30 novembro 2019

Agora é tarde...




Eu podia ter estado atento aos sinais: As nuvens escuras, a chuva e o frio. Mas nunca pensamos que será connosco. E depois de surpresa, como se já não o tivéssemos visto nos outros, estampado no rosto dos outros, alcança-nos, esse azar, predador astuto sempre pronto a nos pegar.

Agora olho de fora para, daqueles que igual a mim pensam como eu pensava, que os outros são as vítimas. Já não penso assim.

O mundo mudou, tornando-se menos estável, menos firme. É tudo fluído e em força. O que hoje é, amanhã deixa de ser e o que não era passa a ser. Um mundo de narrativas desiguais, contraditórias. Todas fazendo parte do mesmo jogo, com alguns golpes de batota pelo meio. Toda a gente brinca ao faz-de-conta. E todos se acham muito espertos, sempre mais que o seu próximo, para caírem vítimas de um vigarista mais matreiro.

Aos poucos, fomos perdendo a dignidade, sem ela como havíamos de defender a privacidade? Nós a geração das selfies, dos nudes, dos cinco minutos de fama que valiam por uma vida! E ficámos com a fama e perdemos a vida. Porque a vida carece de algumas coisas, das que lhe dão sentido e que nos fazem sentir parte de algo que é maior do que nós. Essas coisas que justificam o esforço e o sacrifício, algumas raras vezes o martírio.

Mas agora é tudo tão de fancaria, tão amanhado na pressa do correr dos dias, que os espertos espremem da nossa multitude de desejos, que esses sim, nos acabam a doer.

Agora, como digo, estou do lado de fora do lado das vítimas, dos despojados. Agora as minhas questões são simples: Onde comer a próxima refeição, onde dormir logo à noite?

Não era nada que não pudesse ter sido previsto. Aos poucos, a fragmentação da família, irmãos na mesma casa de pais diversos. Houve traumas? Há sempre, que a vida é cheia dessas coisas. Mas como aconteceu? Talvez por ter sido aos poucos nos tenha apanhado desprevenidos. Mas nem devia ser grande surpresa. Devíamos ter suspeitado quando nos começámos a inclinar mais sobre os écrans dos equipamentos eletrônicos, do que uns sobre os outros. Depois ficou fácil deixar de dar importância ao que era importante. Não custou "esquecer" os velhos nos hospitais, depois nos lares. Não custou aceitar a pressa com que se descartavam os mais frágeis com que aceitássemos que haviam vidas que importavam umas mais do que outras. E se no princípio longe, depois foi-se aproximando de nós, mesmo que antes já nos entrassem descaradamente pela sala dentro através de mesmo écran em que se jogava o último jogo de guerra na Playstation. E no outro instante, quando finalmente tomámos consciência estávamos nós no jogo a ser manipulados pelos jogadores com o comando na mão. Só que não era jogo nenhum. Era bem real.

Eles vieram na sombra, ensombrar-nos. Vieram como as traças com as suas asas feias, mas macias, os seus tiques suaves, cheios de boas intenções nas histórias que nos contaram para nos adormecer. Como fazíamos com as crianças e os contos lindos de Natal. Com essa mesma simulada caridade, brilhantes boas intenções que eram como milho para nos convencer a entrar na gaiola. E entrámos com alegria, convictos de estarmos a fazer as boas decisões e era um engano, um enorme engano.

Mesmo que quiséssemos arrepiar caminho, agora já não podemos. Tornaram-nos tão inócuos e impotentes quanto puderam. Retiraram-nos a crença, a ideologia, a esperança. Somos meninos e meninas que gritam histericamente que querem mudar o mundo. Mas não sabem como o fazer. São correntes de água sem rumo. E a diferença entre um rio e uma torrente é essa: O rio tem um rumo, sempre chega ao mar. As torrentes desaparecem no percurso.

Podíamos ter mudado o mundo. Fazendo dele o lugar lindo com que sempre sonhámos. Mas perdemos tempo e tino com enganos. Sucedâneos de mundos que nunca chegavam a ser, mas atrás dos quais corríamos como loucos! Oh quão loucos fomos!

Sim, podíamos ter feito do mundo um lugar melhor, começando por nós mesmos. Mas estávamos tão entretidos a perseguir um gambuzino qualquer. A ir atrás de um aceno, de uma moda vazia e sem nexo, que trocávamos uns tempos depois uma e outra vez. Mas eles nunca perderam o rumo, de nos fazerem os seus empregados, os seus servos, os seus escravos. E depois que ficaram com tudo o que era nosso, porque haveriam eles de querer mudar o mundo? Ou deixar-nos mudá-lo?

Agora é tarde...

1 comentário:

Anónimo disse...

Lindo. Amei. Tony parabéns.😙😙