09 janeiro 2004

Os passos dela...


Ouvi os passos dela no andar de cima, nas tábuas rangentes do soalho. Esperava todas as noites aqueles passos leves e delicados e ficava imaginando os seus pés nus beijando as tábuas polidas e lisas, quem sabe até, enceradas.
Vi-a passar por mim às vezes nas escadas do prédio, sorria-lhe, com o meu melhor sorriso, ela sorria quase imperceptível, e eu ficava olhando os seus cabelos loiros compridos, que lhe desciam até ao fundo das costas como uma mantilha de ouro. Ela nunca olhava para trás... Eu ficava um tempo infinito olhando-a subindo os degraus.
Nunca soube se tinha namorado, se era casada, se viúva!
Ouvia-lhe os passos, e quase soavam a música, para o meu doido coração que se entregara, numa paixão platónica. Ouvia os passos dela, lembrava os seus longos cabelos loiros, e ficava a imaginar loucuras, olhando o tecto, deitado na minha cama.
Um dia na entrada do prédio tentara falar-lhe. Sobre o dia estar bonito, tão bonito como ela. Corou, mas mais uma vez furtou-se ao contacto. Que segredo guardaria?
Nunca vi qualquer visita. Entrava discreta, saía com a mesma discrição. Nunca ouvi qualquer tipo de música vir do seu apartamento, nem um ruído mais alto. Nem o barulho de panelas ou coisas a cair.
Ficava imaginando se não seria um anjo, apenas um anjo, que saía para cumprir missões das quais não fazia a menor ideia. Mas era um anjo bom, a fazer bem. A mim fazia! Embora começasse a sentir uma frustraçãozinha a crescer dentro do peito. Eu amava aquele anjo, consolando na ideia de que os anjos são inatingíveis.
Mas um dia, insisti em levar-lhe os sacos de compras, foi um acaso. Eu entrara no prédio e ela ía começar a subir as escadas. Agarrei-lhe nos sacos e ela pareceu assustar-se, mas nem um ai disse. Depois subimos, ela à frente, eu atrás encantado com os longuíssimos cabelos loiros. Chegamos à porta dela, e ela abriu a porta, agarrou os sacos e aproximou-se de mim, e deu-me um beijo na face. Não resisti, agarrei-a por um braço...
-- Desculpe, -- ela olhava-me fixamente, a ponto de me incomodar –- mas eu gostava muito de a conhecer melhor...
Ela sorriu-me de uma maneira tão doce, que quase chorei de emoção. Depois fez um gesto para que eu aguardasse. Fiquei na porta, olhos rasos de lágrimas. Eu amava-a, e temia perdê-la. Ela tão perto...
Quando ela voltou, trazia um caderninho na mão e uma esferográfica e escreveu:
“Eu também gostava muito de te conhecer, mas deves saber que eu sou surda-muda... ”