10 dezembro 2018

O Homem Mais Velho do Mundo



O homem foi identificado como o homem mais velho do mundo! Era português, pois claro, funcionário público. E só quando ao passarem do papel para registo informático o cadastro dos funcionários, é que deram conta que o homem já devia estar reformado há cerca de 60 anos! Estava no topo da carreira e até aí ninguém se tinha lembrado dele. A sua função era a de auxiliar de administração que era uma função onde cabia quase toda a gente com funções mais ou menos indefinidas. O homem passara por todas as reformas burocráticas que haviam atingido a função pública em mais de meio século sem uma queixa ou um soluço sequer. Fora sempre discreto, vestindo um fato preto, chegara a usar mangas de alpaca em tempos idos, mas já há umas duas décadas que deixara de as usar.

Agora queriam compulsivamente passá-lo à reforma. Diziam que ele estava desadequado aos novos tempos, apesar de sempre se ter adaptado bem à mudança. Nem sequer tinham tido a simpatia de lhe perguntar se queria continuar ou reformar-se, já que a legislação fora alterada de modo a que para além da idade da reforma, o funcionário que quisesse, podia continuar a trabalhar.

Alguns colegas diziam que sempre fora simpático e discreto e ficaram mesmo chocadamente surpreendidos ao saber que a sua idade era de 118 anos. Alguns tinham a certeza que devia haver algum engano grosseiro e que pelo aspeto dele, dificilmente teria mais de 60 anos.

A descoberta de funcionário da família de Matusalém chegou mesmo a ser aproveitada no Parlamento pela oposição para gozar com o atual governo cuja eficiência seria semelhante ao dos comboios a vapor, mas era uma auto piada, porque quando lá tinha estado também não tinham dado conta de tão vetusto funcionário e os serviços também não tinham funcionado de forma mais célere. A malta nas mesas de café dizia que ao que os funcionários públicos faziam, a sorte era não o terem encontrado mumificado dentro de algum armário de arquivo!

O pobre homem viu a sua vida pessoal desmoronar de um dia para o outro. Eram as TVs de volta dele a querer saber qual o seu segredo. Ora o homem limitara-se a viver a sua rotina sem qualquer sobressalto e nem sequer era capaz de perceber o alcance da pergunta! Tinha casado, mas a mulher morrera nova e sem lhe dar filhos e ele não casou outra vez, possivelmente por se ter adaptado perfeitamente à sua condição de viúvo, o que mostrava aliás a sua resiliência face à mudança, sem quaisquer dificuldades em adaptar-se.

Comeu regularmente nos restaurantes que havia perto da repartição. Os restaurantes tinham aberto e fechado, conforme os diferentes ciclos económicos dirigidos por essa mão invisível dos mercados, o que o obrigara a mudar de poiso, mas era um homem de hábitos fixos. Confessou que só comia uma refeição de faca e garfo por dia, a tal no restaurante mais próximo. De manhã comia uma torrada com café. Tinha experimentado cereais como as crianças, mas não se lhe tornou hábito, que achara aquilo demasiado carregado de açúcar. À noite podia comer uma sopa, quando tinha tempo de passar no “take-away" e levar uma, mas o que gostava mesmo era de umas bolachitas com um chá. Variava no chá, umas vezes verde, outras negro, ele bem que gostava de uma marca antiga o Chá Li-Cungo, mas que deixara de encontrar nas lojas e mais tarde nos supermercados, depois que as lojas de bairro foram fechando. Um amigo tinha-lhe trazido dos Açores da marca “Gorreana” e ele tornara-se fã. O Amigo foi-lhe fornecendo até ter morrido de ataque cardíaco e ele limitou-se depois disso a trazer de uma marca qualquer do supermercado aonde ía. As bolachas eram simples sem cremes, tipo bolacha Maria ou torrada. Nada de dietas especiais ou com algum ingrediente exótico ou fora do vulgar.

Em termos de exercício físico, não tinha automóvel e ia a pé para a repartição. Quando o percurso era mais longe, ia de bicicleta, uma velha pasteleira imaculadamente conservada. Para ir à cidade ia de comboio e em casos muito urgentes chamava um táxi. A única vez que estivera mal e precisara de ser hospitalizado, fora com uma crise de fígado que ele atribuíra a maionese estragada que comera numa mariscada entre amigos. Havia ganhado um torneio de sueca e os amigos tinham decidido festejar com uma mariscada. Para sua emenda, que era muito rigoroso nestas coisas, nunca mais comeu maionese. Certamente uma excelente decisão que nunca mais teve nenhuma crise de fígado ou foi de novo hospitalizado.

Há pessoas assim, de gestos lentos como é próprio e adequado a um funcionário público. Essa lentidão, às vezes exasperante para quem estava do outro lado do balcão, criava um ambiente cerimonioso, como quem vai à igreja e não lhe adianta ir lá com pressas.

Os vizinhos da casa onde vivia pelo menos há uns 30 anos tinham por ele um respeito deferente. Sempre o cumprimentavam e apreciavam a sua imaculada educação. Nunca lhe haviam ouvido soltar uma palavra mais alta ou sua boca manchada com vernáculo. A única vez que se irritara fora com uma Testemunha de Jeová que à viva força queria que ele ficasse com uma publicação qualquer, quando ele deixara claro não estar interessado. Mesmo assim não foi rude, apenas bateu a porta com mais força do que habitual, quando se conseguiu livrar do pregador. Não se lhe conheciam simpatias políticas, e nem sabiam bem se ele era católico visto nunca ir à missa, a menos das idas sociais como casamentos, batizados e funerais aos quais era convidado ou de pessoas de sua estima. Portanto, o segredo também não estaria nalgum sentido da vida, alguma filosofia ou espiritualidade.

Para se divertir, ouvia rádio e lia bastante. O jornal todos os dias, ultimamente menos que os cafés já não têm esse hábito. E normalmente à mesinha de cabeceira um livro. Lia tudo a que podia deitar a mão, visto que era frequentador assíduo da biblioteca municipal, antes tinha sido da biblioteca Gulbenkian. Adorava ler. E era um bom conversador, o que queria dizer que escutava mais do que o que falava. Não tinha televisão, preferia ouvir rádio. Deitava-se cedo e acordava cedo.

Agora era uma romaria à cidade, todos queriam conhecer o homem mais velho do mundo! Todos queriam apalpá-lo, tirar umas selfies com ele em imitação do Presidente, enchê-lo de perguntas parvas. Cuidava-se de modo muito discreto. O fato e a camisa sempre impecavelmente limpos, tinha uma mulher a dias que lhe limpava a casa e cuidava dos fatos e das camisas. Normalmente talvez por irem perdendo a vista os velhotes ficam mais badalhocos. Ele não. E usava óculos o que numa pessoa da sua idade era perfeitamente normal. O homem não usava placa dentária e ainda tinha aquele cabelo que resta a todos os carecas, no caso dele impecavelmente penteado, mas sem aquelas fantasias de um lado cobrir a careca toda. Por causa disso talvez, perguntavam-lhe se lavava os dentes todos os dias e com que pasta e sendo tão velho e tendo ainda tanto cabelo, todo ele em tom prata, perguntavam-lhe se lavava a cabeça todos os dias e qual o champô. No início até respondia que não era pessoa nem para segredos nem para indelicadezas, mas agora sentia-se cansado de todo aquele assédio.

Dizia um seu conterrâneo:
— Mas que vêm esta cambada de imbecis ver? O homem mais velho do mundo? Vejam-no na TV ou nas fotografias dos jornais! Esperam o quê? Vir a ser tão velhos quanto ele por contágio? Então e as "selfies" servem para quê? Para colocar nas redes sociais, como antes a malta esculpia na casca das árvores ou nas portas das casas-de-banho “Fulano esteve aqui!”? Mas já não têm consolas de jogos para perderem o tempo?

Alguém referiu que ao conhecerem e conversarem com alguém mais velho ficariam mais sábios.

— Mais sábios?! Esta gente nem votar sabe! — Dizia irritado esse conterrâneo. — Como é que hão-de ganhar alguma sabedoria a conversar com alguém que toda a vida foi funcionário público? Se tivesse alguma sabedoria seria... sei lá! Professor! Talvez até mesmo filósofo. Ou então talvez tivesse escrito poemas, ou contos... Agora um gajo que a única escrita que fez foi escrever requerimentos?

As pessoas ficaram zangadas com esse conterrâneo, que por acaso até era o Presidente da mais importante associação cultural do conselho. Isso irritou o sindicato dos funcionários públicos que disse que as afirmações eram ultrajantes e que um pedido de desculpas era devido a todos os funcionários públicos que com honra e lealdade exercem as suas funções. Deu para uma troca de mimos entre o Presidente da Associação Cultural e o Sindicato, mas sem quaisquer consequências de maior. Aliás o homem mais velho do mundo passou ao lado dessa polémica, acusando um certo cansaço que se ia acumulando e como o chefe de repartição lhe havia concedido umas férias adicionais, foi até Lamego respirar melhor ar. Alojou-se numa pensão modesta tentando passar despercebido. Deu alguns passeios higiénicos e procurou ler os seus livros nos bancos de jardim. Mas de novo foi acossado por mirones que o perseguiam e tiravam fotografias sem sequer terem a gentileza de lhe pedir permissão. Assim encurtou as suas férias e regressou a casa.

Regressou realmente combalido, não tinha já o mesmo porte elegante, refinado. Agora dobrava-se como de repente sentisse o peso todo da idade que tinha. Voltou à repartição, onde foi acarinhado, mas donde o mandaram embora, com a desculpa de que não havia nada para ele fazer.

Nesse dia não passou pelo café para ler o jornal, meter dois dedos de conversa com os companheiros de sueca, mas ninguém pareceu dar conta. Nesse dia deitou-se mais cedo, o rádio ligado, leu umas páginas de Dostoiévski o seu preferido.

Foram encontrá-lo com o rádio ainda ligado, o livro caído das mãos que tombara no chão, um sorriso nos lábios, mas já não havia homem mais velho no mundo...

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