08 novembro 2003

Um par de botas



Eram amigos. Sempre foram desde que se lembravam. A amizade começara na sua infância e nem mesmo as namoradas ou mais tarde o casamento e respectivas caras-metade lhe diminuira a amizade. Envelheceram e viram netos.
Agora o António estava doente em casa. A maior parte das vezes por cisma, o António tinha medo de morrer e ganhara nesse medo a mania das doenças. Á mais leve das constipações, embrulhava-se todo, parecia um texugo ou refugiava-se na cama. O desgraçado nem percebia que iria passar muito tempo deitado!
O Manuel pelo contrário era activo, enrijecera a apanhar chuva nas costas e sol na face. O tempo divertira-se a abrir-lhe sulcos profundos. Mas andava rijo na sua mania e persistência de que ser agricultor era uma honra! Era um orgulho antigo, que ficara como resquicio das velhas casas grandes de lavoura. Mas era acima de tudo um martí­rio.
Mais uma vez o António ficara de cama, ás primeiras chuvas de Novembro, que trouxeram também o frio. E o Manuel tinha andado a preparar as suas pequenas coisas de lavrador. Tirar estrume para as próximas sementeiras, podar, limpar. Sinal da sua labuta eram as galochas sujas de lama. O Manuel sofria de pés frios, mas com as meias grossas e o movimento naquelas botas fechadas os pés aqueciam-se-lhe e sentia-se confortável!
Decidiu ir visitar o amigo. Depois do trabalho sairia da propriedade do passal que ficava em caminho à casa do António.
Bateu à porta, a esposa do António veio atender, ele perguntou por ele. "Posso vê-lo?"
A mulher do António disse que sim, pois então! O que não esperava é que o Manuel entrasse pela casa de botas sujas de lama, como se não houvesse problema!
E quando ele entrou, censurou: "Manuel, então tu vais entrar de botas sujas por aqui dentro? Olha que ando cansadinha de limpar..."
O Manuel chateado virou costas e foi-se embora.
Encontraram-se muitos dias depois, a tomarem um copo na adega do Manuel:
-- A tua mulher é uma fanática pela limpeza António.
O António sem perceber muito bem comentou:
-- SIm, tive sorte Manuel, honra lhe seja feita, casei com uma mulher asseada.
-- Lá asseada deve ser... -- resmordeu o Maneul -- Mas não me deixar visitar-te quando estiveste doente, aqui à dias, por causa de querer ter a casa limpa, é que acho que é demais!
O António ficou atónito:
-- Não te deixou visitar-me? Pois decerto Manuel! Lembro-me de ela me contar! Tu í­as com as botas borradas de lama!
-- A tua mulher é uma exagerada António... as botas estavam quase limpinhas! E porra António, vinha de trabalhar!
O António começou a ficar chateado, e o vinho que estava a provar, pareceu-lhe um bocadinho azedo:
-- Oh! Manuel fracamente pá! O teu trabalho é mais importante que o da minha mulher, que é manter a casa limpa?
O Manuel ficou agastado:
-- Olha, donde vem tudo? Não é da terra? Ela que limpe, a ver se a limpeza lhe mata a fome!
O António subiu de tom:
-- Estás a armar em parvo Manuel? Não cuides tu da limpeza e vê lá se não ficas doente!
-- Lá estás tu outra vez, mais a tua mania das doenças! A comida nasce da porcaria! Vê as batatas, se não lhe pões estrume não crescem!
O António ficou apoplético:
-- Com a mania das doenças? Mas tu estás dizer que eu não sou doente, que tenho é mania?!!
O António pousou o copo com força em cima da mesa na adega, e saiu fulo sem sequer dizer mais palavra.
Foi a primeira, a única e a última zanga entre os dois amigos. Uma bela amizade que se desfez, por um par de botas enlameadas.