetor era anunciado, e era explicado o mecanismo de utilização do spray.

O discurso do representante do partido (e por consequência do governo), dizia qualquer coisa como:

“A Revolução popular socialista está no combate por uma sociedade melhor, com abundância para o povo! Sendo que agora vai disponibilizar a todos o magnífico lubrificante em spray que nos países capitalistas apenas quem tem dinheiro pode comprar! Mas aqui no país da Revolução popular socialista está disponível gratuitamente a todo o cidadão.”

Aqui chegados costumava haver aplausos até para incentivar o representante do partido a acabar mais depressa, pois só no fim do discurso é que podiam aceder aos comes e bebes à borla!

O representante continuava:

“De maneira a permitir que todos o possam utilizar e que nenhum gaste mais que a sua parte, designamos um filho da terra como inspetor: o jovem Miguel Balukov aqui presente, habitando na vossa linda aldeia de Melania!”

Mais aplausos como era de esperar.

“Será a seguinte  a forma da distribuição: Cada cidadão tem direito a um máximo de 15 segundos de spray até se gastar a lata, que então será substituída por uma nova, fornecida a partir dos armazéns centrais do governo. O cidadão preencherá um requerimento e se não souber escrever o inspetor escrevê-lo-á por si. Entrará numa lista de espera que será satisfeita sequencialmente desde o mais antigo a entrar até ao mais recente. Cabe ao inspetor cronometrar as esguichadelas e guardar a lata que levará a cada cidadão. O governo pensa desta forma trazer uma melhoria à nossa qualidade de vida. Sempre a pensar no povo. Glória à Revolução popular socialista!”

Havia mais aplausos e logo de seguida uma corrida à cerveja, às bifanas, ao frango de churrasco e ao porco no espeto! Nalguns lugares o porco no espeto era servido no final com uma feijoada e em algumas aldeias havia até vinho para quem preferisse. A música dava pretexto a bailarico. Todo o mundo ficava feliz!

Este tempo de designação de inspetores durou cerca de um ano e era anunciado com destaque nos noticiários dos dois canais de televisão existentes. Como sempre isso despertou o interesse por um curto período de tempo, até rapidamente se transformar numa rotina, a quem a maioria passava a não prestar nenhuma atenção.

 

Como começaram a surgir problemas

Vejamos como a situação se desenvolveu através de alguns episódios que ilustrarão bem o que aconteceu.

A maioria dos inspetores que não eram casados, casaram depressa já que a profissão de inspetor parecia cheia de futuro, já que este era um funcionário público. Nos países socialistas o que há mais são funcionários públicos, que eram os únicos que tinham uma certeza de ter vencimento ao fim do mês. Portanto, parecia um emprego seguro e razoavelmente bem pago, quer em dinheiro, quer em senhas alimentares.

“Não sei para que és inspetor, para já ninguém te chama!” dizia a esposa de um deles.

“Melhor!” respondia o inspetor, seu marido. “Mais sobra para nós. Nunca mais rangeu nenhuma dobradiça na casa e a fechadura nunca funcionou tão bem!”

“E isso é lá trabalho? Só usas a tua parte! Mais ninguém liga a isso, qualquer dia estás sem trabalho se descobrem que o povo não usa.” Observou a esposa perspicaz.

“O meu primo e o meu tio também tem usado e estão muito satisfeitos. Os outros não usam porque não querem!” Concluiu.

Mas então um dia o governo decidiu investigar como estava a decorrer a implementação do programa “Lubrificante para todos!” e aleatoriamente um representante do governo foi visitar algumas aldeias e inteirar-se da situação.

“Mas como você só tem aqui três requerimentos e a lata está quase vazia?!” protestou o representante do governo perante o inspetor. “Ainda por cima um dos requerimentos é seu…”

“Ora, se calhar a lata já trazia pouco!” Tentava justificar.

“Está a querer dizer que o partido fornece latas quase vazias para o povo?” Esta era uma implicação perigosa que podia dar muitos sarilhos.

“Não, obviamente que não. Certamente já veio vazia. Esses porcos capitalistas sempre estão prontos a enganar o cidadão.” Contrapunha o inspetor.

“Pode ter evaporado ou a lata estar com alguma fuga…” Dizia o inspetor já a temer as consequências.

O representante do governo acalmou, mas insistiu:

“Será que não está usando além da sua parte?”

“De forma nenhuma! Cumpro escrupulosamente as diretivas do governo e não me permitiria roubar o povo!” Disse com a veemência.

Mas não lhe valeu de nada, pois ao chegar o relatório ao Ministro da Economia, ele reportou ao Ministro da Justiça e este por sua vez fez acionar a Procuradoria. Finalmente a polícia veio bater-lhe à porta, depois foi julgado rapidamente e fuzilado como um porco capitalista açambarcador, um egoísta que roubara o povo.

Isto naturalmente foi bem acompanhado por todos os inspetores, em especial pelos que tinham feito a mesma coisa e trataram de resolver o problema o mais depressa que lhes foi possível.

Assim o que a maioria deles fez entre os que tinham abusado da sua parte nas esguichadelas foi preencherem requerimentos falsos em nome de habitantes da aldeia que eles pensavam nunca usariam esguichadelas de lubrificante para coisa nenhuma!

“Mas como não tenho direito a usar a lata de lubrificante?!” dizia o pobre Igor Agenor que não sabia ler nem escrever, mas sabia dos seus direitos como cidadão e que protestava perante o inspetor que o informava que não tinha direito a nenhuma esguichadela. “Quase todos tem direito à lata aqui na aldeia e só eu é que não tenho?! Como é possível?!”

O inspetor tinha permitido mais esguichadelas aos amigos do que era prometido pelo governo, mascarando esses favores com requerimentos falsos. Isso dera-lhe um estatuto importante, sendo que os amigos lhe haviam trazido presentes em reconhecimento da sua generosidade… Mas agora, este Igor queria estragar tudo e o problema é que a lata estava vazia e mesmo que quisesse não podia satisfazê-lo. Tentou uma fuga para a frente:

“Prometo que na próxima lata serás o primeiro a ser satisfeito. Fica bem para ti?!”

Mas o Igor não só não sabia ler e escrever como era um pouco obtuso.

“Não! Preciso da lata agora que tenho uma porta que range com qualquer ventinho e não me deixa dormir!” Talvez fosse a falta de sono que o fazia assim mal-disposto e casmurro.

“Mas se a porta é o que te perturba, porque não fechas a porta?! Assim ela deixa de abanar e não range!” Tentou o inspetor solucionar.

“Mas se a deixo fechada ela bate! É ainda pior!” Queixou-se.

“Porque não lhe metes cebo ou azeite?” Insistiu o inspetor.

“O cebo uso para vedar os pipos ou além do lubrificante queres que fique sem vinho?” respondeu Igor que era obtuso mas não era tolo.

“Então e o azeite?” perguntou o inspetor.

“Mas tu queres que ponha azeite na dobradiça?! Se já estão nas últimas, com o sal do azeite há-de cair-me a porta!” protestou veemente Igor Agenor.

O inspetor esgotara as suas soluções para resolver o problema e tentou outra abordagem.

“Bom! Está certo, até vir a lata nova vou dar-te um chá que te vai ajudar a dormir…”

E Igor foi-se embora com o chá e a promessa de que seria o primeiro a usar a lata nova, quando ela viesse. Mas a falta de sono pode enlouquecer um homem e Igor quando foi à vila mais próxima desabafou no café onde foi beber uma cerveja e ouvidos ouviram e a informação chegou ao representante do partido local que enviou o representante do governo que se interessou pelo assunto.

O representante do governo foi investigar e depois de entrevistar vários cidadãos da aldeia percebeu o que se passou. O resto não é preciso contar: Julgamento rápido e uma ida até ao cemitério.

O que aconteceu depois foi que os inspetores tornarem-se mais cautelosos ainda!

Tornaram-se cautelosos no preenchimento dos requerimentos falsos, onde deixavam sempre uma margem para poder esguichar a pedido imprevisto. Mesmo assim, quando o partido começou a cruzar a informação de quantas latas eram gastas em cada região e quantos cidadãos satisfaziam, começaram a evidenciar-se as regiões que mais latas gastavam por habitante! Mandaram lá o representante do governo para verificar se isso era real ou se havia ali história…

Depois de umas quantas entrevistas investigativas, às vezes mais robustas, os inspetores corruptos foram descobertos uma vez mais, com as consequências habituais: julgamento rápido acabando em fuzilamento.

Percebendo que podiam ser apanhados o que decidiram fazer?

Guardaram muito bem a lata no mais sigiloso segredo para que o povo não soubesse dela e assim não fossem obrigados sequer a tocar na maldita lata! Espalharam também o rumor de que o lubrificante capitalista seria tóxico para o povo socialista…

Foram assim elogiados pelo partido por serem tão poupadinhos e desgraçaram todos os inspetores que honestamente faziam o seu serviço visto que acabavam tendo médias de consumo de latas mais altas do que estes covardes, condenando os honestos ao julgamento em que não importava o que dissessem ou as testemunhas abonatórias que apresentassem, que a maioria dos julgamentos acabava com a mesma sentença: fuzilamento. Não havia piedade para os ladrões do povo!

O problema é que o povo com estas notícias, lembrava-se da promessa do governo de permitir o acesso à lata de lubrificante. Assim o povo começou a levantar-se em protesto quando os inspetores medricas se recusavam a gastar a lata! Quando isso adquiriu uma expressão importante, pelo menos o suficiente para alertar os membros do partido, que temiam qualquer agitação social que tirasse o povo da sua natural apatia e pudesse pôr em perigo o seu lugar, decidiu fazer alguma coisa a respeito.

Resultado? Os inspetores que não mexeram nas suas latas, foram considerados açambarcadores porcos capitalistas, o que lhes deu um julgamento rápido e o caminho tradicional de serem postos diante do pelotão de fuzilamento.

 

Epílogo

Isto reduziu a quase zero as candidaturas para inspetor.

Os governantes que embora quisessem manter uma boa imagem eram pragmáticos, perceberam que o seu programa tinha falhado, batido contra o egoísmo com que nascemos e que se traduz na natural tendência para a corrupção e que justifica os esforços de produzir um homem novo.

Além do mais, as latas apesar de muitas não iam durar para sempre. Assim puseram um fim ao programa sem qualquer aviso difundido pelas TVs. Aos inspetores que restaram, convidaram-nos a ingressar no exército ou a voltar à agricultura de subsistência. As latas foram assim reservadas para uso exclusivamente industrial. A atividade de inspetor foi considerada não produtiva e como consequência parasita dos trabalhadores e por tal extinta e proibida.