31 dezembro 2003

Submerso em mim


Havia uma ausência e eu não sabia, mas era eu apenas á procura de mim próprio! Como pode a vida afastar-nos tanto de nós? Por isso sentia este aperto no peito a moer aos poucos como se me faltasse algum pedaço. E faltava!
Faltavam muitos pedaços... Emoç&etilde;es, sentimentos, que se haviam afundado lá bem no íntimo de mim, num medo de despertarem apenas para me magoarem. Agora é região virgem, que tenho de atravessar vencendo o medo das feras escondidas, apenas para descobrir o que é básico que se saiba: Quem somos!
Dói-me a alma. Não porque esteja ferida, mas porque está calada. Calada há tanto tempo e foi enchendo e é agora um mar, um profundo e misterioso mar. Como um explorador, preciso mergulhar cauteloso nesse mundo, que sendo o meu, é como se fosse de outro.
Tenho medo. Seria mentir, se dissesse que não tinha medo. Mas não suporto viver na angústia deste desconhecido. Por mim próprio tenho de ir ao fundo deste mar e voltar. O que descobrirei? Não sei. Espero que não seja outra vez a dor. A dor que me acompanhou tanto tempo, e que me fez rodear o coração de muros, muros que se encheram e se transformaram neste mar. Espero que não seja a crua revelação de que a felicidade me escapou apenas porque tive medo de expor o coração ao amor. E que neste instintivo desejo de o proteger, acabei por o proteger de sentir o que mais queria. Ou talvez descubra uma espécie de daltonismo sentimental, que me impede de sentir a plenitude do sentir.
Tenho medo, de estar carregando uma enorme pedra sobre a cabeça. (Talvez seja por isso que me doem os braços.) Se descobrir que a minha cegueira me impediu de ver, então essa pedra cair-me-á sobre a cabeça e talvez me enterre de vez.
Tenho saudades de mim, de um tempo em que era apenas eu, com todo o tempo do mundo para mim. Um tempo parecido com o de agora, em que me construía ao abrigo dos outros, sem contudo estar plenamente ausente. Um tempo em que todo eu me construía e aprendia a conhecer-me. Suspenso das leis da gravidade, protegido e amado, submerso em líquido amniótico. Mas afinal, era na realidade submerso em mim...

24 dezembro 2003

A Ceia de Natal dos Cardeais



Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência!

Todos os anos o cardeal António convida alguns cardeais seus conhecidos á sua residência, para a habitual ceia de Natal. Era uma ceia descontraída em que se falava sem pudor na língua, como se fosse uma enorme confissão. &Acute;s vezes chegava a ser desagradável, e daquela vez não foi excepção. Tudo começou com uma infeliz afirmação do cardeal Ricardo:
-- Sabem, o meu desejo maior era que um Natal, o Nosso Senhor viesse á Terra, e fosse a esses desgraçados sem abrigo, e os levasse para o seu seio!
-- Porra Ricardo, você e o Hitler estão ao mesmo nível de pensamento!
-- Ah Ah Ah -- riu o cardeal Marcos.
-- Além disso... -- continuou o cardeal Manuel, o mais novo e o mais destravado de língua -- Nosso Senhor num precisa de vir á Terra, está em todo lado!
O cardeal Marcos escangalhava-se a rir torcendo a sua gorda barriga junto á mesa, o que obrigou o criado (único e de confiança) a fazer uma exercício malabarístico para evitar entornar-lhe a sopa quente na barriga.
-- Desculpa aí amigo... -- disse o cardeal Marcos ao criado -- Mas olha lá, deixa a terrina, eu gosto de sopa. E vê se na próxima me cortas esse cabelo, está bem?
O criado fez uma vénia ligeira, deixou-lhe a terrina, e foi buscar outra pra servir os restantes.
O cardeal Rodrigo agastado com o cardeal Manuel fez contra-ataque:
-- Ao menos não roubo as esmolas, pra as ir gastar com putas!
-- Meus Senhores! Então? -- pediu conciliatório o cardeal António, anfitrião da ceia.
O cardeal Pedro, que já tinha bebido uns aperitivos com o estômago vazio comentou:
-- Antes ir ás putas que ser pederasta! -- e riu-se.
-- Os pederastas também so filhos do Senhor... -- comentou o cardeal Daniel.ã
-- Tendes razão! -- e rindo o cardeal Martinho acrescentou -- Ainda num sóis orfão!
-- A conversa tá a azedar...
-- É como esta sopa... -- disse o cardeal Marcos, que já esvaziara meia-terrina.
-- Num acha que comer tanto lhe faz mal? Depois fica mal dos intestinos... -- disse o cardeal Pedro.
-- E que interesse tem nos meus intestinos? Hein? -- disse o cardeal Marcos agastado. Detestava que lhe lembrassem que o seu maior pecado era o da gula. Mas desde que lera Pantugruel, ficara com o mal.
-- Ao cardeal Pedro só lhe interessa a ultima parte do trato intestinal! Eh eh eh... -- gracejou o cardeal Martinho.
-- Se faz favor, deixem-se de remoques, vai ser servido o prato de peixe... -- pediu conciliatório o cardeal António.
-- Ah ah ah! Há gente que não é carne, nem peixe... -- gracejou de novo o cardeal Martinho.
-- Tem razão amigo Martinho, estavamos a precisar de uma nova inquisição, para meter os hereges na ordem...
-- Irra cardeal Rodrigo, se eu acreditasse na reencarnação ía jurar que era o Torquemada! -- comentou com ironia mordaz o cardeal Manuel.
-- O cardeal Manuel, é que não compreende o bem que esses homens fizeram! -- deixou escapar o cardeal Rodrigo.
-- Comam o peixe... -- pediu o cardeal António.
-- Ó Rodrigo se não quiser o peixe, deixe pra mim... -- pediu o cardeal Marcos.
-- Eu dispenso o peixe, apesar de me parecer com excelente aspecto! Criado recolhe o meu peixe... olha podes dá-lo aos gatos. -- disse o cardeal Martinho.
-- Aos gatos?!! -- protestou o cardeal Marcos.
-- Tendes razão! -- disse o cardeal Daniel -- Com tantos pobres, e vai dar o peixe aos gatos!
-- Ora, o que disse Nosso Senhor? "Que pobres sempre teréis..."
-- E isso quer dizer o quê? -- perguntou o cardeal Manuel.
-- Que os pobres nunca hão-de acabar! -- concluiu o cardeal Martinho.
-- Você é um cínico é o que é­-protestou o cardeal Daniel. -- Já agora também deu o corpo dele pra matar a fome não?
-- Pois... Já vi, o peixe é pra cardeais e gatos, e os pobres que papem hóstias! -- comentou o cardeal Manuel.
O criado que sempre passara despercebido falou então:
-- Posso servir a carne?
Todos concentraram os olhares no criado, e como este estava mais perto do cardeal António, este reparou nas mãos do criado e perguntou:
-- Que é isso que tens nas mãos?
-- Até parecem estigmas! -- comentou o cardeal Manuel.
-- Que foi isso? -- voltou a interrogar o cardeal António.
O homem disse de modo simples:
-- Fui crucificado.
Riram-se!
-- Um criminoso a servir-nos a sopa... -- comentou o cardeal Martinho.
-- Mas foste crucificado aonde?
-- Em Jerusalém.
-- Ena! -- exclamou o cardeal Marcos.
-- Por quem?
-- Por vocês.
-- Por nós? Eh eh eh -- riu de modo escarninho o cardeal Marcos
-- Como te chamas, pobre homem?
-- Jesus...

23 dezembro 2003

De novo por aí...


Estive ausente... Ausente por dias a fio, numa viagem ao longo da galáxia. Fui ao encontro das estrelas, porque na Terra, todas me parecem demasiado pequenas, ofuscadas por outras luzes, que não têm garantidamente a mesma beleza. Perdi-me nessa jornada. E andar perdido, no espaço, ou na Terra é sempre um perigo.
Regresso, encontro-te ou talvez não...
A minha ausência modificou-te, ou talvez seja só eu com outro olhar.
Agora ao invés de te causar alegria, gero apenas constrangimento. Perdoa a minha ausência, assim como eu te perdoo esse olhar desolado e triste. És livre!
Juro que és livre! Não te sintas devedora de nada. Eu é que estive ausente, nessa jornada no vazio, e nem sequer devia ter regressado. Talvez nem tivesse muita vontade de regressar.Talvez nem quisesse regressar. Talvez tenha regressado por automatismo, por estar farto de estar ausente. Ou como o cão, vim atrás do cheiro familiar da casa.
Não, não precisas de ficar triste agora. Eu vi as estrelas de perto e se choro, foi apenas a poalha delas que me entrou na vista...
Afinal, quando o cão encontra a porta fechada, dá duas voltas e vai por aí, feito cão vadio.
É isso que vou fazer, irei de novo por aí...

11 dezembro 2003

Meiguinha


vela
A notícia atingiu-o como um soco em cheio na boca do estômago. Contorceu-se numa agonia esquesita que lhe tirou a vontade de brincar. Meiguinha morrera num acidente. Tinha 19 anos.
Como pode morrer alguém que ainda nem sequer vivera por completo?
Não mais a ía encontrar nos espaços que um dia partilharam. Todas as mortes o revisitaram. Todas as saudades. Toda a impotência e frustração, o ter de aceitar o que era inaceitável!
A morte não é um inimigo. É apenas a sombra que nos persegue, com sol e sem ele.
Havia raiva em cada punho fechado, e nessa dor, lágrimas que teimavam em aflorar os olhos. Meiguinha nunca mais voltaria a cerrar os punhos, nem a chorar.
Amanhã as coisas voltariam á sua rotina, mas já não seria a rotina dela. Tentou imaginar os pais, os irmãos, os amigos. Em todos eles havia agora um vazio, que nada podia preencher.
Foi um acidente...
Mas o acidente maior mesmo, é nascer.

10 dezembro 2003

Todas as dores do mundo...


De entre todos nós, ele era sem dúvida o mais dotado! Escrevia poemas tão maravilhosos, tão cheios de musicalidade e sentimento, que causava admiração e inveja a nós, míseros aprendizes de feiticeiros das letras. Quando falava da dor, as palavras dele magoavam-nos a alma, a sua amargura saía-nos pelos poros a ponto de ficarmos incomodados. Mas o que era incompreensível é como alguém que escrevia palavras tão belas podia ser tão execr´vel, um autêntico tartufo.
Não era arrogante, nem imodesto, antes pelo contrário. Parecia escrever com desprezo, como se escrever fosse para ele uma tortura!
Ninguém o percebia. Eu queria perceber. Não por altruísmo, queria que ele fosse pró inferno a mais o seu feitio! Mas já que não escrevia nada de jeito, ao menos podia armar-me em biografo e talvez por mera relação simbiótica pudesse ficar com alguma fama! No fundo, eu reconheço, era mais mesquinho que ele, mas em mim era compreensível, carago! Era uma questão de sobrevivência, nele era o mau feitio, que aturavamos devido à sua genialidade.
Nenhum de nós alguma vez assistira ao parir dos seus versos, ele recusava obstinadamente a presença de alguém enquanto escrevia. Alguns de espírito ainda mais mesquinho que o meu, diziam que não era ele que escrevia, que era outra pessoa. Mas depois também ninguém explicava melhor as palavras do que ele. Vá lá, não pensem que somos todos uma cambada de cabotinos! Apesar de o detestarmos quanto ao feitio, daríamos a alma por apenas um dos seus poemas! Aliás já tínhamos desancado um crítico parvo, que dissera umas barbaridades a respeito dele. Podíamos ser mesquinhos, mas também sabíamos ser amigos.
Mas eu queria, como biografo e apenas para me documentar, de assistir ao parir de um poema. Então um dia com o concluio de uns amigos, consegui ficar dois dias a bolachas e um cantil de whiskey, enfiado no forro do telhado, do velho quarto onde ele habitava. Foram dois dias infernais, sem poder lavar-me e a mijar pra dentro de uma garrafa de cerveja! Uma experiência horrorosa, que tentei descrever num poema de angústia, mas que me pareceu ainda mais horrível que a experiência! Mas estou a desviar-me do tema... Dizia eu que finalmente consegui ver o parir o de um poema. Era tarde da noite e ele regressava dos copos, que era aliás a nossa actividade predilecta. Ele sentou-se na cadeira do quarto, junto a uma pequena secretária e segurou a cabeça entre as mãos, e ouvi-o chorar. Era uma cena indescritível, aquela besta de mau feitio, a chorar. Vi-o agarrar numa esferográfica e num papel e começar a escrever... Contorcia-se, como se tivesse dores horríveis e consegui-a ouvi-lo gemer. Até fiquei com medo que tivesse a ter um ataque e que como o Camões quisesse salvar o seu génio para a posteridade, mas mal acabou de escrever, pareceu ficar bem. E deitou-se vestido e tudo, apenas atirou com os sapatos para o meio do chão.
Um dia decidi confrontá-lo, pedir-lhe o seu segredo, expliquei-lhe que era o seu biografo. Tratou-me mal pra caramba, dizendo:
-- Como é que um imbecil analfabeto como tu, quer ser meu biografo hein? Cusco do carago! Bisbilhoteiro! Se escreveres alguma mentira a meu respeito, desanco-te com tantas, que de pretenso biografo passas a bombo efectivo!
Suportei aquele trato de cão, apenas por amor à arte! Humilhei-me e supliquei que me explicasse o seu segredo. E um dia, em que o arrastei mais bêbado que eu para sua casa e depois de ele me ter vomitado as calças, presumo eu que mais pra me humilhar do que por bebedeira, ele decidiu contar-me o seu segredo:
-- Anda cá palhaço! -- disse-me ele, enquanto eu o deitava na cama.
-- Sim, diz lá...
Com uma das suas manápulas agarrou-me pelos colarinhos e chegou-me a 5 cms da sua face que trezandava ao bafo do álcool e a cheiro de vomitado.
-- Queres saber o meu segredo imbecil? -- E largou-me antes de eu desmaiar com o cheiro. -- Eu conto-te o meu segredo! Trata-se de uma maldição, de uma maldição tão antiga quanto o mundo... O Nosso Senhor teve esse maldição, eu tenho essa maldição, e sei lá quem mais...
Achei que ele estava tão perdido de bêbado que delirava! Mas antes isso que entrar em como alcoólico e deixei-o falar.camelo morto
-- Olha analfabeto, para escrever bem, é preciso estar disposto a pagar o preço...
-- Que preço? -- perguntei curioso. Mais tarde dei graças a Deus de ser apenas um palhaço imbecil e analfabeto, com pretensões de biografo!
Ele sorriu, mas era um sorriso trocista, quase insultuoso e concluiu antes de adormecer:
-- O preço é estar disposto a suportar todas as dores do mundo...

09 dezembro 2003

Doce Irmã Alma


O avô fazia 90 anos, era um velho lúcido, com uma clareza de espírito invejável, e parecia feliz, eu era o seu bisneto e aos 20 anos, achei que me devia aproveitar da sua experiência e como ele estava bem disposto, decidi perguntar-lhe:
-- Avô... Qual é o seu segredo?
Ele olhou-me com doçura e respondeu:
-- Qual deles, meu filho?
Sorri-lhe.
-- Sim, deves ter muitos avô. Mas só queria saber, o teu segredo de estar feliz, de bem com a vida.
Ele sorriu-me e recostou-se na sua cadeira de baloiço, e perguntou com uma firmeza de voz, que me fez ter um arrepio:
-- Tens paciência pra escutar um pobre velho?
-- Tenho avô. E não penso que seja pobre, tem uma rica experiência de vida! E quanto a velho, isso é apenas uma questão de tempo.
Ele sorriu-me afectuoso, quase grato e começou a contar o seu segredo:
-- O meu segredo então?... Acho que foi a descoberta do amor. Do amor mais despojado, mais intenso, mais arrebatador que já vivi... amor divino!
Fiquei preso na expectativa da revelação. Via no brilhar dos seus olhos agora meio-baços da idade que havia fogo nas palavras. E ele continuou:
-- Sabes, não conheci os meus pais. Sou orfão, não sei bem se por acidente, se por vontade. Nunca me disseram e fizeram bem. Cresci sem essa agonia pelo menos. Desde novo, fui recolhido num orfanato, e conheci muitas pessoas, umas boas, outras más...
Ás vezes parava para tomar fôlego, como se estivesse ofegante de contar o seu segredo, antes que a morte viesse sorrateira apagá-lo de todas as memórias.
-- Como calculas, quem vive num orfanato, não pode dizer verdadeiramente que foi amado. Há sempre uma falha uma carência qualquer... Eu era bom aluno, aprendia bem! Talvez fosse porque isso me trouxesse um carinho adicional, não sei... Talvez fizesse com que outros gostassem de mim...
Deu um suspiro, que na altura não compreendi.
-- Devia ter os meus 16 anos, ou talvez 17... Sabes... Ela era a freira mais doce, de rosto mais belo e angelical que alguma vez vi... Apaixonei-me! Apaixonei-me loucamente... Mas nunca o confessei abertamente a ninguém. Escrevi-lhe poesias românticas que guardava escondidas na minha Bíblia...
Ele entrecortava a narração com sorrisos e olhares no vazio. Percebi que a recordação lhe trazia lembranças agradáveis e não interrompi.
-- Queriam que eu fosse padre... E sentia-me tentado a sê-lo. Servir a Deus! A minha amada fazia o mesmo, e com quanta abnegação e desvelo. Quando estavamos doentes, ou tristes, ela sempre tinha um sorriso, uma festa, um carinho para nós. Ela é um anjo, daqueles que Nosso Senhor ás vezes deixa vir á Terra apenas para tornar as nossas vidas menos fúteis...
Parou e olhou pra as suas próprias m6atilde;os no regaço, e vi-lhe uma lágrima. Ía para dizer alguma coisa, mas ele limpou a lágrima com as costas da mão e continuou:
-- Um dia, parti os braços quando caí de uma escada... Andava a pintar os muros do orfanato e nem sei como... catrapumba! Acho que foi o bom Deus, na sua extrema bondade...
Nunca consegui perceber como alguém pode achar Deus na desgraça, mas o avô estava prestes a ajudar-me a perceber.
-- Fiquei na enfermaria... E quem tive a ventura de ficar de serviço nesse domigo maravilhoso? A irmã Alma! Eu tava na cama sózinho, naquele domingo houve uma excursão, e a irmã Alma ofereceu-se pra ficar comigo. Depois pegou na minha Bíblia, não a pude impedir! E ela... encontrou os meus poemas para ela! Vi-a ler, elogiar os meus poemas... Até declamou alguns na sua voz doce, como a voz dos anjos...E depois ela percebeu... Que todos aqules poemas magníficos, como ela disse... eram todos para ela!
Fez uma pausa longa, num sorriso enorme que percebi era de saudade, apenas saudade... ou talvez mais alguma coisa, mas nem me atrevi a respirar, com medo que se calasse.
-- E sabes o que ela fez? Eu não pude fazer nada... Ela despiu-se... Tinha o corpo mais lindo que eu já vi em toda a minha vida!
Os olhos cintilavam-lhe como duas estrelas. E continuou como se tivesse rejuvenescido:
-- Depois tirou a roupa de cima de mim... Sim, não fiques chocado, mas fizemos amor durante o resto do dia... Foi a melhor coisa que me aconteceu em toda a minha vida! Descobri o amor em toda a sua plenutide! Na entrega mais volutariosa, mais despojada de todas! A irmã Alma fez-me acreditar que Deus existe e que se importa realmente connosco!
Falava de uma maneira exaltada, com entusiasmo, até tive medo que lhe desse um ataque, mas depois ele serenou.
-- Nunca mais a vi... Sei que ela foi destacada para outra missão. E sei que Deus na sua justiça lhe deu o melhor lugar que há no céu. Porque ela merece inteiramente esse lugar. A doce irmã Alma...
E dizendo estas palavras, o seu olhar ficou parado olhando o céu.

O Mestre


sobre amores, desamores, vontades e á vontade...
O Mestre desaparecera. Imaginámos que bandos rivais o tivessem raptado, invejosos da sua sabedoria e que estariam agora a torturá-lo num qualquer pardieiro abandonado. Mas depois de algumas diligências e de cobrar favores consegui descobrir o paradeiro do Mestre. Estava numa praia, e era má época, pois estavamos no Inverno, mas decidi ir ter com ele. Estava receoso, mas ele ao ver-me sorriu e convidou-me a dar uma volta na praia. Estava um vento terrível e apesar da roupa a areia batia nas pernas como canivetes. O Mestre parecia divertir-se com aquilo.
-- Sim, adoro o vento, o cheiro a maresia e esta dor finíssima, aguda, nas pernas!
Pensei que o nosso Mestre endoidara, mas com ele era sempre de esperar revelações abruptas. Por isso decidi puxar por ele:
-- Mestre, alguma razão para vires para aqui?
-- Há.
-- Qual?
-- O medo.
Nunca me apercebera que o Mestre tivesse medo fosse do que fosse.
-- Como assim, Mestre?
O Mestre deu uma gargalhada que rivalizou com a rebentação das ondas, e quase fui tentado a dizer que endoidara mesmo. Mas ele continuou:
-- Todos fugimos da dor. Temos medo de sentir dor. É instintivo! Mas será que queremos ficar-nos pelo instinto? E fugir de alguma coisa acaso é solução? Esta dor fina nas pernas é uma bênção. Não sentes?
-- Não, Mestre... -- disse de repente sem pensar. Achava aquele vento que levantava a areia e ma atirava como chicotes ás pernas através da roupa, era mais uma espécie de tortura. Será que o Mestre sofria de dem6ecirc;ncia senil?
-- Pois... Percebo que para ti seja difícil entender. Não estás preparado. Mas talvez entendas se eu te disser de outra forma: Porque é que quando sofremos um desgosto de amor, ainda assim não dizemos mal do amor, mas procuramos nova tentativa, ou pelo menos ansiamos que da próxima seja diferente, tenhamos sorte?
-- Não sei Mestre.
-- Porque a dor que vem do desamor é boa! Recorda-nos que estamos vivos! Só a dor é real!
-- Como assim?
-- Os anglo-saxões são lutadores. Eles afirmam na sua filosofia de vida o poder soberano da vontade, são sobreviventes! Procuram ignorar a dor quando ela vem e julgam que isso lhe traz vantagem! Por isso são 'frios' quase insensíveis e as suas relações amorosas frágeis e menos intensas. E quando são intensas, são doentias. Mas só a dor é real!
Não conseguia acompanhar o Mestre, mas ele parecia entusiasmado e deixei-o continuar.
-- Os amores, os desamores, tudo isso apenas trás dor! Mesmo quando encontramos alguém que amamos muito e nos correponde, vem a dor do medo de a perder! Quando amamos quem não corresponde, fica a dor de não ser correspondido. Mas afinal o que permanece? O que é constante? O que atravessa a nossa vida de uma ponta á outra? A dor! A dor é a essência da vida!
O Mestre olhou para mim, e deve ter visto o espanto estampado na minha face, por isso quase concluiu:
-- Essa é a revelação da areia a bater-te nas pernas!
Pensei que sim, talvez fosse, sim agora percebia! Sabia bem sim, aquela dorzinha aguda nas pernas, como alfinetadas, eram a prova de que eu estava vivo!
Sorri para o Mestre, podia aprender, agora estava á vontade.

05 dezembro 2003

Theo Logias


O império atravessava dias negros, e o Imperador receoso de que o cosmos desmorona-se procurava conselhos em todos os pontos da galáxia! Foi assim que ouvimos falar de Theo Logias, um homem que vivia numa velha estação espacial, convertida num rádio-farol junto á cintura de asteróides do Sistema Solar XV24. Era um local perigoso e raramente alguém ía até lá. Também não se pusera um rádio-farol ali apenas para decorar!
Corria a fama de que Theo Logias falava com o Deus Criador, o que tivera a ideia do Universo e por conseguinte nos originara a todos. O Imperador pensou que para os tempos negros que se atravessavam era um recurso que não se podia desperdiçar. Ordenou que o trouxessem, se o homem quisesse vir, porque queria saber o que devia fazer para evitar que tudo caísse nas trevas. O General Vladimir foi com as suas naves, e não voltou. Soubemos que se despedaçara num dos muitos asteróides á volta da estação espacial. Depois foi o Embaixador Ritto, também não voltou, um asteróide do tamanho de um punho bateu num dos depósitos de oxigénio e este explodiu. Diziam que tinham sido insolentes com Theo Logias, e que Deus os castigara. Não me admirava que tivessem sido insolentes, mas não acreditava que Deus os tivesse matado.
Ofereci-me para ir, e o Imperador dispensou-me das minhas funções no palácio.
O Sistema Solar XV24 fica longe de tudo e era um um sistema solar sem graça, como se fosse uma coisa simples e discreta no meio do cosmos, sem chamar á atenção. Pareceu-lhe adequado que assim fosse. Pediu permissão para aportar na estação espacial, onde estava instalado o rádio-farol.
-- Para que quer aportar? -- perguntaram de lá.
-- Pretendo falar com o Sr. Theo Logias.
-- E quem pretende falar com ele?
-- Um homem, apenas um homem...
Houve um longo silêncio, e depois a voz no rádio disse:
-- Muito bem, pode aportar. Porto Z01... e tenha cuidado com os malditos asteróides! É que nas operações de aportagem não podemos ligar os lasers para os destruir, estão por vossa conta!
-- Ok! Obrigado.
Chegámos até ao Porto Z01 naquelas estação espacial de 300kms de comprimento. Era um mundo em miniatura, e devia ter não mais de 2 milhões de habitantes. Era uma espécie de comunidade, há semelhança dos antigos mosteiros na Terra. Só que aqui vivam ambos os sexos. Diziam todos que o seu mentor era Theo Logias, mas nunca o tinham feito líder de coisa nenhuma. Teoricamente o Sistema Solar XV24 era súbdito do Imperador, mas ali, naquele longínquo lugar do espaço, o Sistema Solar era uma comunidade autónoma. Muito autónoma, sem governador ou comandante.
Um responsável do porto aproximou-se dele:
-- Bem-vindo!
-- Obrigado. Gostava de falar com o Sr. Theo Logias, seria possível?
O homem riu-se e encaminhou-o:
-- Ao menos o Sr, não exige falar com Theo Logias! Pergunta se é possível... Muito bem. O que faz?
-- Eu? Procuro o meu lugar no mundo... Mas no entretanto, trabalho para o Imperador...
O homem sorriu:
-- Não há muita gente á procura do seu lugar no mundo, acham que já têm um lugar e acomodam-se. Seja quem for Senhor, gosto da sua atitude e desejo que encontre o seu lugar.
-- Obrigado.
Tínhamos avançado até um pequeno veículo onde fui convidado a entrar, e onde ao fim de cerca de 15 minutos parámos no que me pareceu uma área residencial.
-- Theo Logias espera-o. Bata nessa porta... -- disse apontando uma porta de madeira. E foi-se embora.
Ficou a olhar a porta, há quanto tempo não via uma porta de madeira. Gostou daquela porta e bateu, como o homem dissera e ao bater a porta abriu-se... Estivera sempre aberta. Lá dentro havia uma luz suave, e havia um cheiro agradável, familiar, mas que não conseguiu definir muito bem.
Um homem desenvolto de cabelos brancos bem aparados sorria-lhe sentado a uma mesa simples.
-- Entre, não tenha receio. Sou Theo Logias e o Sr?
-- Obrigado por me receber, espero não incomodar...
-- Ora, uma visita nunca é um incómodo é um prazer!
-- Não sei bem se a minha presença deva ser encarada como uma visita...
-- Sim, eu sei, o Imperador mandou-o.
-- Não Sr. Theo, eu ofereci-me para vir.
-- Ainda não me disse o seu nome...
Fiquei pensativo, se o meu nome teria importância, se eu faria alguma diferença no caldeirão gigantesco do Universo.
-- Abakuk. Mas o meu nome não tem importância. Se calhar nenhum de nós tem importância...
Theo Logias sorriu-me:
-- De facto o Imperador mandou o homem certo!
-- Já lhe disse que o Imperador não me mandou, fui eu que me ofereci.
-- Mesmo assim. Sabe por que morreram os outros que vieram antes de si?
-- Há quem diga que Deus os matou, porque foram insolentes consigo.
O homem deu uma gargalhada e perguntou:
-- E o que acha Abakuk?
-- Acho que Deus teria muita gente para matar, se quisesse acabar com a insolência.
O homem sorriu e disse:
-- Tem razão amigo, tem razão. Não, não foi Deus quem os matou. Foram eles que na sua arrogância se mataram. Excesso de confiança! Aqui em XV24 isso é quase sempre mortal. Os asteróides não perdoam! Não foi por nada que puseram aqui o rádio-farol. Os que vieram antes de si, estavam cheios de pressa. Exigentes, arrogantes. Foi pena...
-- Talvez estivessem apenas com pressa... -- arrisquei.
-- Não amigo Abakuk. Queriam que eu lhes desse uma reputação. Que fizesse deles uns heróis aos olhos de alguém. Você não veio por isso.
-- Pois não...
-- Porque veio amigo Abakuk?
-- Dizem que fala com Deus...
-- Sim, e quer que eu fale com Ele, por si?
Baixei a cabeça, e depois olhei-o nos olhos:
-- Por mim? Não sou assim tão importante Sr. Theo, mas gostaria de descobrir se há um sentido nas coisas percebe? Se a vida tem sentido, se não é apenas um desperdício, um acaso, um acontecimento fortuito, como o nascer e morrer das estrelas, como se fosse um produto secundário, tal como os planetas...
-- Compreendo... E o que lhe parece?
-- Eu gosto de viver. Mesmo que o Império se torne cada vez mais negro, acho que viver ainda vale a pena. Preferia que fosse melhor, que fosse diferente, mas...
-- Quere saber o que optar, que caminho seguir, que escolhas, não é?
-- Acho que é isso, sim. Mas estou disposto a considerar outras coisas...
-- Incluindo a resposta para o Imperador?
-- Também isso, sim.
-- Apesar de tudo amigo, no fim o que conta mesmo são as nossas opções. Eu limito-me a transmitir o que Deus me transmite, não sou eu o originador da mensagem. Deus diz-nos as coisas e depois deixa que façamos as nossas opções, mesmo quando nos diz o que devíamos fazer, entende?
-- Creio que entendo...
-- Mas uma coisa é certa, Deus sempre acaba conseguindo o seu objectivo. Não há que ter medo, apenas confiar. Confia Nele?
Sorri:
-- Isso significa confiar em si, não é?
-- Um pouco. Mas posso dar-lhe um selo de garantia, de que o que digo vem Dele.
-- Como?
-- Digo-lhe que depois de lhe dizer a mensagem que deve transmitir de viva voz ao Imperador, passará a cintura de asteróides sem que mal nenhum lhe aconteça. É suficiente?
Sorri de novo:
-- Pelo menos garante-me que saio daqui com vida ao contrário dos outros. Mas também a minha vida não é o importante...
-- Tem razão. Mas ás vezes dizemos as coisas, sem percebermos bem a amplitude do que dizemos.
Estava a demorar ali. A conversa parecia não levar a lado nenhum, apenas andavamos em círculos e continuava sem nenhuma resposta. Talvez me tivesse enganado...
-- Podeis dizer-me a mensagem que devo transmitir ao Imperador?
-- Claro! A mensagem é esta e terá que ser você a dizê-la de viva voz, em plena sala do trono, perante todos...
Sentiu medo, sem perceber bem ainda porquê. E Theo Logias repetia:
-- "Abdica do trono em meu favor! É a única maneira de salvares o Império e a tua vida."
Um arrepio gelado percorreu todo o seu corpo.
-- Percebeste? -- perguntou Theo Logias segurando-lhe na mão.
-- Percebi... -- murmurei.
-- Agora vai...E confia!
Não se lembrava de como saíra da estação espacial, mas diziam os seus homens que os asteróides pareciam fugir á sua passagem. Na nave principal em que agora regressavam, pensava nas suas opções.
O Universo era um malho gigantesco a bater na sua cabeça.

04 dezembro 2003

Sem que o vento sopre a ferida


ave voando
Peguei no livro ao caso e desfolhei as páginas. Mas não me apeteceu ler e olhei o mar que se tingia de dourado num pôr-de-sol magnífico. Magoava-me mas não consegui deixar de olhar. Magoava-me a tua ausência, e de não poder partilhar a beleza do mundo contigo. Estavas distante, na distância que nos separava e também na situação. Agora eu estava livre e tu não.
Como sarar a dor que se me abria no peito? Essa ferida uqe latejava, toda ela feita da tua ausência? Como poderia resistir? Tudo o que era belo no mundo trazia a tua recordação, e a tristeza lembrava-me o teu consolo! A vida tinha destas coisas, de se transformar num inferno, quando o único pecado era amar!
Fui passear pela praia e deixei o livro no banco do passageiro... No que te pertencia por direito, e também ele me lembrava que estavas ausente. Era um espaço vazio com reserva, como as mesas dos restaurantes com marcação. Até essas coisas simples, como comer, me lembravam de ti, do teu prato preferido, do teu jeito de pegar no talher ou saborear algo. Quem dera que eu pudesse ser o teu sangue, e que eu circulasse nas tuas veias... Decidi andar pela praia, e logo que pus lá os pés, lembrei-me do teu corpo...
Deixei as pegadas na praia deserta, na esperança que as seguisses. Olhei o mar violento e espumante, com uma força que senti de raiva, de raiva por não estares! Ou talvez fosse ele a minha voz a clamar por ti.
Deixei que o vento soprasse no meu rosto, tanto quanto quisesse, e nem ele na sua boa vontade conseguiu soprar a ferida...

03 dezembro 2003

LOVE REMOVAL MACHINE


ave voando
Entrevista com o grande inventor Prof. Nero

-- Caro Prof. Nero é uma honra tê-lo de novo entre nós! Depois do sucesso que teve o seu ORGASMOTRON, quer falar-nos desta sua nova máquina? O nome parece-me estranho...
-- Para mim é igualmente um prazer falar-vos desta nova invenção...
-- Parece-me muito radical, essa máquina tira o amor de nós Prof?
-- Não amigo, não é tão radical assim! Seria traumático e doloroso que fossemos privados desse sentimento tão básico e tão necessário. Já há amor de menos para que o objectivo das nossas pesquisas fosse uma máquina que ainda o diminuisse mais! Nada disso...
-- Então Prof? O que faz a sua L.R.M.?
-- Pelos nossos estudos chegamos à conclusão que o suicídio juvenil resulta muitas vezes de desgostos de amor! Ora é um drama que em idades tão tenras, se abdique de viver só aos primeiros e rudes golpes do amor!
-- Então a sua máquina Prof, combate esse flagelo! Como?
-- Pois, o ORGASMOTRON, mostrou-nos como desenhar máquinas que geram emoções, perseguindo essa via, inventamos uma que faz precisamente o inverso! Esta máquina retira da nossa memória a dor do desgosto de amor, deixando apenas uma melancolia residual. Digamos que não atenua, apenas amortece essa dor, transportando a experiência dolorosa, apenas numa experiência suportávelmente dolorosa...
-- Quer dizer que se eu apanhar um tampo daqueles, vou à sua máquina e limpo o 'cadastro' Prof?
-- Basicamente podemos dizer que sim...
-- Mas o Prof, acredita que as pessoas terão coragem de usar a máquina? Afinal quando estamos doridos, nem nos lembramos de recorrer a nada!
-- Bom, isso depende um pouco da forma como nos prepararmos de antemão. Mas pense na máquina apenas nessa perpectiva... Se pensar bem esta máquina dará um novo alento a todos aqueles que de tão traumatizados, fogem instintivamente do amor, têm medo que este os possa magoar e fecham-se, não mais arriscam partir na sua busca pela felicidade. E condenam-se a mais das vezes a vidas tristes e cinzentas. Com esta máquina podem partir de novo, aventurar-se à descoberta do amor...
-- Mas correm o risco de se magoarem outra vez Prof...
-- De certo que sim, a vida é mesmo assim, mas agora podem partir seguros de que o dano não será permanente...
-- Mas se squecem a dor, podem estar condenados a multiplicarem-na Prof.!
-- Não! A máquina não provoca esquecimento! Apenas atenua a dor, para um nível psicologicamente suportável, o que servirá de aprendizagem também.
-- Professor, tenho de lhe declarar a minha admiração pelo seu trabalho! Sabendo como há individuos que gastam tão inutilmente as suas células cinzentas! O Prof. tem-nos maravilhado com máquinas que primam pela utilidade. Em meu nome caro Prof, queira aceitar os meus mais sinceros agradecimentos!
-- Ora eu é que agradeço a sua disponibilidade em divulgar os meus inventos...

02 dezembro 2003

Velhice


Foi só quando bateu com a cabeça na viga, tarde demais, que compreendeu que as coisas não estavam iguais! Sim agora dava conta de distrações bacocas a meterem-se de permeio e a dar-lhe cabo da vida, naquele caso da careca, agora com um bruto lenho.
ave voandoPraguejou o tempo devido para fazer efeito e sentir-se em condições de chamara mulher que como é típico das mulheres se mostrou preocupada.
-- Mas tens aí um lenho!
-- Isso sei eu carago! -- Eram ainda os restos do praguejar. -- Vê mas é se me desinfectas isto.
Lá foi a mulher pressurosa encontrar a água oxigenada, que para seu mal também se fez difícil, e só apareceu depois de alguma luta.
De facto notava que a vida não corria com a mesma ligeireza de antigamente, e sentiu-se incomodado com o facto. Não sabia se havia de culpar os tempos, que o desatinavam, ou o seu próprio tempo! Possivelmente era as duas coisas, numa conclusão de consenso.
Mas a realidade, é que os anos começavam a querer cobrar o seu tributo. Sentia um amargo de boca, agora que começava a compreender melhor o seu próximo, a ganhar enfim, alguma sabedoria, é que a vida decidia brincar com ele! Não havia muito a fazer...
A mulher desinfectou-lhe a cabeça, agora tinha uma cicatriz de guerra! Subira ao sotão para examinar donde viriam as manchas de humidade no corredor, e tivera dois azares: O primeiro uma fuga numa das emendas dos tubos de água, a segunda uma bela cabeçada na viga. Se o primeiro azar era uma contingência de ter casa, o segundo devia-se certamente a si próprio e às suas faculdades nitidamente em perda.
Via-se como os reformados da terra, à procura do banco de jardim mais soalheiro, um boné enfiado na careca e conversas da treta. Recitando conquistas heróicas de tempos passados, ou dizendo que 'Dantes é que era bom!' Quando a memória já esqueceu tanto, que possivelmente só fica o que foi bom, nessa arte que o nosso corpo tem de ser mais inteligente do que nós.
Era velhice!

01 dezembro 2003

Droga


Escrevia como outros bebiam, ou fornicavam. era uma droga. Um escape do labirinto interior que se atafulha com vivências sentidas de todos os modos errados. Como um rato no labirinto tentando aprender o caminho da saí­da. A única forma de sair deste, é deitado com os pés juntos.
Procurando nas suas memórias os sentimentos, cristalizava-os em palavras com nenhum sentido, ou com todos, tudo dependia da ressaca. Descobria que a sua intelectualidade provinha do seu amor pela dor, por isso era negra a sua escrita, mais negra do que os caracteres que se alinhavam disciplinados na tela em branco. Era uma escrita de amargura, tão dolorosa quanto uma prostituição forçada, por causa do ví­cio da droga. A sua droga era tão abjecta quanto todass demais podem ser. Era uma violação de si mesmo, um rasgar em dor, uma dor que por ser tudo o que achava que tinha, se tornara num hábito masoquista.
Como se houvesse prazer no sofrer, como se o misticismo da vida se transubstanciasse naquela dor da escrita em puro prazer. Era um trapo, um resto dos seus restos, que ainda respirava, arfando em palavras de vento.
Parecia-lhe outra vez sem sentido, como se a vida fosse uma mera futilidade. E achava que todos estavam igualmente condenados!
Não havia qualquer saí­da. Era um bêbado de vida, e vivia para esquecer o que a vida era, nessa agonia de se enfrentar a si mesmo todos os dias, e não gostar do que via!
Para onde rumar? Que outro 'eu' construir, senão sabia como tinha chegado ali, ou ainda mais importante, não sabia como escapar do labirinto, onde como o rato o deixaram à procura da saí­da. Talvez um rato tivesse ainda mais sentido do que ele. Escrever era por isso o único sentido que lhe restava, como o naufrago que na ilha deserta lança mensagens ao mar, na esperança de um dia...
E os dias passavam iguais ou piores, e a cada um que passava, escrever-lhe custava-lhe cada vez mais. A droga precisava aumentar de dose, ou descobrir outra mais forte!
Seule- Touluse Lautrec
Mas que outra haveria, para além da dor? A dor redimia-o de todas as asneiras, de todas as futilidades, eram como o castigo que paga a dí­vida! Mas como pagar a dí­vida de viver? Que castigo seria suficiente?
Tentou escrever mais um pouco... E nada saí­a, como se o tormento devesse refinar-se.
Tinha inveja dos que caiem de bêbados julgando que estão de pé, ou dos que têm sorte e afogam as angústias entre as pernas profiláticas de uma mulher terapeutica!

Nada de nada


abstracto azul
Enrugava-se a barba, quando falava de quase nada. Era a beira-do-mar salgado sem água nenhuma, nem peixes. Era um deserto salgado, onde as vacas lambiam o chão. Era um mundo em lugar nenhum, sem sentido, a não ser o de existir. A palavra mais ouvida ali era o silêncio do ranger dos portais que se abriam para lugar nenhum, num vazio que só a imaginação podia preencher. Onde se arrastavam as sombras dos que já não existiam, como se de mera impressões se tratasse. Figuras de luz, na ausencia dela, entre espaço-tempo que existia apenas na dimensão dos sonhos.
Era como escrever sobre coisa nenhuma, dando a impressão de escrever sobre alguma coisa.