24 janeiro 2019

Vazio


O vento frio de inverno cortava a serra a máquina zero, despida que estava de arvoredo. A aldeia em silêncio, de volta do borralho, olhos cansados, hipnotizados nos arabescos das chamas. Lugares escuros onde os vivos se sepultavam por de trás das paredes grossas. Por cima do lume, o fumeiro onde balançavam algumas chouriças.

Aldeias que se esvaziaram a pouco e pouco de gente. Uns procuraram um lugar melhor para viver e foram de todas as maneiras para terras distantes, por essa Europa fora, rumo a França e à Alemanha. Mas antes alguns já haviam buscado o Brasil ou a Venezuela. Nenhum havia voltado. Só alguns nas “vacances” para matar saudades, ou para casar, ou para enterrar algum parente. As aldeias eram agora fotografias de um tempo passado, tornando-se apenas cemitérios.

Ficaram os que não puderam sair, amarrados ao amor da terra, às rotinas seculares. Razões diversas que os aprisionaram nas aldeias serranas, nas casas da mesma pedra, nos caminhos que prometiam viagem, mas eram circulares. O mundo era pouco mais do que a aldeia. Viagens esporádicas à vila mais próxima para cumprir alguma obrigação legal ou por razões de saúde. A camioneta que mercê das forças de mercado deixara de passar, dando lugar ao táxi que era um luxo e só se consentia em emergências ou razões de força maior.

E as pedras ficaram sem gente, remetendo-se à condição de abandono. Como as almas quando os corpos morriam, e os abandonavam, para buscar recompensa na outra vida. Mas até as almas perdiam o tino e deixavam-se vagar, penadas, por não terem quem as encomendasse.

E na única taverna, loja e café da aldeia simultaneamente, que ameaçava fechar quando o octagenário do dono falecesse, falava-se em surdina dos mortos já enterrados e encomendados como tendo tido muita sorte. E afinam-se as vozes a palhete para a próxima encomendação.

“Quem cuidará das nossas almas?” Era a preocupação daquelas gentes de rostos sulcados por trabalhos de sol-a-sol ao frio, ao calor, ao vento, ao estio. Mãos que agora se curvavam como garras, mas que já tinham dificuldade em agarrar. Aldeia de bordões que matraqueavam as pedras gastas da calçada, saudosas de tempos idos, onde eram calcorreadas por bandos de meninos de pés descalços. Mas os meninos tinham seguido a força do tempo e se tornado homens, alguns casado, outros morreram em novos, alguns nas guerras coloniais para desespero das mães e das noivas. Sementeira de viúvas e orfãos. E os outros agora, por ali, espalhados como as árvores pela paisagem aguardavam o triste destino da humanidade e preocupavam-se com a sua alma eterna. Mas até a eternidade lhes parecia fugir, já não havia missa na igreja da aldeia grande. Talvez nem para os padres compensasse a deslocação, ou fosse apenas a carência de vocações a implicar com a carência de olhar além do presente, para a eternidade.

Um dia, restaria o último. O último que percorreria as estradas de pedra, com o bordão matraqueando a ladaínha da Encomendação das Almas. Cantaria os versos repetidos por gerações. Neste lugar não sabem que o Purgatório foi abolido e não faz mais sentido encomendar almas, incentivar para que rezem por elas, que afinal já lá não estão.

Nestes tempos modernos ninguém quer saber de onde veio nem para onde vai, que tudo deve dar gratificação instântanea. Tudo se tornou volúvel, fluído, passageiro. Cortando a continuidade entre as gerações e aumentando a solidão. Compensa-se com a toma de medicamentos, ansioliticos e outros psicotrópicos de modo que a ausência de alicerces e a subida às alturas, não causem vertigens que os façam tombar.

“Quem encomendará as nossas almas? Quem rezará por nós? Quem nos lembrará?” E o silêncio dos campos e das serranias, onde apenas assobia o vento, ou cantam os pássaros, é tudo o que responde. E os velhos, sim porque todos ali chegam, os que têm sorte pelo menos, curvam a cabeça, baixam os olhos. Sinal de uma desesperança profunda, de uma resignação sem nome. Vestem de preto, mas já não é apenas pelos parentes que se finaram, é por eles também, fado lusitano. Talvez Amália tivesse cantado uma encomendação de todas as nossas almas quando cantava: “Povo que lavas no rio/E talhas com teu machado/As tábuas do meu caixão”

Escutavam na rádio essas canções passadas e às vezes, num aperto de saudade uma lágrima pesada caia pela face. Enxugava-se com as costas da mão e permanecia-se cabisbaixo, nesse avassalador sentimento de saudade. Lembravam-se nas noites escuras e frias, paredes pintadas de negro pela fuligem, junto ao borralho, os que tinham partido: conhecidos, vizinhos e parentes. Era tudo o que tinham para fazer, que as cataratas já não deixavam olhar para fora, ou ver a TV no café da aldeia, com a nitidez necessária. Roía-se um pedaço de broa, ou de pão branco comprado, que os dentes também já não ajudavam. Para matar a solidão e o vazio, às vezes pegavam o terço e rezavam pelas almas numa ladainha hipnótica que ajudava a passar o tempo e a tornar as noites mais curtas.

Lá fora o vento frio da serra, silvava forte, talvez as almas zangadas por terem sido esquecidas. Ou então, talvez fossem as almas a correr, agitadas por não terem lugar de descanso e fazendo abanar as copas das árvores para chamarem a atenção dos vivos para a sua desgraça.

“Como seria a azeitona, este ano?” Preocupações de todos os anos, repetidas. Se bem que a maioria ficasse nas oliveiras que já não havia quem a apanhasse. “Será que este ano chove o suficiente?” Que neste mundo secular e em permanente busca da felicidade imediata, até o céu deixa de ter tempo para chorar e a chuva não vem. Copiosa e fértil a saturar a terra, encontrar semente que morre para renascer na novidade primaveril. Quebram-se as tradições e os ciclos desmoronam. A renovação substituída por geração espontânea.

“Bem diziam os antigos que quando vissem estradas negras e fios pelo ar, estava perto o fim do mundo…” dizem os mais velhos que acham que o alcatrão das estradas e os fios dos telefones e da eletricidade são presságios. Mas o único fim do mundo que vem é o seu, mesmo que num passo lento, vem seguro.

“Quem encomendará as nossas almas? Será que se deixarmos pagas as missas, isso nos salvará?” Perguntas que ficavam sem resposta, que o Senhor Prior agora só dava missa na igreja da vila. E eles não podiam lá ir, que era longe! Dantes ainda havia burrico e ao domingo gaiteiro ainda se podia, às vezes, consentir passeio na carroça. Mas o burrico já não havia. Como todas as coisas de um passado distante, eram apagados pelo presente e pelo anseio do futuro, que com vontade própria não se importa com a vontade de ninguém.

“Estarão as nossas almas, sem gente que reze por nós, condenadas a permanecer no Purgatório?” E rezava-se mais um terço, na tentativa de convencer esse Deus distante e severo, rigoroso na justiça, que eram boas pessoas, merecedores de uma oportunidade melhor no céu, que a vida na Terra já havia sido muitas vezes, inferno que chegasse. Escutava-se na rádio a missa, porque a salvação da alma, era a única ambição que lhes restava. Mas às vezes, nas noites compridas, adormecia-se a rezar o terço e para complementar a falta, voltava-se a repetir tudo do início. Talvez Deus se aborrecesse na repetição de ladaínhas e já nem quisesse saber e também os tivesse abandonado, deixando-os repetir como gira-discos avariados uma canção que já não importava a ninguém.

Talvez nem mesmo salvar a alma, fosse alguma coisa que importasse, num mundo ímpio cheio de criaturas edonistas. E só restassem velhos, presos a estranhas superstições, cantando para incentivar os piedosos, relíquias de um passado obscuro, a que rezassem, rezassem muito, para livrar as almas dos amigos, dos vizinhos bons e dos parentes, do fogo expiador do Purgatório. E olhando, com olhos cansados, os velhos crucifixos com um Cristo de braços abertos, diziam em jeito de resignação: “Até Nosso Senhor sofreu para nos dar o exemplo…” E isso redemia o seu vazio atual, o sofrimento da sua vida toda!

“Quem salvará as nossas almas?” E seguravam a cabeça com a mão, cotovelo enterrado no joelho, para esta não cair mais em desalento.

E passava o peixeiro pela aldeia, na velha carrinha buzinando. A sardinha não sabia ao mesmo, ou talvez fosse uma consequência da velhice, e comprava-se um carapau ou uma cavala que o dinheiro da reforma também não dava para muito. Junto à carrinha juntavam-se as comadres e sabiam-se as novidades das aldeias em redor. Aldeias tão vazias, quanto a sua, num destino a todas igual.

“Morreu?!” perguntava-se com espanto ao saber a novidade de mais um enterro de um conhecido de alguma aldeia vizinha. “Coitado! Não chegou a ver os netos que estão na Alemanha…” Porque a distância deixara um vazio no meio. E os vazios alargam-se da distância para o tempo, que espaço e tempo são inseperáveis. “Quem cá deixou?” perguntava-se numa preocupação por quem enfeitaria a campa, ao menos no dia de finados! Sabiam que um dia, quando os velhos que ainda se lembravam, esquecessem ou se fossem na força do tempo, ninguém mais cuidaria das campas, que ficariam abandonadas e esquecidas, como se vazias. Nada é para sempre, a não ser esse vazio, esquecimento de boca escancarada que tudo engole!

Sem haver quem lhe respondesse o último perguntaria: “Quem encomendará a minha alma?” E depois do silêncio responder entoará no vazio:
Agradecei a Deus a vossa vida!
Tende pena da alma perdida,
Não esqueçais as instruções,
Fazei por elas, vossas orações!

Sem comentários: