31 outubro 2003

Falésia



Gostava do mar, gostava mesmo muito do mar.
Nunca tivera ningu&eecute;m na família ligado ao mar, nem conhecia na família nenhum aficionado da pesca por exemplo. Mas talvez fosse de nascença, do facto de viver num país de marinheiros, dizia-se. Mas acima de tudo eram viajantes. Viajantes forçados por um país pequeno e mesquinho, sempre nas mãos dos mesmos, que geriam a quinta. Quem precisasse de espaço tinha mesmo e incontornávelmente de sair. E como nos tempos antigos não havia avião, o mar era a única alternativa possível. Foi por isso que nos tornamos marinheiros. Emigrantes. Apesar de pelo facto de o mundo ser grande e desconhecido, nos terem baptizado de Descobridores.

Estava ali, junto à falésia olhando o mar amado, com todas as suas promessas de caminhos novos. Lembrava-se dos tempos de praia, e dos pôr-do-sol, mas era inverno e o vento soprava frio e desagrad´vel no topo da falésia. Mas ele adorava aquele vento carregado de maresia, e imaginava-se solitário navegante num veleiro enfrentando a tempestade. Sorriu.

Não havia muitos motivos para sorrir, o país mergulhava numa profunda depressão e ele sentia-se frágil e deixara-se ir também. Estar agora desempregado, na meia-idade não facilitava pensamentos optimistas. Ele que sempre se considerara ao abrigo do tempo, um eternauta, tinha agora a perfeita noção de ser velho. E essa noção tornava-o mais abatido do que a mera degenerescência física. Aproximou-se um passo mais da borda da falésia.

Uma falésia mal feita, de pedras que apenas procuravam uma oportunidade de se esbarrondar no fundo da ravina, junto ao mar, que colaborante fazia o seu trabalho de desgaste na base.

Fora um daqueles dias em que a neura lhe bateu forte. Decidiu sair de casa sem rumo e nos destinos que o acaso traça, para mostrar que o destino é uma trapaça, deu consigo longe, numa estrada sem saída, que terminava junto aquela falésia.
Ali ao lado havia um edifício que talvez tivesse sido em tempos um restaurante, mas que agora era uma espécie de ruína solitária e que tal como ele olhava o horizonte lá ao longe.

O telemóvel tocou. O seu toque apesar de musical, pareceu-lhe um ruído a estragar a sua contemplação do mar e do céu cinzento. Era algo fora de tom do rugido do mar, no bater das ondas logo abaixo. Sentiu vontade de agarrar nele e deixá-lo cair, mas acabou por atender:
-- Estou sim? -- e o vento tornava a sua voz um sussurro. -- Quem fala?
-- Sou eu, a Ni!
A Ni, era a sua companheira de muitas anos. De uma paciência com ele que quase rasava a devoção religiosa. Ela preocupada com a demora, telefonara. Recuou um passo da falésia. Ela perguntava-lhe se estava tudo bem, quando sabia, apenas de olhar para ele, que tudo ía mal. A Ni era uma espécie de sombra, de uma discrição absoluta. Estava lá quando era necessário, mas das outras vezes nem se notava que estava. E agora... Meu Deus! Como ela era necessária. Perguntava-lhe futilidades: Se vinha comer... Se estava longe...
E aos poucos viu-se agarrado ao telemóvel, a caminho do carro, a abrir a porta e a entrar.
E o carro envolveu-o como uma espécie de concha protectora e morna. O mar ainda estava ao longe, o céu continuava cinzento como a sua alma, mas viu-se a dizer:
— Não te preocupes Ni, estou a caminho... Sim, devo chegar a tempo do jantar...
E depois perderam-se em demoradas despedidas, patéticas despedidas, ela demorava sempre muito a despedir-se. Ele sentia-lhe em todas as despedidas o medo dela, de ficar sem ele. E contudo nunca mostrara a mais leve ponta de ciúmes.
Desligou o telemóvel. Sorriu. Olhou o mar e o céu cinzento, e ouviu em surdina as ondas a baterem na base da falésia.
Ni, vencera a falésia.