10 dezembro 2003

Todas as dores do mundo...


De entre todos nós, ele era sem dúvida o mais dotado! Escrevia poemas tão maravilhosos, tão cheios de musicalidade e sentimento, que causava admiração e inveja a nós, míseros aprendizes de feiticeiros das letras. Quando falava da dor, as palavras dele magoavam-nos a alma, a sua amargura saía-nos pelos poros a ponto de ficarmos incomodados. Mas o que era incompreensível é como alguém que escrevia palavras tão belas podia ser tão execr´vel, um autêntico tartufo.
Não era arrogante, nem imodesto, antes pelo contrário. Parecia escrever com desprezo, como se escrever fosse para ele uma tortura!
Ninguém o percebia. Eu queria perceber. Não por altruísmo, queria que ele fosse pró inferno a mais o seu feitio! Mas já que não escrevia nada de jeito, ao menos podia armar-me em biografo e talvez por mera relação simbiótica pudesse ficar com alguma fama! No fundo, eu reconheço, era mais mesquinho que ele, mas em mim era compreensível, carago! Era uma questão de sobrevivência, nele era o mau feitio, que aturavamos devido à sua genialidade.
Nenhum de nós alguma vez assistira ao parir dos seus versos, ele recusava obstinadamente a presença de alguém enquanto escrevia. Alguns de espírito ainda mais mesquinho que o meu, diziam que não era ele que escrevia, que era outra pessoa. Mas depois também ninguém explicava melhor as palavras do que ele. Vá lá, não pensem que somos todos uma cambada de cabotinos! Apesar de o detestarmos quanto ao feitio, daríamos a alma por apenas um dos seus poemas! Aliás já tínhamos desancado um crítico parvo, que dissera umas barbaridades a respeito dele. Podíamos ser mesquinhos, mas também sabíamos ser amigos.
Mas eu queria, como biografo e apenas para me documentar, de assistir ao parir de um poema. Então um dia com o concluio de uns amigos, consegui ficar dois dias a bolachas e um cantil de whiskey, enfiado no forro do telhado, do velho quarto onde ele habitava. Foram dois dias infernais, sem poder lavar-me e a mijar pra dentro de uma garrafa de cerveja! Uma experiência horrorosa, que tentei descrever num poema de angústia, mas que me pareceu ainda mais horrível que a experiência! Mas estou a desviar-me do tema... Dizia eu que finalmente consegui ver o parir o de um poema. Era tarde da noite e ele regressava dos copos, que era aliás a nossa actividade predilecta. Ele sentou-se na cadeira do quarto, junto a uma pequena secretária e segurou a cabeça entre as mãos, e ouvi-o chorar. Era uma cena indescritível, aquela besta de mau feitio, a chorar. Vi-o agarrar numa esferográfica e num papel e começar a escrever... Contorcia-se, como se tivesse dores horríveis e consegui-a ouvi-lo gemer. Até fiquei com medo que tivesse a ter um ataque e que como o Camões quisesse salvar o seu génio para a posteridade, mas mal acabou de escrever, pareceu ficar bem. E deitou-se vestido e tudo, apenas atirou com os sapatos para o meio do chão.
Um dia decidi confrontá-lo, pedir-lhe o seu segredo, expliquei-lhe que era o seu biografo. Tratou-me mal pra caramba, dizendo:
-- Como é que um imbecil analfabeto como tu, quer ser meu biografo hein? Cusco do carago! Bisbilhoteiro! Se escreveres alguma mentira a meu respeito, desanco-te com tantas, que de pretenso biografo passas a bombo efectivo!
Suportei aquele trato de cão, apenas por amor à arte! Humilhei-me e supliquei que me explicasse o seu segredo. E um dia, em que o arrastei mais bêbado que eu para sua casa e depois de ele me ter vomitado as calças, presumo eu que mais pra me humilhar do que por bebedeira, ele decidiu contar-me o seu segredo:
-- Anda cá palhaço! -- disse-me ele, enquanto eu o deitava na cama.
-- Sim, diz lá...
Com uma das suas manápulas agarrou-me pelos colarinhos e chegou-me a 5 cms da sua face que trezandava ao bafo do álcool e a cheiro de vomitado.
-- Queres saber o meu segredo imbecil? -- E largou-me antes de eu desmaiar com o cheiro. -- Eu conto-te o meu segredo! Trata-se de uma maldição, de uma maldição tão antiga quanto o mundo... O Nosso Senhor teve esse maldição, eu tenho essa maldição, e sei lá quem mais...
Achei que ele estava tão perdido de bêbado que delirava! Mas antes isso que entrar em como alcoólico e deixei-o falar.camelo morto
-- Olha analfabeto, para escrever bem, é preciso estar disposto a pagar o preço...
-- Que preço? -- perguntei curioso. Mais tarde dei graças a Deus de ser apenas um palhaço imbecil e analfabeto, com pretensões de biografo!
Ele sorriu, mas era um sorriso trocista, quase insultuoso e concluiu antes de adormecer:
-- O preço é estar disposto a suportar todas as dores do mundo...