11 fevereiro 2004

O anúncio


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Ela passeava os olhos pela revista, porque efectivamente não tinha mais nada para fazer enquanto esperava no cabeleireiro a sua vez. Quase que desfolhava as páginas sem ver, mas nos pequenos anúncios algo lhe saltou à vista dizia:
"É VITIMA DE VIOLENCIA DOMÉSTICA? QUER POR UM FIM A ISSO? LIGUE-ME" Depois vinha um n. de telefone. Ela decidiu apontar, lembrando-se da última vez em que o marido chegara a casa bêbado e a desancara forte e feio chamando-lhe puta. Tivera que faltar ao emprego, mentindo mais uma vez que se sentia mal.
Era cada vez mais complicado lidar com a situação, e as bebedeiras do marido eram cada vez mais frequentes. Os filhos já não estavam em casa, cada um para longe, e quando a visitavam ela não queria que pensassem mal do pai. Mas ela tinha a certeza que os filhos sabiam. Um dia o Pedro que andava no exército ameaçou o pai, que o matava se ele me voltasse a tocar. Por isso tinha medo e mentia ao filho, quando este lhe telefonava tranquilizando-o.
Mas ela já não podia mais, e viu ali uma réstia de esperança.
Foi atendida, e quando chegou a casa, decidiu telefonar.
-- Estou sim? -- atendeu uma voz feminina do outro lado.
-- Estou, olhe eu estou a ligar por causa de um anúncio na revista...
-- Já sei minha senhora, mas é engano, fartam-se de me ligar para o meu telemóvel, eu nem me importo que vivo sozinha, mas num sei nada disso do anuncio percebe minha senhora?
-- Percebo, sim, queira desculpar...
-- Não tem mal, sabe... A maioria que telefona são mulheres... Queixam-se que os maridos lhes batem, é o seu caso?
-- Que interesse a senhora tem em saber?
-- Na verdade lamento essas pobres mulheres, cara senhora! Se o meu marido que Deus tenha em descanço me fizesse isso, eu rachava-o!
Ela percebeu que era uma idosa, e pensou que tudo aquilo era uma brincadeira de mau gosto, mas mesmo assim riu-se da velha senhora.
-- Pois eu minha senhora se pudesse também o rachava, o pior era depois! Queira desculpar-me o incómodo mas tenho mesmo de desligar...
-- Decerto senhora... Olha desejo que a besta que lhe bate Deus a castigue!
Ela riu--se outra vez, e disse a terminar:
-- Obrigado, com licença...
A voz do outro lado disse:
-- Faz favor. -- E desligou também.
A réstia de esperança feneceu.
Andava entretida arrumar a casa, esperando que ele mais uma vez chegasse do trabalho, comesse alguma coisa rápido e saísse logo para ir ter com os amigos, onde bebia cerveja até às tantas. Andava sempre com más companhias, um dos amigos já tivera a ousadia de a flertar, mas ela fez-se desentendida. Ela sabia que era jeitosa e bonita, mas isso apenas lhe dava dores de cabeça. Ele era mais velho e barrigudo e careca, e os companheiros dele ao contar que comiam esta e aquela apenas lhe atiçavam as inseguranças e ele vinha para casa armado em machão. Já quisera que ela deixasse de trabalhar, mas essa era o único escape que ainda lhe restava daquela vida amargurada.
O telemóvel ligou e ela atendeu:
-- Estou sim, quem fala?
-- Ligou por causa de um anúncio lembra-se?
-- De um anúncio?
-- Sim, violência doméstica.
-- Mas disseram-me que era engano!
-- Sim é engano, mas consigo saber quem telefona, não se preocupe. Está interessada em resolver o seu problema?
-- Sim, mas não sei como.
-- A Senhora é que sabe como.
-- Eu?!
-- Está disposta a fazer o quê? Sabe que os espancadores, mesmo os que se arrependem voltam ao mesmo não é?
Ela sabia bem disso. Quando recobrava a lucidez pedia-lhe perdão, que não voltaria a meter-se nos copos, que não suportava viver sem ela.
-- Então senhora? Eliminamos o mal pela raiz?
-- Está a falar em matar o meu marido?
-- Não; a senhora é que está. Eu perguntei-lhe o que estava disposta a fazer...
-- Matar... não sei... -- A consciência dela atormentava-lhe o pensamento.
-- Se não for a senhora acabar com ele, como acha que acabará?
Lembrava-se quando um dia ele veio como louco e lhe abriu um lanho na cabeça, e teve de ir ao hospital e mentir, dizer que tinha caído pelas escadas abaixo. Tinha ficado uma semana de cama. Outra vez, bateu-lhe com uma tolha molhada e ficou com o corpo todo cheio de hematomas, e sem conseguir dormir...
-- Então senhora, vou desligar e deixá-la a pensar. Volto a contactar. -- e desligou.
Tudo aquilo não demorara mais de 15 segundos.
Então era isso, um assassino a oferecer os seus serviços? Mas ele tinha dito que ela é que escolhia... Podia mandar dar-lhe um arraial de porrada, mas e depois? Ele não viria ainda mais azedo? Talvez até a acusasse de ter um amante! E seria tudo muito trágico.
Se alguém devia morrer nessa história seria ele. Quando casaram no altar, ainda se lembrava do que o padre dissera, que era obrigação dele protegê-la e amá-la. Ele falhara essa obrigação santa, era um miserável, dominado pelo álcool, pelas más companhias.
Já tinha decidido.
O telemóvel voltou a tocar...

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