O Mestre
sobre amores, desamores, vontades e á vontade...
O Mestre desaparecera. Imaginámos que bandos rivais o tivessem raptado, invejosos da sua sabedoria e que estariam agora a torturá-lo num qualquer pardieiro abandonado. Mas depois de algumas diligências e de cobrar favores consegui descobrir o paradeiro do Mestre. Estava numa praia, e era má época, pois estavamos no Inverno, mas decidi ir ter com ele. Estava receoso, mas ele ao ver-me sorriu e convidou-me a dar uma volta na praia. Estava um vento terrível e apesar da roupa a areia batia nas pernas como canivetes. O Mestre parecia divertir-se com aquilo.
-- Sim, adoro o vento, o cheiro a maresia e esta dor finíssima, aguda, nas pernas!
Pensei que o nosso Mestre endoidara, mas com ele era sempre de esperar revelações abruptas. Por isso decidi puxar por ele:
-- Mestre, alguma razão para vires para aqui?
-- Há.
-- Qual?
-- O medo.
Nunca me apercebera que o Mestre tivesse medo fosse do que fosse.
-- Como assim, Mestre?
O Mestre deu uma gargalhada que rivalizou com a rebentação das ondas, e quase fui tentado a dizer que endoidara mesmo. Mas ele continuou:
-- Todos fugimos da dor. Temos medo de sentir dor. É instintivo! Mas será que queremos ficar-nos pelo instinto? E fugir de alguma coisa acaso é solução? Esta dor fina nas pernas é uma bênção. Não sentes?
-- Não, Mestre... -- disse de repente sem pensar. Achava aquele vento que levantava a areia e ma atirava como chicotes ás pernas através da roupa, era mais uma espécie de tortura. Será que o Mestre sofria de dem6ecirc;ncia senil?
-- Pois... Percebo que para ti seja difícil entender. Não estás preparado. Mas talvez entendas se eu te disser de outra forma: Porque é que quando sofremos um desgosto de amor, ainda assim não dizemos mal do amor, mas procuramos nova tentativa, ou pelo menos ansiamos que da próxima seja diferente, tenhamos sorte?
-- Não sei Mestre.
-- Porque a dor que vem do desamor é boa! Recorda-nos que estamos vivos! Só a dor é real!
-- Como assim?
-- Os anglo-saxões são lutadores. Eles afirmam na sua filosofia de vida o poder soberano da vontade, são sobreviventes! Procuram ignorar a dor quando ela vem e julgam que isso lhe traz vantagem! Por isso são 'frios' quase insensíveis e as suas relações amorosas frágeis e menos intensas. E quando são intensas, são doentias. Mas só a dor é real!
Não conseguia acompanhar o Mestre, mas ele parecia entusiasmado e deixei-o continuar.
-- Os amores, os desamores, tudo isso apenas trás dor! Mesmo quando encontramos alguém que amamos muito e nos correponde, vem a dor do medo de a perder! Quando amamos quem não corresponde, fica a dor de não ser correspondido. Mas afinal o que permanece? O que é constante? O que atravessa a nossa vida de uma ponta á outra? A dor! A dor é a essência da vida!
O Mestre olhou para mim, e deve ter visto o espanto estampado na minha face, por isso quase concluiu:
-- Essa é a revelação da areia a bater-te nas pernas!
Pensei que sim, talvez fosse, sim agora percebia! Sabia bem sim, aquela dorzinha aguda nas pernas, como alfinetadas, eram a prova de que eu estava vivo!
Sorri para o Mestre, podia aprender, agora estava á vontade.