A Cura
Podia andar às voltas vezes sem fim, andaria sempre à volta da mesma coisa. De futuro, que o presente é em cada instante. Arrastava o seu corpo, não porque lhe pesasse, mas porque não tinha, ou sentia que não tinha. Faltava sempre alguma coisa, como se ao puzzle faltasse uma peça. Depois pensava ter descoberto, e ainda não era aquela que encaixava. O que restava era sempre aquela sensação de frustração, de estar quase lá, e ainda não estar por completo.
Estava doente, mas não era nada físico. Também não era nenhuma paranoia. Era apenas um desassossego de existir. Uma sede de qualquer coisa, em lugar nenhum. Uma sede que nenhuma bebida saciaria. Uma fome que não era por comida.
O que seria?
Andaria o que fosse preciso. Continuaria a percorrer o mundo da sua cabeça, tentaria alterar o que pudesse, e já tinha tentado. Oh! Como tinha tentado... Fora em vão. Aquele vazio enchia-o a pouco e pouco, preenchendo de nada a sua alma, que se esvaziava lentamente, tornando-lhe mortiços o escuros olhos castanhos.
O cabelo caia e esbranquiçava, sem qualquer importancia. Diziam-lhe que estava mais charmoso, e nessas alturas aumentava-lhe o vazio, e ele não sabia porquê!
Quando em pequeno sonhara ser um viajante das estrelas, mas ficara agarrado ao chão, ao pó. Como se este o reclamasse como presa sua. Viajava em histórias e na imaginação delirante, que também ela aos poucos ficava vazia. Restavam-lhe as palavras para esconjurar o malefício. E nelas desnudava a alma, com o mesmo pudor com que uma virgem inocente se despe para tomar banho. Sem qualquer ponta de maldade, nem narcisismo; como se a beleza a existir, estivesse sempre estado ali, latente, pronta a manifestar-se como a crisálida que dá à luz uma borboleta.
Doiam-lhe os dedos de escrever, não porque fosse muito o que escrevia, mas porque estava numa permanente tensão, entre o seu estado de alma, e as palavras que regurgitava. Sentia que era uma doença, porque lhe tremia o corpo, e às vezes furtivamente lhe vinha uma lágrima, numa dor surda.
Estava a ficar surdo e cego, como se o seu corpo o quisesse poupar ao tormento de existir. E ele amava a vida... Sem saber muito bem porquê. Era como todos os amores, ama-se e basta!
E bastava-lhe escrever e reler, para que a alma sossegasse, como se tivesse esvaziado mais um pouco.
Para aquela doença, se não era o seu remédio, escrever era definitivamente a sua cura.