19 janeiro 2004

Em fuga!


As guerras sempre foram uma enorme estupidez! Mas agora ao olhar os estropiados que se aproximavam depois de cairem numa emboscada, a conclusão era mais do que óbvia. Chegaram queimados, desalentados, mortos embora respirassem e se mexessem.
E se morressem? Morreriam em nome de quê? Da pátria? Do Império? Da Liberdade?
E que importava isso? Morreriam e ponto final.
Sim, eu sei, os seres humanos são os únicos seres vivos, para quem há coisas que superam o valor da vida. Deve ser por isso que o sentimento religioso emerge. Mas mais vale um adorador vivo, do que um morto. Porque carga de água, os paraísos são sempre após a morte? Se viver é uma passagem como alguns dizem, então Deus é um sádico. Prefiro outra compreensão das coisas: Acho que os homens devem estimar a vida, e devem adorar a Deus, porque Ele é fonte da vida. O resto é mais complicado...
Eu era apenas um médico de uma organização não-governamental a fazer o meu trabalho: salvar vidas! Vidas que se obstinavam para a morte, atrás de um ideal, ou apenas de uma ideia. Não sei se morriam por si mesmos, para fugir à sua existência pobre ou se o faziam por não terem outra coisa para fazer, na pobreza mais extrema de todas.
Sou médico e não filósofo. Mas não entendo a facilidade com que a humanidade aceita cultivar e libertar ódios. Nem entendo esta força que nos impele para matanças sem fim. Não acho isso natural. O instinto mais básico é o da sobrevivêmcia, e a medecina tem vindo a mostrar como a maquinaria da sobrevida está tão bem montada em nós.
Julgo assim, que esta vontade de morte que às vezes nos habita é exógena. Eu diria mesmo que é alíenigena.
Em tempos remotos, julgavasse que era possível algo ser possuído por espíritos malignos. Eu tenho quase a certeza de que eles existem, na devassa que fazem à nossa dignidade, à nossa humanidade.
E acho presentes esses espíritos em cada ditador político, ou nos jogos de poder nas altas esferas. É um xadrez maldito, jogado por forças superiores às nossas. Quem nos acudirá?
E lá estava eu, outra vez interrompido nos meus pensamentos inquietantes, a fazer suturas ou administrar morfina.
Se perguntasse a qualquer destes porque morrem, olhar-me-íam de olhos abertos de pasmo ou de estupefcação e implorar-me-íam que não os deixasse morrer. E contudo depois de curados, seguirão inevitavelmente o rumo de uma qualquer escaramuça, até cairem mortos.
Nunca compreendi as guerras, nem neste continente, nem noutro qualquer. A guerra é contra a humanidade e sempre achei que os vencedores, são os que as evitam! E evitam-se poucas. Dizem que o melhor do mundo são as crianças, mas essas mesmas pegam cedo no gatilho e são capazes das maiores atrocidades. As crianças são afinal tão boas, quanto o mundo em que vivem. Deixei de acreditar em crianças há muito tempo. Por isso, não tenho filhos e foi uma opção deliberada.
As tropas inimigas (não minhas inimigas que não tenho partido em guerra nenhuma), aproximam-se. É a debandada geral! Já vi tantas, que esta é só mais uma. Aconselham-nos a abandonar as instalações, pois correm risco de serem bombardeadas. Os meus colaboradores apanham os medicamentos ainda disponíveis, e colocam-nos dentro do jipe. Por mim decido ir a pé, dar-me-á a possibilidade de ir reflectindo. Olhando so rostos dos sobreviventes dos que fogem. Mas ninguém foge por muito tempo. Sempre acabaremos por sucumbir a esse poder mortífero. Todos acabamos por morrer, de um modo ou de outro.
Talvez afinal a morte seja uma doença que contraímos ao nascer e que é incurável. Se compreendessemos isso, em toda a sua magnitude, devíamos fazer deste mundo um lugar melhor, mais justo, equitativo, amoroso. Afinal somos todos pacientes. Mas comportamo-nos como se fossemos eternos!
Os morteiros começaram a zumbir por cima das nossas cabeças e instintivamente mergulhamos no chão, na valeta à beira da estrada, alguém deixou cair um saco de milho que rolou até ao campo e explodiu. Fora da estrada havia minas nos campos. O pesadelo para as gerações vindouras, uma espécie de sementeira de morte e dor. Pensar que alguém ganhava dinheiro com isso, sentado numa poltrona confortável, tornava surrealista a vida. Como se tudo fosse um filme louco e sem sentido.
Voltamos a caminhar... Em breve todos os caminhos estariam terminados.

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