A Utopia
Era estranho! Era tudo muito estranho. Mas o que não era estranho naqueles dias? Tinham prendido um indivíduo, aparentemente não houvera crime nenhum, nenhuma violação da Lei, mas... Era estranho, muito estranho. A moça tinha 18 anos e saira de casa de noite e fora para a praia, segundo os pais dela para se encontrar com ele. Ele era um indivíduo de meia-idade segundo o BI, mas não parecia ter mais de 30 anos. Segundo a moça, ele era um amigo, e tinha evitado que ela fizesse uma loucura. Estava revoltada com a atitude dos pais, e pedia-lhe desculpa a ele. Ele sorrira e tranquilizadoramente dissera-lhe: "Não faz mal. A culpa não é tua. Hei-de sempre ter-te no coração..." E levaram-no. Fiquei com pena da moça que chorou desalmadamente. Cheguei a desconfiar...Palavra que cheguei a desconfiar que seriam amantes, mas o mais estranho veio depois.Na esquadra foi interrogado. Contou que conhecia a moça dos chats da net, que aí tinham feito amizade. Nada de novo nisto, estava farto de ouvir histórias dessas. A moça tinha-o por confidente, e um dia confessou-lhe que desapontada com o amor cogitara o suicidio. Deixar-se ir no mar, entregar-se ao esquecimento para sempre. A partir daí decidiu que havia de ficar por perto. Trocram números de telemóvel. E naquela noite recebera um, era ela chorosa, ele percebeu e foi ter com ela.
Ninguém sabe o que falaram, o que fizeram. Tanto um como outro se calam nesse respeito. Fizeram uma espécie de pacto.
A moça foi examinada por uma médica, um pouco contra sua vontade, mas espetaram-lhe a peta, que apenas se queriam certificar que estava bem... Não havia sinais de ter havido qualquer actividade sexual. Os pais haviam esperado por ela a noite quase toda e como não viesse, em pânico vieram pedir auxílio à polícia. Alguém os vira na praia e foi rápido encontrá-los. O homem não ofereceu qualquer resistência, parecia tranquilo, pacifíco. Sempre que o seu olhar encontrava o dela sorria. Ela chorosa, parecia mais tranquila quando os seus olhos se encontravam. Parecia... Rídiculo como possa parecer, parecia como se fosse pai e filha.
Mas o interrgatório do homem revelaria coisas mais surpreendentes.
-- Então está desempregado?
-- Sim, estou...
-- Há quanto tempo?
-- Desde Maio.
-- Há quanto tempo conhecia a moça?
-- Não sei bem, algumas semanas, sou mau para datas.
-- O que queria da moça?
-- Amizade. Falar um pouco... Mostrar-lhe que há razões para ter esperança no futuro.
Nesta fase o sargento riu-se e o homem perguntou:
-- Não acredita que o futuro pode ser bom?
O sargento foi apanhado de surpresa e rugiu, não estava muito habituado a responder:
-- Que é que tem o que eu acredito? Hein?
-- Pois... Por certo que não tenho nada. É uma pena!
-- É uma pena porquê? -- disse o sargento em tom ameaçador.
-- São essas atitudes, que levam moças boas como esta a querer atirar-se ao mar.
Aquilo bateu no sargento mais forte que um murro no estomâgo. O sargento tinha duas filhas e uma em breve faria 17 anos. Ficou paralisado por instantes, para digerir a força das palavras ou talvez para tomar folêgo e voltou a rugir:
-- É como as tuas, que te aproveitas da inocência delas!
-- A única coisa de que me aproveitei, foi da oportunidade de dar.
O sargento riu com cinismo. Lidara demasiado com malfeitores e criminosos para acreditar em almas boas.
-- Querem lá ver! És um um santo, o Cristo em pessoa!
-- Se o seguissem o mundo seria melhor.
-- Deixa-te de merdas! A moça teve foi sorte! Sabe-se lá o que lhe ías fazer!
-- Sargento, ela é maior. Podia fazer sexo com ela, que não era crime. Mas não fiz. E sabe que mais sargento? Se fizessemos mais amor, mais entrega, se praticassemos mais o dar este mundo seria bem melhor!
O sargento explodiu em fúria, era noite, o dia fora aterrador, estava cansado de tanto mal no mundo e queria libertar-se daquela ansiedade que o sufocava lentamente naquela salinha de interrogatório. Virou-se de repente e deu um murro na mesa para assustar o homem, mas este estendera os braços e o murro do sargento acertou-lhe na mão. O homem gemeu de dor, e a mão começou a ficar inchada e negra.
O sargento chamou de imediato alguém:
-- Depressa uma toalha com água fria...
Virou-se para o homem e disse seco:
-- Desculpe.
O homem sorriu-lhe e disse:
-- Não faz mal, sei que foi sem intenção... Aliás dentro de dois minutos já está bem...
O sargento amoleceu e com ar realmente preocupado disse:
-- Deixe-me ver...
E para espanto a mão não tinha nada, visivelmente nada!
-- Quem é você?! -- perguntou o sargento com medo da resposta.
-- Eu sou a utopia.
O homem levantou-se e saiu pela porta fechada.