27 outubro 2004

O Conservador


Livros! São eles a razão da minha existência. Neles resiste a lembrança, permanece a memória de coisas feitas. Não guardo livros. Não sou bibliotecário. Conservo livros. Livros sobre o que é tangível nas nossas curtas vidas.
Os grandes feitos da história são momentos pontuais e sempre sujeitos a interpretações diversas. Os pequenos factos, são isso mesmo: Factos! Como pequenos tijolos que fazem a parede toda.
Eu guardo os pequenos factos da história de um povo. Aquilo que se torna a pátria transmitida de avós para os netos e mais além.
Nos livros que guardo estão implícitas as crises pessoais e nacionais. Os sacrifícios de um ou de vários.
Dramas pessoais, de quando por exemplo a doença era grave e na ausência de Sistema de Saúde ou de Assistência Social era com património que se combatia o mal. Não era menos combate que uma batalha travada por heróis, mas era também a pátria que estava em jogo, passando de mãos.
Tenho diante de mim nomes dos que hipotecaram prédios, alguns por mais de uma vez e fico pensando no esforço e nos dramas por trás destes registos. Seriam dívidas de jogo? Negócios que correram mal? Doença? Talvez as garras do alcoolismo a estender as suas mãos devoradoras. Fome devido à guerra? Crises económicas severas que obrigavam a largar mão do que tinha não apenas valor patrimonial mas emocional, herança dos antigos? Não sei! Apenas posso supor.
Nas transmissões de pais para filhos, alguns menores, vejo a leveza de existir e ao meso tempo essa aposta na continuidade da vida ou do nome da família. E nota-se às vezes a generosidade expressa em favor dos desfavorecidos, quando orfãos herdavam um pedaço de terra. E talvez estejam aqui também as desavenças nas partilhas, agora resolvidas a bem ou a mal.
Estão também aqui presentes os que partiram para outras terras sob a forma de um registo na ausência, ou a favor de alguém em parte incerta! Terá ido para o Brasil e sabe Deus onde estará agora, ou se alguma vez regressou, ou soube que tinha um quinhão neste canto à beira mar plantado.
Penso nisso, nas histórias por trás destes registos tão formais. Convenço-me de que a única coisa que permanece é o pó. O pó que ora cobre os livros, ora somos nós em forma de gente, por um tempo.
Não, também não sou historiador, nem estou na Torre do Tombo. Tenho uma torre só para mim.
Sou Conservador do Registo Predial.

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