29 novembro 2003

Nas asas da liberdade


A esposa morrera, nem há uma semana. Uma morte lenta de cancro, que o prepara para a dor maior de ficar definitivamente sem ela. Durante todo o tempo em que agonizava, não fora dispensado das suas funções de Presidente do Conselho de Administração da grande corporação. Era materialmente rico, mas vazio por dentro agora que ela se fora. Ela tinha sido a sua espiritualidade, buscara consolo na Bíblia, á medida que a vida lentamente a sufocava. Ela lera-lhe inúmeras passsagens, quisera que ele acreditasse como ela que vida recomeçaria num novo mundo maravilhoso.
Tudo o que recomeçava era a obrigação do continuar dos dias. Sem descanso, sem paragens, sem interrupções. O Faraó era a corporação.
-- Sr. Presidente, precisa de assinar o contrato de exploração de petróleo...
-- Deixe ficar... -- disse ele, recuando para dentro de si. Aquele contratou estava manchado de sangue. Era finaceiramente um bom contrato.
-- Também lhe trouxe o plano de reestruturação da empresa têxtil que adquirimos ontem...
E ele viu-se a pensar o que significava reestruturação: despedimentos, milhares de famílias afectadas numa espécie de bola de neve. Sabia que aquela empresa era a maior empregadora da região. A empresa seria deslocalizada e a região seria condenada á desertificação humana. As mãos tremeram-lhe. Lembrou-se da esposa, quando lhe falou do Faraó, que este dissera aos judeus escravizados que fizessem tijolos e arranjassem também a palha.
-- Deixe ficar também... -- pediu ele á secretária.
A secretária pareceu indecisa, mas arriscou:
-- Tem aqui também aquele projecto imobiliário...
Ele sorriu-lhe:
-- Deixe em cima da secretária, por favor...
O projecto era um ressort turistico para abastados como ele. Mesmo ao lado havia milhares de pobres, que apenas se contentariam se tivessem o suficiente para comer todos os dias! Lembrava-se de que as terras onde seria construído o ressort, eram terrenos baldios de que um político corrupto se apropriara e que lhe vendera, por um preço razoável. Aquele ressort era construído sobre cadáveres. Sentiu-se mal do estomâgo, com uma vontade de vomitar e foi até ao WC do andar. Tinha o seu próprio WC privado, mas sentiu necessidade de andar.
Entrou no WC, e fechou-se no cubículo da sanita. Entruo alguém e ouviu sem querer:
-- Depois da morte da esposa, o Presidente não é o mesmo! Perdeu a garra!
O interlocutor disse.
-- Acreditas que será destituído na próxima Assembléia Geral de accionistas?
-- Talvez... Os contratos acumulam-se na secretária dele, parece adiar indefinidamente as decisões, estamos a perder milhões...
Riu-se por dentro! O grande deus Mamon tinha inúmeors seguidores! Achavamos repugnante nos tempos antigos os sacrificios humanos, contudo pelo dinheiro, eramos capazes de fazer todos os sacrifícios humanos que fossem necessários. Até ele, por paradoxal, se sentia mais um.
Lembrou-se da esposa, de como Deus amorosamente enviara um homem, para libertar todos os escravos de Faraó. Com que mão forte os tirara daquele jugo pesado. Queria ser liberto, mas não acreditava em Deus ou melhor, parecia-lhe que Deus deixara de acreditar nos homens, que estes fossem capazes de qualquer bondade digna de nota. Por isso, Deus deixara a humanidade entregue a si própria, até se transformarem numa monstruosidade.
Sentiu uma angustia dolorosa invadir-lhe o peito. Uma saudade a ferrar-lhe por dentro. Sentiu-se preso, amordaçado nos seus sentimentos mais puros e generosos, manietado. Queria ser livre! Queria acreditar que existe Deus, e que este se importa, que faria qualquer coisa que o libertasse! ave voando
Voltou ao seu escritório, ao seu gabinete belamente decorado. O Faraó vivia em luxo e concedia-lhe parte dele. Sentiu nojo de tudo aquilo, que se construira na desgraça de milhares de outros, no sangue de irmãos. Pois como contava a Bíblia todos viemos da mesma costela. Olhou para fora, pelas grandes janelas do topo do edificio, que mais alto que os outros todos, como uma piramede simbolizava o domínio, o poderio, sobre os outros!
Sentiu um sufoco, que não era apenas da alma, mas de ar também e abriu a janela!
O vento entrou livre e forte e espalhou os contratos todos sobre a sua secretária, pelo meio do chão. Só havia uma saída, daquela gaiola dourada. Subiu no parapeito da janela. Queria a sua amada esposa! Queria ser livre! E acreditou que podia ao menos, ser pássaro! Abriu as asas, e voou...