03 fevereiro 2004

O Ovo de Rá


Ao subir a Montanha Negra, amaldiçoava secretamente o vício de leitura de Ratapone. Ele era o meu Mestre, mas acho que o facto de ler livros a mais lhe turvara um bocado caixa dos pirolitos! Eis-nos ali depois de atravessar as Terras Sombrias, um conjunto de pàntanos fétidos onde se ficava doente só de respirar, para chegar à Montanha Negra, onde segundo Ratapone, viva um eremita que podia indicar-nos o caminho que em tempos idos o sacerdote egípcio Memeth tinha tomado. Ratapone tinha lido velhos relatos sabe-se lá em que livros bolorentos e de certeza respirara algum fungo psicotrópico, que o fizera crer naquelas histórias todas.
Tinha tentado chamá-lo à razão e quase me bateu. E agora ali estávamos a praticar alpinismo! Era uma comitiva gira, eu (o seu discípulo), Godo (o seu criado), e Helmut um lobo que falava, vá-se lá saber porquê! Helmut também não ía contente, demonstrando isso por ir todo o caminho a rosnar, só Ratapone na frente parecia ir contente. Para mim uma espécie de contentamento de alguém que tomou qualquer coisa.
Quando nos sentamos no meio de um dos muitos fétidos pàntanos das Terras Sombrias, Godo segredou-me que temia pela sanidade mental do seu amo. Tal tipo de confidência, por parte de Godo era raríssima, se é que alguma vez acontecera! Mas Godo seguiria Ratapone até ao inferno se fosse preciso e tenho a certeza que arranjaria maneira de lhe servir um refresco!
Estávamos a trepar a Montanha Negra há dois dias, e se eu não tinha ideia alguma do caminho que devíamos seguir Ratapone consultava o seu bloco de apontamentos e dva risadinhas, que em vez de me transmitirem alguma tranquilidade tinham o condão de me pôr nervoso.
Ratapone mandou que nos abrigássemos para passar a noite, e Helmut passou para a frente a farejar e disse:
-- Sigam-me...
Ratapone só coleccionava aberrações. Helmut um lobo que falava. Godo era a pessoa mais fiel que se podia ter, e desenrascado como ninguém, apesar de magro e aparentemente frágil. E eu? Bem, Ratapone dizia que eu era inteligente… Deve bastar!
-- Estamos perto, muito perto. Em breve estaremos a falar com o eremita...
-- Mestre Ratapone, quantos anos tem o livro que leu?
-- Sobre o quê, meu filho?
Detestava quando ele me chamava de filho.
-- Onde leu sobre o eremita...
-- Oh! Esse... deve ter mil anos...
-- Mil anos?!!! Então de certeza que o que vamos encontrar não é um eremita, é um cadáver!
Helmut o lobo que falava riu, e eu apanhei uma bordoada pela cabeça abaixo.
-- Às vezes chego a duvidar da tua inteligência meu filho...
Pensei para comigo que eu duvidava era da sanidade mental do paizinho.
-- O eremita da Montanha Negra, tem uma poção à base de ervas e de cogumelos...
-- Vou ver se apanho uma lebre... -- interrompeu Helmut.
-- Este Helmut é muito... pragmático! -- disse o Mestre Ratapone com algum azedume por ter sido interrompido.
-- Vou tentar arranjar algo para temperar a lebre senhor... -- disse Godo, sem esperar licença para se retirar.
Fiquei sozinho mais o Mestre, e senti-me tentado a pagar-lhe na mesma moeda, por me ter dado uma bordoada, mas depois contive-me.
-- Mestre, porque vamos consultar esse tal eremita?
-- Porque só ele sabe o caminho que Memeth, o sacerdote egípcio percorreu através das montanhas para depositar o ovo de Rá.
-- Ovo Mestre? A esta hora tá podre...
Antes que tivesse acabado apanhei outra bordoada, e antes que me pudesse lançar sobre o velho Mestre senil, apareceu Helmut e Godo.
-- Já apanhei uma lebre... -- disse Helmut.
-- Vou assá-la... -- acrescentou Godo.
-- Que maravilha! -- disse o Mestre.
-- E eu perdi o apetite! -- resmunguei.
-- Posso ficar com a tua parte? -- perguntou Helmut, com um sorriso escarninho.
-- Podes, se apanhares as bordoadas do Mestre que me estão destinadas!
Foi uma risota geral e o ambiente desanuviou um pouco.
-- Filho, devias prestar atenção... -- falou o Mestre dirigindo-se a mim. -- O eremita não morreu, tenho a certeza. E quanto ao ovo...
-- Gosto de ovos... -- murmurou Helmut.
-- Helmut, é um ovo sagrado... -- esclareceu o Mestre.
-- Não se pode comer? Então qual é o interesse?
Ri-me, e apanhei outra bordoada.
-- Mas só eu é que apanho?! Bolas!
-- O Helmut tem desculpa é apenas um lobo, tu não. E não se deve gozar da ignorància dos outros...
Helmut e o Godo riram, mas eu não achei piada, e afastei-me estrategicamente do alcance do bordão do Mestre.
-- Trata-se de um ovo sagrado que Memeth o sacerdote egípcio trouxe do Egipto, para que ninguém o pudesse encontrar...
-- Bastava tê-lo atirado a um pàntano das Terras Sombrias, que já ninguém o encontrava!
-- Sim, mas esse não seria o destino adequado a um ovo sagrado.
-- Pois... Era preferível chocá-lo. -- disse Helmut -- Sempre daria um passoroco qualquer...
Acho que o Helmut pensava com o estômago.
-- Não é um ovo de pássaro nenhum... -- disse o Mestre. -- É o ovo da criação...
-- O quê?! -- perguntei espantado e escandalizado.
-- Sim, esse ovo contém o poder da criação, é a chave para a imortalidade... -- e o Mestre Ratapone, mergulhou dentro de si. -- Não podemos deixar que caia nas mãos erradas...
Helmut piscou os olhos e enroscou-se próximo da fogueira para dormir. Godo atiçou a fogueira. E eu pensei que estava metido com um velho senil!

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