01 abril 2019

Lar



Em breve fariam sete anos que o pai morrera. Ficara a mãe a ocupar a casa da família. Mas agora a mãe também pelo peso dos anos, perdia alguma mobilidade e precisava que tomassem conta dela e dera entrada num hotel sénior. Já não precisava mais de fazer comida, nem as camas, nem essas lides caseiras, que pelo peso dos anos e das rotinas se tornam segunda natureza de uma mulher e faz parecer que as casas são coisas vivas.

A casa da gente, o lar, não são apenas paredes e mobília e os acessórios que a gente lhes deita em cima sob a forma de elementos decorativos ou de livros, ou de equipamentos vários. Um lar, é o cenário das nossas memórias mais íntimas, o espaço partilhado pela família, pelo animal doméstico. Houve tempos em que aquele espaço foi habitado por gatos que deixaram saudades. Partilhado com outros familiares que o tempo se encarregou de levar para as brumas da memória e que agora eram também parte das recordações da casa. As fotos espalhadas por diversas molduras testemunhavam que haviam existido e não eram fruto da imaginação. Tinham estado ali, estavam ainda ali.

Regressava pela primeira vez à casa dos pais, depois que a mãe a deixara para ir para o hotel sénior. Sentiu uma irreprimível vontade de chorar que foi disfarçando enquanto varria o pátio cheio das folhas da nespereira, ou depois a garagem já a acusar o abandono a que estava destinada com toneladas de teias de aranha. Pensou ligar ao seu irmão para partilhar aquele sentimento que o invadia, como se a casa ao ficar gradualmente abandonada, profetizasse o fim inevitável. Mas o irmão talvez achasse que ele era apenas emocionalmente fraco ou piegas.

As casas têm histórias, muitas histórias e quando são nossas, são carregadas de memórias, são quase como seres imensos e pachorrentos que partilham connosco o tempo que passa. São lugares sagrados, privados, nossos. Muito nossos e que não podem ser de mais ninguém. O pai morrera e no seu espaço, o escritório que tinha sido seu por direito, manteve-se tal como ele deixou. Ainda está como ele o deixou. Era como se o aguardasse depois de uma longa viagem. Mas todos sabíamos que não voltaria, a não ser que as nossas memórias o trouxessem. Era ainda, sete anos depois, – oh como o tempo passa – pensou, penoso penetrar nesse espaço e devassar-lhe os segredos.

Naquele velho sofá haviam conversado, tantas conversas sobre tudo e mais alguma coisa! Desde a filosofia às piadas. Sentia uma imensa saudade dessas conversas. Nunca mais encontrara ninguém com o nível e a cultura do pai, para trocar ideias, ver o mundo nos seus diversos cambiantes. Haviam visto programas na mesma tv que ainda trabalhava. Tinham as suas mãos passado por aqueles livros, aquelas revistas, tinham comido na mesa daquela cozinha, lavado o caro naquele pátio. Era penoso recordar e saber que depois dele não haveriam essas memórias...

A casa ficara diferente, com um vazio no escritório do pai. Uma espécie de buraco negro, onde se temia ir e tomar consciência de que morrera e não estava lá, nunca mais estaria... E agora a mãe, a guardiã do templo da sua memória, também abandonava a casa, que silenciosa parecia aceitar resignada o facto de ficar sozinha e abrir as suas portas aos visitantes de ocasião e as janelas a medo para que a luz pudesse ainda penetrar os lugares de memória e nalguma sombra, nalgum reflexo, transportar-nos no tempo, para trás, quando a casa ainda estava cheia... Cheia de vida e não apenas de memórias.

Regaram o jardim ainda razoavelmente bem cuidado, mas por quanto tempo mais?

Quando saiu de lá para levar a mãe ao hotel sénior, fez um esforço imenso ao ver o portão automático fechar e a casa ficar entregue a si mesma, travar-se para não desatar num choro silencioso. Aquele que se chora por saudade e respeito com um aperto no peito. Uma enorme dor de antecipação pelo futuro anunciado, pela esponja do tempo a sorrateira, vir apagar tudo o que se construiu numa vida, como se nada do que está, valesse grandemente para o futuro. Se tivesse deixado as suas emoções à solta, teria chorado como um menino, um menino de sete anos....

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