09 fevereiro 2004

Ping-Pong


Os terroristas tinham trabalhado toda a noite, finalmente conseguiram arrancar a caixa Multibanco e substitui--la por uma outra, obviamente falsa. Quem iria imaginar?
Acordara cedo naquele dia, levara a mulher ao trabalho, as crianças ao infantário e à escola primária. Sim, tinha dois pirralhos.
Estava desempregado e agora era eu que ficava com a maior parte das tarefas domésticas. Não me importava, mas parecia que a Nela (a minha esposa), começava lentamente a fartar--se da ideia. Assumia cada vez mais o papel de principal decisora, como seu eu não fosse tido nem achado. Acho que se emancipava, o que era bom, mas que me começava a desconsiderar o que era mau.
Tinha ficado sem liquidez na carteira, e como havia um Multibanco perto da escola, decidi passar por lá, mal tivesse deixado os miúdos. Eles eram a nossa alegria e a nossa preocupação. A Nela talvez achasse que na situação actual eles nunca pudessem frequentar a Universidade. Embora como o meu próprio caso provasse, um curso já não era garantia de nada. Mas ela teimava que era melhor ter um que não ter nenhum. Contudo ela não tinha, e estava a sair--se muito bem. Ela dizia que para o manter se esfalfava como uma escrava. E isso não era o que eu fizera sempre? Esfalfar--me como um escravo? Ela parava a discussão e encolhia os ombros. Acho que ela percebia que o mundo mudava para cada vez pior, e que nada podia fazer. Era uma insegurança que invadia tudo.
Vivíamos permanentemente em medo. Medo de perder o sustento, os filhos, o status e o mais que fosse.
Inseri o meu cartão Multibanco e a máquina obedientemente engoliu--o. Depois ao invés do habitual écran pra digitar o código de acesso, apareceu uma imagem pornográfica do Bin--Laden a sodomizar o Bush, como eu já tinha visto a circular nos emails.
Depois acabou--se. A caixa Multibanco explodiu com estrondo e pedaços de mim foram parar a mais de 50 metros de distància esborrachando--se nas paredes dos prédios em frente do outro lado da rua. Não houve corpo para identificar, a única coisa que deu para isso foram as provas circunstanciais: o carro estacionado e o meu desaparecimento.
Comigo morreu mais um desgraçado que ía para o trabalho e que passava na hora errada, no local errado. Um autocarro que passava perto deu origem mais de 35 feridos, felizmente todos sem grande gravidade para além do susto.
A Nela esteve à espera 5 anos para receber do seguro de vida, e só recebeu em tribunal, quando os peritos em ADN, afirmaram que os pedaços da vítima encontrados eram mesmo os meus. Ela deixou de trabalhar para cuidar dos nossos filhos e eles puderam ir estudar para a Universidade com base no dinheiro do seguro. A vida continuava.
Era um jogo de ping--pong, onde nós somos a bola, batida de um lado para o outro, até rebentar ou cair da mesa.

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