Um par de botas
Eram amigos. Sempre foram desde que se lembravam. A amizade começara na sua infância e nem mesmo as namoradas ou mais tarde o casamento e respectivas caras-metade lhe diminuira a amizade. Envelheceram e viram netos.
Agora o António estava doente em casa. A maior parte das vezes por cisma, o António tinha medo de morrer e ganhara nesse medo a mania das doenças. Á mais leve das constipações, embrulhava-se todo, parecia um texugo ou refugiava-se na cama. O desgraçado nem percebia que iria passar muito tempo deitado!
O Manuel pelo contrário era activo, enrijecera a apanhar chuva nas costas e sol na face. O tempo divertira-se a abrir-lhe sulcos profundos. Mas andava rijo na sua mania e persistência de que ser agricultor era uma honra! Era um orgulho antigo, que ficara como resquicio das velhas casas grandes de lavoura. Mas era acima de tudo um martírio.
Mais uma vez o António ficara de cama, ás primeiras chuvas de Novembro, que trouxeram também o frio. E o Manuel tinha andado a preparar as suas pequenas coisas de lavrador. Tirar estrume para as próximas sementeiras, podar, limpar. Sinal da sua labuta eram as galochas sujas de lama. O Manuel sofria de pés frios, mas com as meias grossas e o movimento naquelas botas fechadas os pés aqueciam-se-lhe e sentia-se confortável!
Decidiu ir visitar o amigo. Depois do trabalho sairia da propriedade do passal que ficava em caminho à casa do António.
Bateu à porta, a esposa do António veio atender, ele perguntou por ele. "Posso vê-lo?"
A mulher do António disse que sim, pois então! O que não esperava é que o Manuel entrasse pela casa de botas sujas de lama, como se não houvesse problema!
E quando ele entrou, censurou: "Manuel, então tu vais entrar de botas sujas por aqui dentro? Olha que ando cansadinha de limpar..."
O Manuel chateado virou costas e foi-se embora.
Encontraram-se muitos dias depois, a tomarem um copo na adega do Manuel:
-- A tua mulher é uma fanática pela limpeza António.
O António sem perceber muito bem comentou:
-- SIm, tive sorte Manuel, honra lhe seja feita, casei com uma mulher asseada.
-- Lá asseada deve ser... -- resmordeu o Maneul -- Mas não me deixar visitar-te quando estiveste doente, aqui à dias, por causa de querer ter a casa limpa, é que acho que é demais!
O António ficou atónito:
-- Não te deixou visitar-me? Pois decerto Manuel! Lembro-me de ela me contar! Tu ías com as botas borradas de lama!
-- A tua mulher é uma exagerada António... as botas estavam quase limpinhas! E porra António, vinha de trabalhar!
O António começou a ficar chateado, e o vinho que estava a provar, pareceu-lhe um bocadinho azedo:
-- Oh! Manuel fracamente pá! O teu trabalho é mais importante que o da minha mulher, que é manter a casa limpa?
O Manuel ficou agastado:
-- Olha, donde vem tudo? Não é da terra? Ela que limpe, a ver se a limpeza lhe mata a fome!
O António subiu de tom:
-- Estás a armar em parvo Manuel? Não cuides tu da limpeza e vê lá se não ficas doente!
-- Lá estás tu outra vez, mais a tua mania das doenças! A comida nasce da porcaria! Vê as batatas, se não lhe pões estrume não crescem!
O António ficou apoplético:
-- Com a mania das doenças? Mas tu estás dizer que eu não sou doente, que tenho é mania?!!
O António pousou o copo com força em cima da mesa na adega, e saiu fulo sem sequer dizer mais palavra.
Foi a primeira, a única e a última zanga entre os dois amigos. Uma bela amizade que se desfez, por um par de botas enlameadas.