Doce Irmã Alma
O avô fazia 90 anos, era um velho lúcido, com uma clareza de espírito invejável, e parecia feliz, eu era o seu bisneto e aos 20 anos, achei que me devia aproveitar da sua experiência e como ele estava bem disposto, decidi perguntar-lhe:
-- Avô... Qual é o seu segredo?
Ele olhou-me com doçura e respondeu:
-- Qual deles, meu filho?
Sorri-lhe.
-- Sim, deves ter muitos avô. Mas só queria saber, o teu segredo de estar feliz, de bem com a vida.
Ele sorriu-me e recostou-se na sua cadeira de baloiço, e perguntou com uma firmeza de voz, que me fez ter um arrepio:
-- Tens paciência pra escutar um pobre velho?
-- Tenho avô. E não penso que seja pobre, tem uma rica experiência de vida! E quanto a velho, isso é apenas uma questão de tempo.
Ele sorriu-me afectuoso, quase grato e começou a contar o seu segredo:
-- O meu segredo então?... Acho que foi a descoberta do amor. Do amor mais despojado, mais intenso, mais arrebatador que já vivi... amor divino!
Fiquei preso na expectativa da revelação. Via no brilhar dos seus olhos agora meio-baços da idade que havia fogo nas palavras. E ele continuou:
-- Sabes, não conheci os meus pais. Sou orfão, não sei bem se por acidente, se por vontade. Nunca me disseram e fizeram bem. Cresci sem essa agonia pelo menos. Desde novo, fui recolhido num orfanato, e conheci muitas pessoas, umas boas, outras más...
Ás vezes parava para tomar fôlego, como se estivesse ofegante de contar o seu segredo, antes que a morte viesse sorrateira apagá-lo de todas as memórias.
-- Como calculas, quem vive num orfanato, não pode dizer verdadeiramente que foi amado. Há sempre uma falha uma carência qualquer... Eu era bom aluno, aprendia bem! Talvez fosse porque isso me trouxesse um carinho adicional, não sei... Talvez fizesse com que outros gostassem de mim...
Deu um suspiro, que na altura não compreendi.
-- Devia ter os meus 16 anos, ou talvez 17... Sabes... Ela era a freira mais doce, de rosto mais belo e angelical que alguma vez vi... Apaixonei-me! Apaixonei-me loucamente... Mas nunca o confessei abertamente a ninguém. Escrevi-lhe poesias românticas que guardava escondidas na minha Bíblia...
Ele entrecortava a narração com sorrisos e olhares no vazio. Percebi que a recordação lhe trazia lembranças agradáveis e não interrompi.
-- Queriam que eu fosse padre... E sentia-me tentado a sê-lo. Servir a Deus! A minha amada fazia o mesmo, e com quanta abnegação e desvelo. Quando estavamos doentes, ou tristes, ela sempre tinha um sorriso, uma festa, um carinho para nós. Ela é um anjo, daqueles que Nosso Senhor ás vezes deixa vir á Terra apenas para tornar as nossas vidas menos fúteis...
Parou e olhou pra as suas próprias m6atilde;os no regaço, e vi-lhe uma lágrima. Ía para dizer alguma coisa, mas ele limpou a lágrima com as costas da mão e continuou:
-- Um dia, parti os braços quando caí de uma escada... Andava a pintar os muros do orfanato e nem sei como... catrapumba! Acho que foi o bom Deus, na sua extrema bondade...
Nunca consegui perceber como alguém pode achar Deus na desgraça, mas o avô estava prestes a ajudar-me a perceber.
-- Fiquei na enfermaria... E quem tive a ventura de ficar de serviço nesse domigo maravilhoso? A irmã Alma! Eu tava na cama sózinho, naquele domingo houve uma excursão, e a irmã Alma ofereceu-se pra ficar comigo. Depois pegou na minha Bíblia, não a pude impedir! E ela... encontrou os meus poemas para ela! Vi-a ler, elogiar os meus poemas... Até declamou alguns na sua voz doce, como a voz dos anjos...E depois ela percebeu... Que todos aqules poemas magníficos, como ela disse... eram todos para ela!
Fez uma pausa longa, num sorriso enorme que percebi era de saudade, apenas saudade... ou talvez mais alguma coisa, mas nem me atrevi a respirar, com medo que se calasse.
-- E sabes o que ela fez? Eu não pude fazer nada... Ela despiu-se... Tinha o corpo mais lindo que eu já vi em toda a minha vida!
Os olhos cintilavam-lhe como duas estrelas. E continuou como se tivesse rejuvenescido:
-- Depois tirou a roupa de cima de mim... Sim, não fiques chocado, mas fizemos amor durante o resto do dia... Foi a melhor coisa que me aconteceu em toda a minha vida! Descobri o amor em toda a sua plenutide! Na entrega mais volutariosa, mais despojada de todas! A irmã Alma fez-me acreditar que Deus existe e que se importa realmente connosco!
Falava de uma maneira exaltada, com entusiasmo, até tive medo que lhe desse um ataque, mas depois ele serenou.
-- Nunca mais a vi... Sei que ela foi destacada para outra missão. E sei que Deus na sua justiça lhe deu o melhor lugar que há no céu. Porque ela merece inteiramente esse lugar. A doce irmã Alma...
E dizendo estas palavras, o seu olhar ficou parado olhando o céu.