10 janeiro 2004

A Caixa de fósforos


Por todo o redor havia sinais de destruição. Nem sabia muito bem como encarar tudo aquilo, mas acordara com a cama a tremer e onde fora a janela e uma parede era um buraco negro escuro, por onde entrava frio.
Sim tinha a percepção de que aquilo era pior que um pesadelo. Fora um terramoto e sentado na cama, ao ar frio da madrugada tomava a consciência do luto e da dor que viria. Tomou rapidamente a decisão, saiu da cama, vestiu as meias, calçou as sapatilhas, arrancou uns cobertores da cama e enrolou-se neles. Gritou:
-- Está alguém a aí?
Ouviu uns gemidos logo abaixo, mas não fazia ideia de como sair dali. Estava escuro como breu, e a única claridade vinha apenas do sítio onde antes houvera uma parede. Qual a decisão mais sensata? Dirigir-se à porta? Foi isso que decidiu. Tacteou ao longo da parede, até à porta e abriu... A corrente de ar, atirou a porta, e tomado de surpresa caiu, e ouviu ranger o chão, uma espécie de gemido da placa, e teve medo. Ficou quieto, sustendo a respiração. Levantou-se com cuidado, e foi fechar a porta, que resistiu, mas por fim lá conseguiu. Teria que aguardar a manhã, até que fosse claro e pudesse ter noção da sua situação.
Invadiu a frustração, ele vivo, talvez centenas a precisarem desesperadamente de ajuda, e ele encurralado no terceiro andar de um prédio, talvez prestes a ruir.
A ansiedade e o cansaço, venceram o frio e o medo, e acabou por adormecer. Acordou, enrolado nos cobertores, ao uivo dos cães domésticos, que anunciariam por certo os dramas dos seus donos. Sem conseguir retê-las, as lágrimas escorreram-lhe pela cara, e sentiu-se profundamente culpado por estar vivo. Ao olhar diante de si, para onde outrora fora uma parede com uma janela para os andares vizinhos, não havia nada. Nem a janela, nem a parede, mas também não havia os prédios, era apenas um mar de entulho, fumegante aqui e ali.
Pateticamente, naquela manhã de Dezembro, o sol nascia radioso, sem qualquer nuvem, e não fazia frio, o tempo estava tépido, e o vento que soprara quando ele acordara acalmara a ponto de ser uma brisa.
Tentou aproximar-se da borda da parede que ruíra, mas a laje de concreto, começou a oscilar de modo perigoso e ele remeteu-se para o canto, onde passara as últimas horas. Pensou nos seus, e voltou de novo a chorar. Pensou nos vizinhos, e continuou a chorar. Pensou em todos aqueles montes de entulho que faziam um mar diante de si, e ao pensar nas pessoas que havia ali, na cidade, continuou a chorar.
Pensou gritar, mas a voz ficou-lhe presa na garganta. Sentiu-se culpado, como se a morte de todos os outros, lhe perguntasse com que direito ficara vivo!
Já o Sol ia alto quando houve um helicóptero sobrevoando a área. O instinto de sobrevivência apoderou-se dele, e sem pensar levantou-se e descobrindo-se, agarrou um cobertor e agitou-o. Não ouviu a laje ranger outra vez, e nem ligou quando pedaços de parede e do tecto foram desabando. O helicóptero aproximou-se e depois deu uma curva e desapareceu. Sentou-se de novo no chão do seu quarto, ou melhor, no que restava dele. Pensou na vida como uma sequência de acontecimentos trágicos, que de salto em salto nos aproximam cada vez mais da morte. Riu-se!
Afinal todas as tentativas de viver, eram apenas mais uma frustração. No fim a morte sairia mais uma vez vitoriosa. O buraco em frente a si, convidava-o a correr e atirar-se para o monte de entulho. Todas as vidas não passavam afinal disso, entulho!
Ao mesmo tempo reflectiu no paradoxo da sua sobrevivência, e ficou curioso de saber o que a vida arquitectara para ele. Como uma folha nas correntes de ar, que acaba sempre por cair. Devia aproveitar o voo, já que é só de ida!

Finalmente uma equipa de resgate veio ao seu encontro. Todo o prédio onde vivia ruíra de alto abaixo e apenas a parede do seu quarto, onde havia a porta, era tudo o que restava. Os vizinhos de baixo, e os vizinhos de cima, estavam lá em baixo no entulho, e ele pateticamente, num pedaço de laje, do que fora o chão do seu quarto, como um pássaro numa gaiola.
A equipa de resgate, não sabia como o tirar de lá. Não havia escadas suficientemente altas disponíveis, e não sabia se o peso das escadas quando as encostassem, não fariam tombar a frágil parede que ainda sustinha o pedaço de chão onde ele estava. Não podia aproximar o helicóptero, pois a deslocação de ar das hélices, seriam com certeza suficiente para deitar abaixo o que restava do prédio. Tinham até medo de lhe atirarem comida, ou água, porque o prédio era como uma flor, e ele como um insecto sem asas.
Só podia esperar... esperar...

As equipas de socorro começaram a remover o entulho, e apressavam-se para fazer chegar a ele uma grua, de modo a que fosse possível tirá-lo daquela situação. Ao fim de dois dias chegaram perto, com a grua. Ele estava cansado, muito cansado, desidratado, com frio. Alternava períodos de consciência, com períodos em que ia por um túnel, e em que os seus o chamavam para um lugar de luz, mas ele não queria ir.
Ficava imaginando que todos somos como fósforos dentro de uma mesma caixa… Sim, e de vez em quando acendesse um. Vão acendendo todos até chegar ao fim da caixa.

Retiraram-no e transportaram-no rápido para um hospital. Depois as coisas seguiram o percurso das coisas rotineiras. Recebeu alta, algum apoio do governo e recomeçou a vida, tal como a cidade recomeçava a sua. Lembrou-se das coisas todas, como eram antes, durante e depois.
Agora sabia: A vida é como o riscar de um fósforo, começa num fulgor e acaba em cinza!