08 dezembro 2004

Perdoem-me


Já não me lembro de ti muito bem. Quer dizer que estás a morrer. As memórias de ti começam a ser qualquer coisa indistinta, uma névoa. Lamento. Porque te amei, como nunca amei mais ninguém. É triste quando morre a pessoa que amamos, mesmo que seja só nas nossas memórias.
Esquecer é apenas uma das características de ser moribundo. Talvez não sejas tu que morres quando te esqueço, mas eu que morro, porque sou eu que esqueço. Gostava tanto de ser eterno!
A vida são memórias, coisas frágeis. A nossa vida é o quê?
E quando dizemos que amamos, a que nos referimos efectivamente? Às memórias a que queremos ser fiéis? Trair é então não dar valor às memórias que temos? Menosprezá-las? E sendo as memórias a nossa vida, ao trair, menosprezamos a vida?
Meu Deus! É tão frágil ser humano!
E adulterar memórias? Conferir-lhes um sabor doce ou amargo? É trair também?
Perdoem-me a vontade de adoçar todas as memórias... Mas já nem sei bem o que recordo! Se a minha memória se a cópia que fiz delas, com os retoques necessários. Às vezes fico confuso... Penso que lembro uma coisa, e o que lembro não encaixa com as memórias dos outros, às vezes nem com as outras memórias que tenho. Talvez, à custa de procurar, de recordar, eu as tenha alterado em cada recordação. Necessito delas quando escrevo. Perdoem-me que me confunda em todas as palavras... Sou um mero viajante e andei muitos milhares de quilómetros. É natural que na velhice confunda os lugares e as pessoas. Que na ausência de memórias as invente e por isso julgue que sou uma pessoa, e talvez não seja. Seja apenas uma amálgama, uma baralhada de memórias em atropelo.
Perdoem-me a minha vida ser uma colagem!
Mas esta vida é mesmo a minha, metade inventada, metade por inventar. E até aí há transgressão! Quem inventa memórias cria a sua vida! É um criador a usurpar o Grande de a fazer. Somos nós a tomarmos iniciativas, decisões por conta própria. E depois, não criamos nada é apenas uma fantasia.
É tão frágil ser.
As coisas não são o que parecem, são antes as coisas que julgamos parecerem. E não me importo nada com isso. Porque tudo é mentira!
Perdoem-me que minta!

27 outubro 2004

O Conservador


Livros! São eles a razão da minha existência. Neles resiste a lembrança, permanece a memória de coisas feitas. Não guardo livros. Não sou bibliotecário. Conservo livros. Livros sobre o que é tangível nas nossas curtas vidas.
Os grandes feitos da história são momentos pontuais e sempre sujeitos a interpretações diversas. Os pequenos factos, são isso mesmo: Factos! Como pequenos tijolos que fazem a parede toda.
Eu guardo os pequenos factos da história de um povo. Aquilo que se torna a pátria transmitida de avós para os netos e mais além.
Nos livros que guardo estão implícitas as crises pessoais e nacionais. Os sacrifícios de um ou de vários.
Dramas pessoais, de quando por exemplo a doença era grave e na ausência de Sistema de Saúde ou de Assistência Social era com património que se combatia o mal. Não era menos combate que uma batalha travada por heróis, mas era também a pátria que estava em jogo, passando de mãos.
Tenho diante de mim nomes dos que hipotecaram prédios, alguns por mais de uma vez e fico pensando no esforço e nos dramas por trás destes registos. Seriam dívidas de jogo? Negócios que correram mal? Doença? Talvez as garras do alcoolismo a estender as suas mãos devoradoras. Fome devido à guerra? Crises económicas severas que obrigavam a largar mão do que tinha não apenas valor patrimonial mas emocional, herança dos antigos? Não sei! Apenas posso supor.
Nas transmissões de pais para filhos, alguns menores, vejo a leveza de existir e ao meso tempo essa aposta na continuidade da vida ou do nome da família. E nota-se às vezes a generosidade expressa em favor dos desfavorecidos, quando orfãos herdavam um pedaço de terra. E talvez estejam aqui também as desavenças nas partilhas, agora resolvidas a bem ou a mal.
Estão também aqui presentes os que partiram para outras terras sob a forma de um registo na ausência, ou a favor de alguém em parte incerta! Terá ido para o Brasil e sabe Deus onde estará agora, ou se alguma vez regressou, ou soube que tinha um quinhão neste canto à beira mar plantado.
Penso nisso, nas histórias por trás destes registos tão formais. Convenço-me de que a única coisa que permanece é o pó. O pó que ora cobre os livros, ora somos nós em forma de gente, por um tempo.
Não, também não sou historiador, nem estou na Torre do Tombo. Tenho uma torre só para mim.
Sou Conservador do Registo Predial.

09 outubro 2004

Chegou a minha hora!


-- Doutor, eu pressinto a morte!
-- Como assim?
Era um dos pacientes mais estranhos que tivera. Dizia ter premonições, saber quando uma pessoa ía morrer. Eu achava que ele tinha um problema em lidar com a morte, e aquela era apenas uma forma da sua psique lidar com a consciência da morte.
-- Sei quando uma pessoa vai morrer Dr.!
-- Já me contou isso várias vezes, mas repare, a morte é uma certeza tão grande que pode tratar-se apenas de coincidências, ou no extremo dos casos uma hipersensibilidade...
-- Não Dr, naõ é nada dessas tretas! Juro-lhe!
-- Ok. Eu acredito em si. Mas diga-me, como isso o afecta?
-- Não sei o que fazer Dr.! Devo avisar a pessoa ou não? Que raio de coisa devo fazer?
-- Não faça nada. Haja como se não tivesse esse poder.
O paciente riu-se.
-- Dr. todos nós temos o nosso dom! O do bom Dr é esse de lidar com pessoas que sofrem dos miolos como eu.
-- Tenha calma. Mas o que quer dizer com isso?
-- Sei lá o que quero dizer! Raios me partama, mais as suas malditas perguntas! Até parece que eu é que tenho o dom de resolver a coisa! Dr. meta na cabeça que eu não pedi este poder. Raios!
-- Ok, ok eu entendo isso...
-- Não entende nada Dr! Não percebe patavina do que se passa comigo, mas aprecio o esforço de me tentar ajudar a lidar com isto, mesmo na sua ignorância. Mas vamos pensar num situação hipotética, podemos?
-- Porque não?
-- Raios Dr, tá sempre a fazer perguntas! Será que não é capaz de dar uma resposta, sem ser na forma de uma perguntar?
Ele sentou-se na borda do sofáe pôs os cotovelos nos joelhos e olhou-me no olhos.
-- Vamos supor que eu sei que a próxima morte é o Dr. Gostava que eu lhe dissesse?
Parei a pensar, olhando para ele. Era óbvio que se tratava de uma manipulação. Qualquer resposta que lhe desse ir-me-ía envolver na sua fantasia. Mas não responder era negar acreditar nele e portanto quebrar a relação de confiança mútua. Via-me numa situação difícil.
-- Está muito pensativo Dr. Eu facilito-lhe a resposta! Iria querer saber. Sabe porquê?
-- Explica-me.
Ele sorriu, pareceu-me que lhe agradava a ideia de me poder explicar alguma coisa.
-- Em primeiro lugar, porque é um homem inteligente. Mesmo quenão acreditasse no que eu lhe dissesse, era uma informação preciosa. Segundo, mesmo não acreditando como diz o ditado: "Caldos de galinha e cautelas, nunca fizeram mal a ninguém!" Por isso mesmo sem acreditar, mesmo achando que sou um gajo completamente transtornado por um qualquer trauma de infância escutaria. Terceiro, eu pago-lhe pra me ouvir, portanto teria de ouvir!
Depois riu-se.
-- Consegue ter alguma premonição de morte neste momento?
Riu outravez. Depois calou-se. Fez um ar sério.
-- Diga-me Dr. acha que sou um tipo inteligente?
-- Sem dúvida.
-- E não acha que sabia que se contasse isto, achariam que eu não estava bom da cabeça?
-- Presumo que sim... -- mas não conseguia perceber onde ele queria levar o raciocínio.
-- Pois é Dr. tenho estas premonições há anos e nunca visitei nenhum psicologo por causa disso, porque havia de fazê-lo logo agora? Não se perguntou isso?
-- Achei que há sempre um tempo certo, para resolvermos os nossos problemas. Acho que você achou que este era o tempo certo.
-- Certo Dr!
Riu-se outra vez.
-- E sabe por que é agora o meu tem certo? Sabe porque desejava tanto que o Dr me provasse que estou doido? Ficaria feliz se me internasse Dr!
Eu percebi então e ele concluiu:
-- Chegou a minha hora Dr!

01 setembro 2004

P.E.I.D.O.



-- Bem vindos meus amigos a este espaço radiofónico de divulgação científica! Mais uma vez caros amigos, temos connosco o estimado Prof. Nero! É um prazer tê-lo de novo aqui Prof. Nero. E deixe-me dizer-lhe que não consigo sequer dizer o nome do seu invento. Ah Ah Ah!
-- Está bem amigo eu digo por você. Trata-se do PEIDO.
-- Ah Ah Ah Prof Nero! O senhor tem um fenomenal senso de humor além de tudo o mais. Mas diga-nos professor, isso está relacionado com o dito cujo?
-- Exactamente assim é.
-- Eh Eh Eh! Então isso é o quê?
-- PEIDO são as iniciais de Percursor Enzimático Inibidor de Odor. Trocado por miúdos significa que o dito cujo fica sem cheiro.
-- Fenomenal Prof Nero! Quer dizer que se acabaram de uma vez por todas com aqueles venenosos que matam uma pessoa a 30 metros de distância...
-- Que eu saiba nunca mataram ninguém...
-- Ah Ah Ah!
-- Mas de certeza que se tornarão menos incomodativos! Mas não ficamos por aqui...
-- Não Prof? Quer dizer que há mais?
-- Sim, no meu laboratório nunca estamos satisfeitos, temos sempre outra meta a seguir. Como vê, dominado o processo de redução do odor, era fácil esperar que pudéssemos controlar a formação de qualquer odor resultante das fermentações intestinais. E foi essa via que decidimos prosseguir...
-- A via do intestino, não é Prof? Ah Ah Ah!
-- A via do tubo digestivo para ser mais preciso...
-- Desculpe o gracejo Prof...
-- Enfim, não tem problema. Conseguimos encontrar percursores enzimáticos que estabelecem as chamadas cadeias aromáticas. Em termos simples as cadeias aromáticas são hidrocarbonetos...
-- Meu Deus Prof. Nero, não nos diga que no buraco ao fundo das costas podemos vir a ter uma fonte de petróleo!
-- Graceja novamente o amigo... Mas sim, em termos muito simplistas estes percursores enzimáticos podem fomentar a produção de cadeias aromáticas por agora. Estamos a pesquisar a possibilidade de produção de outros complexos.
-- Mas isso é fantástico Prof! Cada um de nós pode tornar-se energeticamente independente, refinando a sua própria mer... Perdão! Refinando os efluentes domésticos!
-- Bem, não vejo muito bem como, mas reconheço o potencial destes percursores enzimáticos como eventuais intervenientes numa cadeia que possa levar à produção acelerada de hidrocarbonetos de uma forma puramente sintética.
-- No fundo, o petróleo pode estar ao alcance de qualquer nação que detenha a tecnologia desses percursores enzimáticos, natilde;o é Prof Nero?
-- Resumiu muito bem. Por agora apenas estamos interessados na produção do medicamento para evitar o odor na flatulência e continuamos a investigação nessa direcção...
-- Presumo que muitas empresa já o tenham aliciado...
-- Ainda não. Estamos na fase inicial do projecto e esta é uma novidade em primeira mão que damos aos nossos ouvintes...
-- Ouviram! Muito nos honra Prof. Nero! Mas acautele-se Prof! Estou a ver todas as grandes empresas petrolíferas preocupadas consigo.
-- É inútil amigo, porque isto ainda está mesmo muito incipiente...
-- Obrigado Prof. Nero pelas suas declarações! Em rigoroso exclusivo ouviram a nova descoberta do Prof. Nero! Mundo espera-te uma revolução! E tudo graças ao inteligentíssimo Prof. Nero!
-- A equipa... é tudo trabalho de equipa...

30 agosto 2004


Gosto da tranquilidade que me invade, quando deixamos que a natureza faça poesia... (foto in www.olhares.com) Posted by Hello

28 agosto 2004


foto por Luís Costa in www.olhares.com Posted by Hello

A Boa Acção


O homem era um sem-abrigo, um pobre, um desgraçado sem tecto. Era o primeiro mês em que fazia voluntariado e tinham-me mandado para a rua. Eram 1 hora da madrugada. Um sem-abrigo nunca se deita antes dessa hora, pois tem de dar tempo a que todos os que têm abrigo possam regressar a suas casas, pelo menos a maioria deles.
Estava encarregue de distribuir alguns cobertores e tinha também jornais que tinha juntado pra eles colocarem a fazer de colchão.
-- Quer um cobertor? – perguntei a um deles.
-- Obrigado... – disse ele estendendo a mão e fugindo ao contacto visual. Parecia envergonhado. Notei que não tinha saco.
-- Há quanto tempo está na rua?
Olhou-me de relance, a medo, ou vergonha..
-- Hoje... Estou hoje...
Talvez para ele ainda houvesse esperança.
-- O que aconteceu?
Olhou-me, havia um sorriso no rosto, um sorriso forçado quase irónico.
-- Desemprego... E acho que fui ficando estranho...
-- Estranho? – a minha pergunta era mais um encorajamento a que continuasse.
-- Sim... Afastei-me de tudo... Também nunca tive muitos amigos... – o mesmo sorriso.
-- És solteiro?
-- Não...
-- E a esposa?
Encolheu os ombros, baixou a cabeça e notei que fazia um esforço para não chorar.
-- Que aconteceu com a esposa? – insisti.
-- Nada...
-- Como assim?
-- Nada, ela está bem!
-- Expulsou-te? Por estares desempregado?
-- Não, não! Não me expulsou nada... Eu é que decidi vir embora... Ela arranjou trabalho, eu é que me comecei a sentir inútil... – as lágrimas começaram a correr-lhe pela cara abaixo.
-- Espera um pouco aqui. Não te vás embora. Espera.
Fui falar com o meu responsável e em breves palavras contei-lhe o que sabia. Propus que ele fosse usado como voluntário também. Era a sua primeira noite e achava-o completamente despreparado para andar pelas ruas. Ele podia ficar no albergue, pelo menos teria cama, comida e um trabalho para fazer.
O responsável veio comigo ter com ele.
-- Lamento o que se passou amigo, podemos levá-lo para o nosso albergue por esta noite, depis veremos. Quer?
-- Obrigado....
-- Dê-me essa manta, no albergue não vai precisar dela e tenho a certeza que será útil a quem dorme nas ruas. – pediu o meu responsável.
Ele sorriu.
-- Sim ,claro!
O meu responsável sorriu também.
-- É a sua boa acção de hoje...

17 julho 2004


alma negra Posted by Hello

Alma Negra



-- Olá, bom dia! Já se perguntou quando o sofrimento vai ter fim?
Olhei o moço jovem, engravatado e sorridente, ao seu lado uma senhora de cabelos brancos, um sorriso meio triste acompanhava-o. Era habitual fazerem as suas visitas, falando de uma esperança que asseguravam firme, tão firme quanto seguravam as Escrituras na mão. Nunca tinham falado comigo. Não porque me excluíssem, mas porque eu me excluía. Mas naquele dia, não sei porquê, a melancolia batera-me forte e precisava de expelir a raiva e a frustração. Sentia-me forte o suficiente para estilhaçar todas as esperanças e pintar o mundo e arredores do negro mais negro que se podia imaginar.
-- O sofrimento acaba, quando se morre, meu jovem. Mas acima de tudo parece-me que ninguém está interessado em acabar com ele... – respondi eu pronto a trazer ao de cimo todo o negrume que me inundava a alma. E o jovem continuou:
-- O senhor estaria interessado em acabar com ele? Se estivesse ao seu alcance?
A pergunta bateu-me com mais força que um murro. Eu que desejava apenas deixar sair o meu azedume, a minha dor, o meu desespero, eu que me procurava para destruir o mundo, via-me confrontado com a pergunta básica! Tão básica, que foi como uma punhalada! Será que eu queria acabar com o sofrimento? Olhei o moço atordoado, a velhinha olhava de olhar ausente, como se visse coisas para além de mim, como se o meu corpo fosse transparente ou eu nem sequer estivesse ali.
Respirei fundo e fui sincero:
-- Não sei...
O moço fez uma pausa e olhou-me. Vi naqueles olhos jovens mais do que apenas um olhar de quem espera uma resposta. Ele procurava a minha alma, a minha alma afundada no fundo do poço, inteiramente negra. Desviei o olhar e ele disse-me:
-- Gostava de lhe ler uma coisa...
E antes que pudesse reclamar, os seus dedos ágeis abriram a Bíblia e ele disse:
-- Está aqui, no livro de Jó capitulo 14 e no versículo 1 e 2, e diz: “O homem, nascido de mulher, é de vida curta e está empanturrado de agitação. Como a flor, ele brota e é cortado, e foge como a sombra e não permanece em existência.”
Depois de ler fez nova pausa olhou-me e comentou:
-- Talvez concorde com estas palavras...
Como eu concordava com essas palavras! Sim a palavra certa era “empanturrado” como se a vida e todas as suas experiências nos tivessem sido forçadas pela goela abaixo, como se forçam os gansos a comer para fazer foie gras.
E o jovem continuou. A velhinha tinha acompanhado a leitura sem dizer uma palavra e deixara de sorrir. Talvez também ela estivesse “empanturrada” com a vida e apenas desejasse outra e buscasse uma esperança.
-- Sabia que Deus não nos fez para viver debaixo das actuais condições?
Vi uma oportunidade de deixar sair a minha alma negra:
-- Pois, se calhar nem nos fez pra viver! É por isso que todas as esperanças que nos dá, são sempre no futuro e como vê o único futuro certo é a morte!
O jovem continuou:
-- Sim, mas a Bíblia dá-nos uma esperança de que a morte será vencida...
Ri-me, muito mais por desespero do que por menosprezo. Para mim a vida eterna era um sonho, era como o acreditar no Pai Natal. Foi então que a velhinha abandonou o seu olhar distante e me olhou nos olhos, com um sorriso que percebi era todo feito de ternura e compreensão, e ela disse:
-- A sua alma é negra, mas não de maldade, consigo ver isso! O senhor tem um coração bom. Mas de tão bom está muito magoado... Magoado pelo sofrimento que vê nos outros, pelas injustiças, pelo egoísmo. A sua alma está negra porque está toda pisada!



engrenagem Posted by Hello

Rapariga Atarefada com a Vida



Corremos. Passamos toda uma vida a correr como se a felicidade fosse um atleta profissional da maratona e a vida tivesse como objectivo alcançá-la.
O problema é que levamos sempre demasiado peso, coisas desnecessárias que alguém no caminho nos convenceu a levar com o engano de que seria mais fácil. Mas é engano.
O peso acumula-se e torna os nossos passos mais curtos, mais lentos e a felicidade toma avanço.
Às vezes parece que o avanço é tão grande, mas tão grande, que nem vale mais a pena! Deixamos de a ver, de acreditar. Ficamos para ali parados naquele triste abandono.
E às vezes, chega um companheiro, um sorriso, uma esperança. Até pensamos que é a felicidade que veio ao nosso encontro. Mas não há felicidade no que nos alcança. A felicidade alcança-se, não chega sem esforço, não vem de borla.
Por isso é que os príncipes encantados vêm disfarçados de sapos que é preciso beijar. Ou os génios que satisfazem desejos, escondem-se em garrafas que é preciso esfregar para os convencer a sair.
E tu rapariga? Que labuta é a tua? Carregas coisas, ou corres atarefada atrás da felicidade?



29 junho 2004

O Lamaçal



Tinham ficado atolados, depois do Jorge meter o jipe tracção às quatro rodas novinho em folha pelo declive e ter parado no meio do caminho que estava transformado em lamaçal!
-- Mete-se a tracção e saímos daqui...
Mas a tracção apesar de comparecer satisfeita num ajudou o jipe a sair do lamaçal. Este saracoteava-se mais que uma mulata num samba.
-- Acho que vamos ter de borrar os sapatos... -- escapou o Pacheco com um ar verdadeiramente aborrecido.
-- Bem me queria parecer que pró dia terminar em beleza precisavamos de um azarzinho... -- acrescentou o Fernando.
-- Esta ideia de virem prá aqui engravatados...
-- A ideia era termos uma reunião do partido!
-- Era uma reunião secreta, bolas!
-- Se ficarmos aqui atascados não vai ser nada secreta...
O Jorge calcou o acelerador a fundo de repente, tombaram todos, mas o jipe lá se libertou do abraço de lama e percorreu cambaleante mais uns metros. E antes da próxima poça de lama o Jorge voltou a embalar o Jipe a título preventivo.
A coisa ía.
-- Estava mesmo a ver... -- disse o Pacheco.
-- Eu cá não via é coisa boa!
-- Bem, agora é só esperarmos que o Cherne não dê lugar à Xaputa!

18 junho 2004

Lágrima de um Universo Perdido


Caiu silenciosa, sem um simples suspiro sequer. Caiu como a gota de uma árvore sobre a superfície quieta e branda do lago. A lágrima correu-lhe pela face macia e desprendeu-se para voar até ao chão.
Levou com ela, todos os sonhos de ser feliz e deixou um vazio e uma ausência que lhe emprestou uma tez pálida e um olhar fixo e distante. Distante como o seu amor. Fixo, como se nada pudesse alterar o rumo das coisas.
Inclinou suave o rosto para baixo, a tempo de ver cair aquela gota de sal, embater no chão e espalhar-se. Em pouco tempo, nenhum vestígio mais desse trágico acontecimento. Nenhuma humidade no chão ou na sua face, apenas aquele ardume a consumir-lhe lentamente o peito.
São impressionantes as possibilidades que se abrem em cada decisão nossa, do entrechocar de todas. Quando ela diz que não, ou ele diz que sim. Tudo gera uma multiplicidade de novas opções, como se fossemos berlindes multicolores chocalhados numa caixa a variar continuamente de padrão.
Por isso quando se deixa cair uma lágrima, é um sinal de luto pelo Universo que se perdeu...

08 junho 2004

Distância Intransponível


Não conseguiria saltar a tempo. Ao fugir correra sem saber para onde e ouvia os cães aproximarem-se rapidamente. Não tardaria e estariam sobre ele pronto para o apanhar. A polícia do ditador não era conhecida pela meiguice…
Tinha de saltar, mas o abismo devia ter à vontade uns 10 metros de largura, e mesmo que saltasse para a zona mais abaixo ainda assim arriscava-se a não se conseguir agarrar a nada e era um mergulho no vazio, para se estatelar pelo menos 100 metros mais abaixo. Olhou um ramo que pendia sobre o abismo, mas só dava para ganhar alguns metros e perdia a corrida e o balanço.
Podia tentar descer a parede quase lisa até ao fundo do abismo. Mas se a polícia desconfiasse disso, tinham tempo e sobra para o esperar lá no fundo, ou até talvez para de helicóptero passar para o outro lado da garganta e divertirem-se a disparar sobre ele.
Não havia maneira de fugir, encurralado entre os cães da polícia cada vez mais perto e aquela garganta como um corte na paisagem.
Não era um homem religioso, embora estivesse preso na colónia penal de Colopos por causa do seu apego a príncipios. Recusara-se aceitar que um ditador se auto-impusesse e governasse por usurpação. Não, também não era um político. Apenas tinha dito "Basta!" e fora o bastante.
Conseguira tirar a pulseira electrónica, emagrecera e os carcereiros nãos e deram conta que começava a a ser fácil para ele retirar a pulseira. Depois colocou-a no tornozelo do parceiro de cela. Chamava-se Homero, era um homem calado, demasiado calado. Uns diziam que tinha esmagado o crâneo de um homem apenas com as suas mãos, outros diziam que fora soldado e fugira. Não interessava nada. Colopos era um lugar de desterro, um calhau para todos os que não tinham mais futuro, no grande plano do ditador. Era um lugar para os esquecidos.
Os cães estavam agora tão perto, que teve a sensação de que não escaparia.
Ajoelhou-se e virando a face para o céu exclamou:
-- Deus! Se existes e eu acredito que existas, é uma pena que tenha feito um Universo sem qualquer sentido! E se a culpa é também minha, peço-te desculpa... -- e inclinou a face para o chão prostrado.
Foi então que ouviu uma voz:
-- De facto também tens culpa, mas que interessa isso agora? Segue-me...
Ele olhou estupefacto para todos os lados mas não via ninguém. Assustado perguntou:
-- Quem fala? Onde estás?
-- Estou aqui a aolhar para ti, palerma! Sou o rato á tua frente...
De facto à sua frente parara um rato e parecia mesmo falar com ele.
-- Devo estar doido...
-- Daqui a pouco estás é morto! Segue-me...
Ele seguiu-o sem pensar bem no que estava a fazer. Ouviu o barulho dos cães afastar-se em sentido contrário ao longo da beirada da falésia.
-- Não é possível! -- exclamou -- um rato que fala!
-- Ora essa! Porque não hei-de falar? Há alguma lei que proiba os ratos de falar?
Pensando bem, não havia. Sorriu.
-- Tens razão...
O rato pareceu sorrir e disse-lhe:
-- As únicas distâncias instransponíveis, são as do preconceito. Derrubado o preconceito, tudo se torna possível... Pensa nisso. Agora tenho de ir. Prazer em conhecer-te! -- E sumiu-se por entre a vegetação.

26 maio 2004


 Posted by Hello

Luz do meu ser infinito


Estamos não sei em que tempo no futuro. Não interessa. Apesar de todo o progresso ainda somos humanos. Continuamos a ter as nossas fragilidades e os nosso medos. Mas mais ainda o pesar. A dor de perder para sempre. Mesmo quando se perde tarde.
Eu perdi. E como dói perder!
Esta dor aguda feita toda ela de ausência, uma ausência que nada enche ou preenche. Esta dor que nos apanha inesperadamente nos pequenos gestos quotidianos, ou aparece vinda de lugar nenhum, trazida da memória por coisas fugazes e banais.
Fiquei sem ela, aquela a quem eu amava, a quem mais queria. Um dia, de repente, num dia lindo de Sol, tudo ficou negro. Mais negro ainda do que o vazio do Cosmos.
O tempo passou e aprendi a suportar a dor de a lembrar...
Dizem que há uma coisa que é infinita enquanto houver Universo: a luz!
Por isso, tive de a transformar em infinito, em luz. Há em minha casa uma luz que me recebe e onde mergulho de olhos fechados. Há um som suave, um murmúrio do amor que saía dos seus lábios.
Quando chego a casa sou recebido pelo holograma dela que me recebe e me sorri: a luz do meu ser infinito...

21 maio 2004


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Silêncio Frio


-- Estás aí? Sei que estás aí... Vens perseguir-me, vingar-te dos dias anteriores. Mas és cruel... Eu amei-te, lembras-te? Para que me vens ensombrar os dias e as noites? São bem piores as noites... Ao menos se me deixasses sossegada durante as noites... Estou cansada! Não compreendes que estou cansada? Não podias morrer de vês? Não? Havia ternura no teu olhar, agora é só vazio, um ódio infinito. Mas morto que mal me podes fazer? Hein? Não falas? Não dizes nada? Ah Ah Ah! Estás morto... Não podes dizer nada. Apenas podes ficar a olhar para mim com esses olhos infinitos de um ódio que nunca sentiste... Talvez não seja ódio, talvez seja frustração, um profundo desespero. Mas não... Se há alguém que desespere sou eu! Se há alguém para quem a morte pode ser um alívio sou eu! Estás a chamar-me? Sim? Querido... Querido amor, para sempre nesse silêncio frio...

20 maio 2004


 Posted by Hello

Solidão Madrasta


Estava á espera... Tinham prometido voltar mas o tempo passava e ninguém voltara. Teriams esquecido? Ele ainda os lembrava a todos: a Dina, a Sofia, o Ricardo, o João.
Eram a equipa que descera ao planeta. Depois as coisas complicaram-se, a nave não aguentava o excesso de peso, ele ficou. Voluntariou-se para ficar. Ficaram também todos os equipamentos. Partiram só eles. Teriam morrido?
Se eles tivessem morrido, então ele estaria condenado a ficar ali para sempre, sem que ninguém o viesse buscar. O sistema de comunicações da nave tinhas sido arrancado. Fora mais uma coisa para aligeirar o peso da nave. Apenas tinham levado um radio de emergência, daqueles que emite um SOS continuo.
Será que... Tinham sido salvos e não voltaram inventando uma desculpa quanto a ele? Ele era o membro mais recente da tripulação, e pensando bem... Havia uma grande intimidade entre os quatro, intimidade que ele nunca partilhou. E lembrando bem, era capaz de lembrar-se deumas quantas vezes em que chegara e as conversas deles tinham parado. Nunca pusera grande significado nisso, as pessoas tem direito á sua privacidade, mas agora...
Também quando se ofereceu para ficar eles sorriram-lhe, mal se despediram dele. Era verdade que estavam todos nervosos, o importante era alguém sair dali para ir buscar ajuda. Mas podia ter ido só um, em vez de ficar só um. Se calhar facilitara-lhes os planos! Que idiota!

O vento do planeta soprou na sua direcção e despenteou-lhe os cabelos compridos. Estava há 2 meses no planeta, sem contacto com ninguém. Era um planeta periférico e nem eles sabiam muito bem a localização. Quando a nave avariara, andaram á deriva, e os instrumentos haviam deixado de funcionar. Cairam ali.

Comera dos frutos das árvores do planeta. Frutos que nunca vira, nem nunca saboreara. As rações de emergencia tinham acabado, e tinha de arriscar. Tratava-se de sobreviver.

A solidão madrasta punha-lhe ideias na cabeça...

30 abril 2004


 Posted by Hello

Bela


Ela atravessou o portal inundada de luz!
O meu íntimo inquietou-se, pois nunca se está preparado para a rainha mais bela da galáxia. Diziam que era não apenas belíssima, mas superiormente inteligente. Fora educada de modo espartano, no mundo árido de ascetas, místicos e filósofos de Nova Grécia, e que depois andara feito vagabunda a passear pelo Cosmos. Fora guerreira nas guerras de Pínia, e diziam que fora das mais valentes! Mas nem tudo era heróico. As más línguas afirmavam que havia sido prostituta no mal afamado planeta vermelho de Éden IV. Mas isso não passava de um boato, as testemunhas disso haviam sido caladas para sempre, pelos guerreiros azuis de Varta, fidelíssimos ao Imperador seu pai.
Finalmente, aos 21 anos, a pedido do Imperador, ela tinha consentido integrar o Conselho Supremo da Confederação Universal, uma espécie de plen´rio de todos os planetas habitados. Nele estavam presentes representantes de todos, um por planeta. Os impérios de muitos planetas, podiam sempre unir-se, mas era curioso observar como se construíam e desfaziam coligações, acordos e tratados.
Ela era assumir um lugar de peso, o Império do seu pai estendia-se por mil sóis, e por mais de 1500 planetas habitados. Por isso, para além de bela, de sábia, era poderosa!
Uma mistura assim pode tornar-se perigosa ou salvadora!
O que se faz com beleza, sabedoria e poder?
Os antigos romanos, achavam que o poder conduz á divinização. Os seus imperadores acabavam sendo adorados após a morte. Mas ela, já era uma deusa em vida! O que lhe estaria destinado?
Ser fêmea retirava aos machos a ancestral vontade de lutar, mas os mais matreiros ou sábios, talvez a quisessem conquistar pelo coraçáo!
Deixar-se-ía ela conquistar? Estaria disposta a submeter-se a um macho e passar a ser apenas uma procriadora? Era muito duvidoso, pois ela, por mais de uma vez, revelara um espírito pouco sujeito a papéis de segundo plano! E qual dos outros imperadores, estaria capaz de aceitar um papel secundário deixar que ela brilhasse? O amor não entra muito bem, nestas equações de poder! Estaria condenada a ficar só? Porque era bela, sábia e poderosa?
Talvez mandasse fazer um clone de si própria... Mas seria um paliativo e nunca uma solução!
A ideia talvez fosse casar-se com um governante menor, daqueles que governam apenas os planetas de uma estrela. Mas estaria o Imperador disposto a isso? Era preciso escolher com muito cuidado...
Além disso estaria ela disposta a casar-se com um insignificante?
Até aos 21 anos fora feliz, fora ela própria, experimentara tudo, o amargo e o doce. Compreendia a vida melhor do que nunca. Assumir o fardo do poder, era uma espécie de enterro.
Quem quer ser bela, sábia e poderosa? E não havia maneira de fugir aquilo... ou havia?
Diziam que andava estranha, muito estranha antes daquilo acontecer. Cantava quando tomava banho, ria alto, partia os copos e falava de tudo numa misturada que ninguém conseguia acompanhar. Examinaram-na, e parecia de boa saúde. Mas ela andara por tanto lado, que não se podia saber. Talvez fosse uma doença nova, que lhe alterasse o humor.
Mas quando ela apareceu completamente nua perante o Conselho Supremo da Confederação Universal e se babou durante o discurso sem qualquer nexo, -- o que pôs a cabeça em água aos tradutores, -- o Imperador decidiu dar-lhe umas férias prolongadas num dos seus planetas privados.
Pareceu melhorar, apesar de ainda assim fazer pequenas coisas sem nexo.
Se ela tivesse sido homem, chamar-se-ía Cláudio pela certa.

15 março 2004

Tic-Tac


Os dias pareciam passar moles e espessos como cola. Estava aborrecida, presa numa espécie de limbo que a sufocava. Tanta injustiça no mundo! Porque não acabava?
E um dia, que as coisas são feitas de acasos, encontrara-o num chat. Coisas de nada, conversas sem consequência. Mas nãoé assim que começam as amizades? Partilha-se um lugar comum, mete-se conversa e... As coisas vão acontecendo!
E foi assim. Alguns dizem que é virtual, mas o que é este espaço electrónico se não uma extensão de nós mesmos como o telefone ou uma carta? Que é isso de virtual?
Partilham-se ideias, coisas que são nossas e se põe no espaço comum e nem é preciso que se vejam físicamente ou ouçam, os sentidos podem ficar resguardados. Até tem mais graça imaginar o outro, é estimulante! Talvez seja isso depois que arruma com as ditas amizades virtuais. Mas são apenas especiais por isso, o resto nem é muito importante!
O tempo passa, e neste quebrar de rotina, o tic-tac quotidiano ganha contornos de música.

16 fevereiro 2004

Plug-In


-- Ei Márcia já viste o meu último bio plug-in?
-- Não! Que curtição é?
-- Aqui na língua sob a forma de piercing! Tás a ver? -- disse a Juliana metendo a língua de fora, onde uma bola de um cristal azul iridescente fazia a sua aparição. -- Esta bola tem um produto à base de flúor e vai libertando lentamente o seu conteúdo. Quando gastar depois troco por outra. Evita as cáries! Mesmo que num possa lavar os dentes...
-- Que fixe! Isso é porreiro! Sabes que a Paula mandou meter um piercing piezo-electrico na coisinha?
As duas riram--se, mas acho que mais com dor de cotovelo que outra coisa!
-- Por isso é que ela às vezes fica com um brilho no olhar! -- e riram-se outra vez.
-- Pois é! Aquilo de vez em quando vibra e põe-na a vibrar! -- concluiu a Juliana.
-- Será que os rapazes também tem dessas coisas? -- perguntou a Márcia.
-- Os rapazes num precisam, tão sempre a vibrar! -- e voltaram a rir.
-- Os rapazes agora usam é uns no nariz, que dizem que liberam coca...
-- Sério?!
-- Eu sei lá, ouvi dizer que era ilegal, mas sabes como é!
-- O namorado da Xanoca, colocou um piezo-electrico na orelha, diz que curte melhor a música!
-- Isso num é nada, o amigo do Pedro, implantou um atrás da orelha que veio do Japão e ouve mp3!
-- Ena, esse deve ser muita fixe! Cool à brava!
-- Não Cool mesmo, é o da Mara no umbigo!
-- Atão?
-- Controla o apetite! Assim ela pode conservar sempre aquele corpinho de miss.
-- Que fixe! E sabes onde se arranjam desses?
-- Ó pá num sei, mas a gente pergunta-lhe!
E voltaram a rir. Presumo que um qualquer plug-in poderia contribuir para isso.

14 fevereiro 2004

O dia das coisas comuns


Hoje é o dia das coisas comuns. Não das coisas que são pertença do dois, mas apenas das coisas que partilhamos e que por isso nos são comuns. São poucas coisas, porque coisas não são importantes, o que é importante é os sentimentos que elas nos suscitam.
Por agora temos poucas coisas em comum, provavelmente ficaremos por essas poucas coisas, sem lhe darmos a importància que merecem.
São coisas que marcam um luto, uma espécie de prenúncio de fim, porque não há muitas lembranças à volta destas coisas comuns. E contudo desejo que haja, faço um esforço por carregar estas coisas de memórias, amargas e doces. Mas tenho dificuldade, como se nunca tivesses tocado nessas coisas, como se nunca tivessem sido tuas. É uma ausência...
Queria lembrar o teu perfume, ou a saia que costumas usar, ou o teu soutien preferido. Procuro com o olhar os frascos de perfume na cómoda tentando adivinhar o que mais usas e não consigo. Abro a porta do guarda--fatos e não sei qual é a saia. Abro a gaveta e vejo muitos soutiens, mas não sei qual preferes.
Hoje é o dia das coisas comuns, da rotina, e contudo por ser de todos os dias, está vazia. Talvez sejam as nossas vidas que estão vazias. Talvez sejamos nós que nos esvaziamos de sentido, partilhando lugares comuns que não nos dizem nada. Esvaziamos tudo, até as coisas comuns...

13 fevereiro 2004

Viriato, a verdadeira história!


A história de Portugal tá toda muito mal contada! Veja-se o caso de Viriato. O Viriato nunca foi traído na vida! Os romanos é que inventaram essa da traição para não revelarem uma das mais impressionantes acções dos serviços secretos de toda a história! O que se passou foi que os romanos fartos de ver morrer os seus, por que o nosso Viriato matava romanos como quem mata moscas, foi o Caio Vetilio, o Caio Lucitor, o Caio Plaucio e até o Pretor Claúdio Unimano que era maneta que apanharam derrotas que até o César se chateou. Então os serviços secretos romanos contactaram o Viriato por intermédio daquele que ficou conhecido como o traidor, para lhe propor o seguinte:
-- Viriato, num tás farto de andares por aqui pelos montes a matar romanos?
-- De facto, o que me apetecia era conhecer outras terras... Estou farto de Lobriga! E os romanos estão a ficar moles, e fogem de visitar aqui os montes Herminios... Nem sabem apreciar a beleza disto! A neve... Praticar esqui...
-- Não te zangues pá, mas os romanos vieram ter comigo...
-- Ter contigo para quê? Já sei! Filhos da p...
-- Não pá, num era nada disso.
-- Traidor! Queriam arruinar a paisagem construindo um hotel aqui em Lobriga! Enchiam isto de turistas, e lá se ía o meu sossego! Traidor!
-- Num sou nada pá. O que os gajos querem até que é fixe. Sabes bem que estes romanos um dia zangam-se e vêm por aí...
-- Esses montes de bosta? Mas tu és parvo?
-- Olha... ouve com calma... O que os gajos querem é o seguinte: Tu finges que és morto e eles levam-te para a Bretanha, uma ilha com gajos bravos como nós. Os romanos fizeram uma muralha pra ver se os continham mas não os conseguiram vencer. Eles respeitam aqui a nossa gente, deixam--nos viver à vontade, mas já sabes, tens de ir até à Bretanha e desancar nos gajos, que achas? Sempre é melhor que morrer com uma faca nas costas!
-- Lá nisso tens razão! E como é o clima lá?
-- Dizem que é parecido com isto, só que tem mais nevoeiro.
-- Que se lixe o nevoeiro... E quais são as contra partidas?
-- Bem, tudo o que conquistares aos gajos da Bretanha é teu. Só tens de impedir que passem a muralha que os romanos construíram. Além disso fazem das tuas filhas esposas de senadores romanos com direitos sobre as províncias da Ibéria. E a nós deixam--nos ser proprietários, desde que paguemos um impostozito de vez em quando ao César. Só pra não dar muito nas vistas...
-- Ok.

E foi assim! Esta é que é a verdade! A grande família Silva, não é mais do que o nome genérico dado a todos os senadores romanos casados com lusitanas (as filhas de Viriato)! Daí que hoje haja tanto Silva neste país.
Por outro lado, se nunca compreenderam porque o tratado mais antigo entre nações é a Velha Aliança entre Portugal e Inglaterra, agora já entendem não é?
Foram os descendentes de Viriato na Bretanha que por tradição secreta, aliás os Cavaleiros da Távola Redonda, não eram mais que homens fiéis a Viriato, e depois os descendentes que de geração em geração conservaram esse segredo.
Não se podem esquecer que esta era uma operação secreta romana, para subjugar os bretões!
Historiadores suspeitam também que a Irlanda tenha recebido a visita de Viriato que aí estabeleceu colónias, mas é apenas ainda uma suspeita, apesar de se reconhecer hoje que as populações Celtas da Irlanda são cronologicamente mais recentes que os Iberos! Portanto parece haver algum fundo de verdade nessa suspeita.
Por isso meus amigos, a verdade é que nunca um lusitano traiu outro lusitano! Mas antes que o nosso Viriato trocou a paz da Ibéria pelo controlo dos bretões ao serviço de Roma!

12 fevereiro 2004

Carta de Amor e Despedida


Amo-te. Não te restem quaisquer dúvidas quanto a isso. Um amor intenso e doido, como é afinal, típico de todos os grandes amores. E não é isso que todos buscamos nesta vida? Amei sempre muito, em contrapartida apesar de amado, nunca me senti plenamente amado, como tu. Podia ser contigo mas...
Foi um sonho, um desejo, algo que podia ser tudo mas nunca podia ser um grande amor.
Não sei porque a vida tem de ser cruel assim. Cruel para mim, para ti; mesmo quando te vestes de teenager e sonho abraçar-te.
É como todas as coisas impossíveis, uma dor, tudo o que resta. A distància, a vida, a tua e a minha, vida que como vês afinal nunca foi nossa. Somos como dois arcos tangentes, e o nosso encontro não passou de um momento. Por isso mesmo sem querer deve tudo terminar por aqui, não é?
Certamente na tua busca encontrarás outros parecidos comigo, só que mais próximos. O suficiente para te dizerem segredos ao ouvido, mais próximos para te abraçarem e te fazerem sentir mulher. Mas sabes, serão apenas próximos. Nunca voarão no teu íntimo como eu voei, nem te conhecerão tão bem quanto eu te conheci. O amor faz essa diferença e permite--nos espreitar a alma da pessoa amada. Ou então são apenas efeitos secundários deste desejo intenso e sempre perseguido de encontrar o tal grande amor. Talvez eu seja apenas doido e essa seja por si só razão suficiente para esta nossa relação terminar.
Não termina porque queira acabar com ela. Termina apenas porque apesar de começar, não leva a lado nenhum! Sim, talvez leve, a esse amargo de boca que sinto, a esta angústia no peito, a esta sensação de ficar vazio, pensando se a vida tem mesmo algum sentido, ou se é apenas isto, este andar à toa.
Não percas tempo com uma causa perdida. Gostava de te fazer feliz, mas nem a mim consigo fazer feliz, quanto mais a ti! Fica-me sempre este peso na consciência de teres estado tão perto, para acabares tão distante.
Mas tens razão, a proximidade foi uma ilusão e deixamo-nos ir na doçura dela. Deixa então que fique eu agora com os amargos de boca e te liberte.
Encontra quem te faça feliz e se não encontrares, saberás que te espero. Porque eu espero sempre...

Com esperança,
Este que te ama.

11 fevereiro 2004

O anúncio


Leia antes esta notícia

Ela passeava os olhos pela revista, porque efectivamente não tinha mais nada para fazer enquanto esperava no cabeleireiro a sua vez. Quase que desfolhava as páginas sem ver, mas nos pequenos anúncios algo lhe saltou à vista dizia:
"É VITIMA DE VIOLENCIA DOMÉSTICA? QUER POR UM FIM A ISSO? LIGUE-ME" Depois vinha um n. de telefone. Ela decidiu apontar, lembrando-se da última vez em que o marido chegara a casa bêbado e a desancara forte e feio chamando-lhe puta. Tivera que faltar ao emprego, mentindo mais uma vez que se sentia mal.
Era cada vez mais complicado lidar com a situação, e as bebedeiras do marido eram cada vez mais frequentes. Os filhos já não estavam em casa, cada um para longe, e quando a visitavam ela não queria que pensassem mal do pai. Mas ela tinha a certeza que os filhos sabiam. Um dia o Pedro que andava no exército ameaçou o pai, que o matava se ele me voltasse a tocar. Por isso tinha medo e mentia ao filho, quando este lhe telefonava tranquilizando-o.
Mas ela já não podia mais, e viu ali uma réstia de esperança.
Foi atendida, e quando chegou a casa, decidiu telefonar.
-- Estou sim? -- atendeu uma voz feminina do outro lado.
-- Estou, olhe eu estou a ligar por causa de um anúncio na revista...
-- Já sei minha senhora, mas é engano, fartam-se de me ligar para o meu telemóvel, eu nem me importo que vivo sozinha, mas num sei nada disso do anuncio percebe minha senhora?
-- Percebo, sim, queira desculpar...
-- Não tem mal, sabe... A maioria que telefona são mulheres... Queixam-se que os maridos lhes batem, é o seu caso?
-- Que interesse a senhora tem em saber?
-- Na verdade lamento essas pobres mulheres, cara senhora! Se o meu marido que Deus tenha em descanço me fizesse isso, eu rachava-o!
Ela percebeu que era uma idosa, e pensou que tudo aquilo era uma brincadeira de mau gosto, mas mesmo assim riu-se da velha senhora.
-- Pois eu minha senhora se pudesse também o rachava, o pior era depois! Queira desculpar-me o incómodo mas tenho mesmo de desligar...
-- Decerto senhora... Olha desejo que a besta que lhe bate Deus a castigue!
Ela riu--se outra vez, e disse a terminar:
-- Obrigado, com licença...
A voz do outro lado disse:
-- Faz favor. -- E desligou também.
A réstia de esperança feneceu.
Andava entretida arrumar a casa, esperando que ele mais uma vez chegasse do trabalho, comesse alguma coisa rápido e saísse logo para ir ter com os amigos, onde bebia cerveja até às tantas. Andava sempre com más companhias, um dos amigos já tivera a ousadia de a flertar, mas ela fez-se desentendida. Ela sabia que era jeitosa e bonita, mas isso apenas lhe dava dores de cabeça. Ele era mais velho e barrigudo e careca, e os companheiros dele ao contar que comiam esta e aquela apenas lhe atiçavam as inseguranças e ele vinha para casa armado em machão. Já quisera que ela deixasse de trabalhar, mas essa era o único escape que ainda lhe restava daquela vida amargurada.
O telemóvel ligou e ela atendeu:
-- Estou sim, quem fala?
-- Ligou por causa de um anúncio lembra-se?
-- De um anúncio?
-- Sim, violência doméstica.
-- Mas disseram-me que era engano!
-- Sim é engano, mas consigo saber quem telefona, não se preocupe. Está interessada em resolver o seu problema?
-- Sim, mas não sei como.
-- A Senhora é que sabe como.
-- Eu?!
-- Está disposta a fazer o quê? Sabe que os espancadores, mesmo os que se arrependem voltam ao mesmo não é?
Ela sabia bem disso. Quando recobrava a lucidez pedia-lhe perdão, que não voltaria a meter-se nos copos, que não suportava viver sem ela.
-- Então senhora? Eliminamos o mal pela raiz?
-- Está a falar em matar o meu marido?
-- Não; a senhora é que está. Eu perguntei-lhe o que estava disposta a fazer...
-- Matar... não sei... -- A consciência dela atormentava-lhe o pensamento.
-- Se não for a senhora acabar com ele, como acha que acabará?
Lembrava-se quando um dia ele veio como louco e lhe abriu um lanho na cabeça, e teve de ir ao hospital e mentir, dizer que tinha caído pelas escadas abaixo. Tinha ficado uma semana de cama. Outra vez, bateu-lhe com uma tolha molhada e ficou com o corpo todo cheio de hematomas, e sem conseguir dormir...
-- Então senhora, vou desligar e deixá-la a pensar. Volto a contactar. -- e desligou.
Tudo aquilo não demorara mais de 15 segundos.
Então era isso, um assassino a oferecer os seus serviços? Mas ele tinha dito que ela é que escolhia... Podia mandar dar-lhe um arraial de porrada, mas e depois? Ele não viria ainda mais azedo? Talvez até a acusasse de ter um amante! E seria tudo muito trágico.
Se alguém devia morrer nessa história seria ele. Quando casaram no altar, ainda se lembrava do que o padre dissera, que era obrigação dele protegê-la e amá-la. Ele falhara essa obrigação santa, era um miserável, dominado pelo álcool, pelas más companhias.
Já tinha decidido.
O telemóvel voltou a tocar...

10 fevereiro 2004

Quais são os teus valores?


-- Quais são os teus valores? -- perguntou o comandante para ele.
-- Não sei... Acho que numa guerra perdem--se os valores...
-- A tua causa então? -- insistiu o comandante.
-- Morrer. Por causa nenhuma...
-- Tu és um terrorista. Deves ter uma causa, ou és um mercenário?
-- Sou um homem. Perdido... Mas ainda assim um homem.
O comandante olhou o homem recém detido. Não havia provas de que estivesse envolvido em algum atentado, mas tinham encontrado material incriminatório. O homem parecia fazer parte de uma célula terrorista.
-- Quantos são vocês?
-- Menos do que vós, comandante, fique descansado. Somos uma minoria... Que nem sequer é respeitada...
-- Pra dizer a verdade, vocês é que não respeitam ninguém! -- descontrolou--se o comandante, na sua tentativa de parecer distante.
-- Compreendo... Mas como podia respeitar quem me ignorava?
-- Você não tem família? Já imaginou se num atentado estivesse a sua mãe? Não tem coração? -- tentou o comandante, num esforço por retomar o domínio da situação.
-- Tenho mãe... Ela morrerá de qualquer jeito comandante. Todos nós afinal. Deve haver qualquer coisa maior que as nossas vidas...
-- Ideais?
-- Esperança comandante, esperança...
-- E adquire--se à bomba essa esperança?
-- Quando os nossos gritos deixam de ser ouvidos, temos de ter quem grite por nós.
O comandante cerrou os punhos. Mas conteve--se.
-- E são os gritos dos inocentes que vocês fazem ouvir, não acha?
-- Não sei comandante... Às vezes penso que não há inocentes, porque continua tudo igual e há demasiado tempo...
-- O que quer dizer?
-- Que já tivemos tempo de por fim a toda a injustiça. Tempo para calar todos os gritos...
O comandante olhou para o chão. Também ele se lembrava de um tempo generoso, em que havia acreditado que podia transformar o mundo.

09 fevereiro 2004

Ping-Pong


Os terroristas tinham trabalhado toda a noite, finalmente conseguiram arrancar a caixa Multibanco e substitui--la por uma outra, obviamente falsa. Quem iria imaginar?
Acordara cedo naquele dia, levara a mulher ao trabalho, as crianças ao infantário e à escola primária. Sim, tinha dois pirralhos.
Estava desempregado e agora era eu que ficava com a maior parte das tarefas domésticas. Não me importava, mas parecia que a Nela (a minha esposa), começava lentamente a fartar--se da ideia. Assumia cada vez mais o papel de principal decisora, como seu eu não fosse tido nem achado. Acho que se emancipava, o que era bom, mas que me começava a desconsiderar o que era mau.
Tinha ficado sem liquidez na carteira, e como havia um Multibanco perto da escola, decidi passar por lá, mal tivesse deixado os miúdos. Eles eram a nossa alegria e a nossa preocupação. A Nela talvez achasse que na situação actual eles nunca pudessem frequentar a Universidade. Embora como o meu próprio caso provasse, um curso já não era garantia de nada. Mas ela teimava que era melhor ter um que não ter nenhum. Contudo ela não tinha, e estava a sair--se muito bem. Ela dizia que para o manter se esfalfava como uma escrava. E isso não era o que eu fizera sempre? Esfalfar--me como um escravo? Ela parava a discussão e encolhia os ombros. Acho que ela percebia que o mundo mudava para cada vez pior, e que nada podia fazer. Era uma insegurança que invadia tudo.
Vivíamos permanentemente em medo. Medo de perder o sustento, os filhos, o status e o mais que fosse.
Inseri o meu cartão Multibanco e a máquina obedientemente engoliu--o. Depois ao invés do habitual écran pra digitar o código de acesso, apareceu uma imagem pornográfica do Bin--Laden a sodomizar o Bush, como eu já tinha visto a circular nos emails.
Depois acabou--se. A caixa Multibanco explodiu com estrondo e pedaços de mim foram parar a mais de 50 metros de distància esborrachando--se nas paredes dos prédios em frente do outro lado da rua. Não houve corpo para identificar, a única coisa que deu para isso foram as provas circunstanciais: o carro estacionado e o meu desaparecimento.
Comigo morreu mais um desgraçado que ía para o trabalho e que passava na hora errada, no local errado. Um autocarro que passava perto deu origem mais de 35 feridos, felizmente todos sem grande gravidade para além do susto.
A Nela esteve à espera 5 anos para receber do seguro de vida, e só recebeu em tribunal, quando os peritos em ADN, afirmaram que os pedaços da vítima encontrados eram mesmo os meus. Ela deixou de trabalhar para cuidar dos nossos filhos e eles puderam ir estudar para a Universidade com base no dinheiro do seguro. A vida continuava.
Era um jogo de ping--pong, onde nós somos a bola, batida de um lado para o outro, até rebentar ou cair da mesa.

07 fevereiro 2004

Um dia f...


Há dias que parecem o retrato de uma vida. Este foi um deles. Tinha combinado sair mais o Zé e o Paulo, iríamos à praia no buggy que o Paulo cravara ao tio. Lá estava eu com a toalha pendurada no ombro, sentado na arca térmica com as cervejas para a tarde e com a bola de vólei debaixo do braço quando eles apareceram na esquina combinada.
Vi logo que a coisa não ía correr muito bem, porque as namoradas vinham com eles.
-- Pedro, -- disse o Paulo -- vais ter de ter paciência mas hoje num dá... Elas quiseram vir...
-- E o buggy só leva quatro e apertados! -- riu o Zé.
E arrancaram, como se o que eu merecesse fossem meia--dúzia de palavras, para desmarcar um acontecimento planeado há meses. Tudo por causa de umas cabras de umas namoradas arranjadas à pressa.
Fiquei mesmo a ver a cena da orgia que se ía desenrolar, e aquilo deu--me cá uma volta no estômago que tive vontade de abrir a arca e beber as cervejas todas até cair para o lado. Mas depois...
Se os rapazes se iam divertir eu também ía. Voltei a casa e consultei a minha agenda. Depressa me dei conta que tinha cultivado poucas amizades com miúdas, mas mesmo assim enchi o peito de ar e fui à luta.
Liguei para a Alda:
-- Estou...Quem fala? -- perguntaram do outro lado.
-- É o Pedro a Alda está?
-- Não, a Alda saiu mais o namorado, foram ao cinema...
-- Ok, obrigado. -- E desliguei.
Ao cinema uma ova, com o dia lindo de sol que estava, a puxar para a pouca roupa, a Alda tinha ido era para a ‘brincadeira’ mais o namorado.
Tentaria outra.
-- Olá! A Joana está?
-- Está, mas está a dormir, veio ontem da discoteca muito tarde...
Mais uma que tinha andado no martelanço toda a noite e estava estupidamente a dormir de cansaço e a perder um dia lindo. Mas ainda não era altura de desistir.
-- Olá Vi, como vais?
-- Eu? Porquê? -- a coisa não começava bem.
-- Hoje tá um dia lindo pensei...
-- Pensaste o quê? -- o tom era mesmo agressivo. Mais tarde soube porquê: Ela tinha rompido com o namorado! O gajo disse que queria casar virgem e a Vi, chamou--lhe maricas, mas como gostava muito dele, nem sequer cogitou tirar a desforra.
-- Pensei se gostarias de vir comigo até à praia... Tenho cervejas fresquinhas...
-- Ah bom... -- o tom pareceu amenizar, e achei que talvez viesse ainda a ter sorte. -- E depois vamos ao cinema?
-- Se tu quiseres...
-- E depois do cinema... -- disse ela com voz muito suave, -- queres vir a minha casa, subimos até ao quarto?
A ideia parecia-me espectacular!
-- Sim, sim! -- disse eu.
-- Fazemos sexo? -- perguntou ela.
-- Se tu quiseres! -- era claro que eu queria.
-- Olha... -- disse ela suave como veludo, e depois numa mudança de tom surpreendente disparou:
-- Quero que te vás f... -- e desligou.

06 fevereiro 2004

Deixa-me


A vida às vezes é tão complicada que se armadilha e entretece no objectivo de nos tornar loucos! O amor, ou a sua ilusão são a maior das loucuras. No fundo andamos todos frustrados à procura da felicidade.
Viciamo--nos no sexo, nas drogas ou no trabalho, e são paliativos para este vazio que sentimos dentro e que cresce e se adensa até ocupar todo o nosso íntimo. É perverso, uma doença muito pior do que o cancro. E o que se faz? Há muitas estratégias e todas elas são inúteis, porque não há nada a fazer. É somente um engano julgar que podemos ser felizes. Ou então se o somos, é porque somos ignorantes em qualquer sentido e a futilidade da vida não nos consegue alcançar. Creio que é também por isso, que preferimos consumir ao invés de pensar.
O consumo é outra droga.
Fiquei sem ela há muitos anos atrás. Pensava ter deixado isso num lugar remoto, mas afinal transportei essa mágoa o tempo todo. Sim, eu sei o que perdi...
Também eu outrora abriguei sonhos e vivi. Desisti dele, do sonho mais belo e passei a morrer, a acomodar--me, a desistir, a não me importar.
Na ausência dela, aprendi a ausentar--me. Era a minha maneira de lidar com a dor.
Amei o quanto pude e o quanto não devia. Talvez fosse demasiado amor para uma pessoa só, e depois disso andei a distribui--lo conforme calhou ou pude ou deixei. Não me importava.
Acho que ainda hoje não me importo. Andei assim sem rumo ao acaso, ao sabor do vento. E fui tombar no que sou hoje.
Não me apetece lutar, nem ter sonhos. Já me disseram que esta é a estratégia do zombie, mas não leva a lado nenhum, é apenas desperdício.
Às vezes acho que a vida é isso mesmo.
Queria ter uma esperança, mas morreu quando a deixei partir. E como é a última coisa a morrer (a esperança), demorou muito a partir.
Chegou agora a altura de te enterrar! De me libertar da esperança que tu encerras ou da dor, ou de tudo o que quis que fosses na minha vida. De tudo aquilo que te deixei ser na minha vida. Desculpa!
Mas tens de deixar de me perseguir por entre as minhas memórias e o meu desejo de amar em plenitude. Não tens lugar aqui. Não podes ter ou endoideço ou morro, porque ando por aí. Morto.
Deixa--me resssuscitar e partir de novo pelo resto dos caminhos que me restam ainda. E se não puder ser feliz, deixa--me pensar que ao menos posso tentar!

05 fevereiro 2004

Tudo


Dantes éramos capazes de sonhar em conjunto. Hoje não falamos, nem sonhamos. Talvez se tenha perdido algo. Ou talvez tenha de ser assim, neste tempo de relações passageiras, alimentadas de bytes e de bits. Acho que a mim são cada vez mais bits (=pedacinhos?).
Acho que a virtualidade cria, recria e desfaz os sonhos, mas não é um sonho. Porque um sonho desfaz-se na manhã ao acordar, e podemos olhar para o lado e encontrar algo ou alguém. E serenamos as inquietudes, ou aumentamo-las, mas que importa? Sempre há alguma coisa que nos toca, nos atinge.
Talvez por isso te afastes. Não porque queres, mas antes porque queres outra coisa, mais palpável, mais real, mais sensível. A virtualidade amputa-nos.
Sim, soube disso quando me pediram que viajasse e fosse em pessoa resolver um assunto importante. Não consegui sair de casa. Dei por mim prisioneiro do conforto, do comodismo, do estar. Para quê sair e enfrentar o frio e a realidade das coisas, quando daqui, da segurança e conforto do lar, posso chegar a todo lado?
Sim, ela pediu--me que se a amasse, não lhe desse toques de telemóvel ou mandasse mensagens, nem queria teclar comigo, nem ver-me na webcam... Queria sentir o calor do meu corpo, a carícia das minhas mãos, o meu corpo...
Não consegui e apesar de tudo...
A virtualidade tira-nos tudo e ela era tudo!

04 fevereiro 2004

Kriptos


O espaço serve de palco à reverberação das palavras que ricocheteiam nas paredes, nos móveis e em nós, que estamos sós. Mais solitários porque estamos juntos, banhados em sonoridades que perderam o sentido, transformando-se agora num ruído de fundo, que já pretendeu ser comunicação. Os sons são como poalha que nos inunda e incomoda. Pelo meio ficam palavras que não querem dizer nada, são como gritos de naufrago no troar da tempestade. As palavras ficarão mais espessas e mais líquidas. Morreremos nadando, sabendo que é para nada.

03 fevereiro 2004

O Ovo de Rá


Ao subir a Montanha Negra, amaldiçoava secretamente o vício de leitura de Ratapone. Ele era o meu Mestre, mas acho que o facto de ler livros a mais lhe turvara um bocado caixa dos pirolitos! Eis-nos ali depois de atravessar as Terras Sombrias, um conjunto de pàntanos fétidos onde se ficava doente só de respirar, para chegar à Montanha Negra, onde segundo Ratapone, viva um eremita que podia indicar-nos o caminho que em tempos idos o sacerdote egípcio Memeth tinha tomado. Ratapone tinha lido velhos relatos sabe-se lá em que livros bolorentos e de certeza respirara algum fungo psicotrópico, que o fizera crer naquelas histórias todas.
Tinha tentado chamá-lo à razão e quase me bateu. E agora ali estávamos a praticar alpinismo! Era uma comitiva gira, eu (o seu discípulo), Godo (o seu criado), e Helmut um lobo que falava, vá-se lá saber porquê! Helmut também não ía contente, demonstrando isso por ir todo o caminho a rosnar, só Ratapone na frente parecia ir contente. Para mim uma espécie de contentamento de alguém que tomou qualquer coisa.
Quando nos sentamos no meio de um dos muitos fétidos pàntanos das Terras Sombrias, Godo segredou-me que temia pela sanidade mental do seu amo. Tal tipo de confidência, por parte de Godo era raríssima, se é que alguma vez acontecera! Mas Godo seguiria Ratapone até ao inferno se fosse preciso e tenho a certeza que arranjaria maneira de lhe servir um refresco!
Estávamos a trepar a Montanha Negra há dois dias, e se eu não tinha ideia alguma do caminho que devíamos seguir Ratapone consultava o seu bloco de apontamentos e dva risadinhas, que em vez de me transmitirem alguma tranquilidade tinham o condão de me pôr nervoso.
Ratapone mandou que nos abrigássemos para passar a noite, e Helmut passou para a frente a farejar e disse:
-- Sigam-me...
Ratapone só coleccionava aberrações. Helmut um lobo que falava. Godo era a pessoa mais fiel que se podia ter, e desenrascado como ninguém, apesar de magro e aparentemente frágil. E eu? Bem, Ratapone dizia que eu era inteligente… Deve bastar!
-- Estamos perto, muito perto. Em breve estaremos a falar com o eremita...
-- Mestre Ratapone, quantos anos tem o livro que leu?
-- Sobre o quê, meu filho?
Detestava quando ele me chamava de filho.
-- Onde leu sobre o eremita...
-- Oh! Esse... deve ter mil anos...
-- Mil anos?!!! Então de certeza que o que vamos encontrar não é um eremita, é um cadáver!
Helmut o lobo que falava riu, e eu apanhei uma bordoada pela cabeça abaixo.
-- Às vezes chego a duvidar da tua inteligência meu filho...
Pensei para comigo que eu duvidava era da sanidade mental do paizinho.
-- O eremita da Montanha Negra, tem uma poção à base de ervas e de cogumelos...
-- Vou ver se apanho uma lebre... -- interrompeu Helmut.
-- Este Helmut é muito... pragmático! -- disse o Mestre Ratapone com algum azedume por ter sido interrompido.
-- Vou tentar arranjar algo para temperar a lebre senhor... -- disse Godo, sem esperar licença para se retirar.
Fiquei sozinho mais o Mestre, e senti-me tentado a pagar-lhe na mesma moeda, por me ter dado uma bordoada, mas depois contive-me.
-- Mestre, porque vamos consultar esse tal eremita?
-- Porque só ele sabe o caminho que Memeth, o sacerdote egípcio percorreu através das montanhas para depositar o ovo de Rá.
-- Ovo Mestre? A esta hora tá podre...
Antes que tivesse acabado apanhei outra bordoada, e antes que me pudesse lançar sobre o velho Mestre senil, apareceu Helmut e Godo.
-- Já apanhei uma lebre... -- disse Helmut.
-- Vou assá-la... -- acrescentou Godo.
-- Que maravilha! -- disse o Mestre.
-- E eu perdi o apetite! -- resmunguei.
-- Posso ficar com a tua parte? -- perguntou Helmut, com um sorriso escarninho.
-- Podes, se apanhares as bordoadas do Mestre que me estão destinadas!
Foi uma risota geral e o ambiente desanuviou um pouco.
-- Filho, devias prestar atenção... -- falou o Mestre dirigindo-se a mim. -- O eremita não morreu, tenho a certeza. E quanto ao ovo...
-- Gosto de ovos... -- murmurou Helmut.
-- Helmut, é um ovo sagrado... -- esclareceu o Mestre.
-- Não se pode comer? Então qual é o interesse?
Ri-me, e apanhei outra bordoada.
-- Mas só eu é que apanho?! Bolas!
-- O Helmut tem desculpa é apenas um lobo, tu não. E não se deve gozar da ignorància dos outros...
Helmut e o Godo riram, mas eu não achei piada, e afastei-me estrategicamente do alcance do bordão do Mestre.
-- Trata-se de um ovo sagrado que Memeth o sacerdote egípcio trouxe do Egipto, para que ninguém o pudesse encontrar...
-- Bastava tê-lo atirado a um pàntano das Terras Sombrias, que já ninguém o encontrava!
-- Sim, mas esse não seria o destino adequado a um ovo sagrado.
-- Pois... Era preferível chocá-lo. -- disse Helmut -- Sempre daria um passoroco qualquer...
Acho que o Helmut pensava com o estômago.
-- Não é um ovo de pássaro nenhum... -- disse o Mestre. -- É o ovo da criação...
-- O quê?! -- perguntei espantado e escandalizado.
-- Sim, esse ovo contém o poder da criação, é a chave para a imortalidade... -- e o Mestre Ratapone, mergulhou dentro de si. -- Não podemos deixar que caia nas mãos erradas...
Helmut piscou os olhos e enroscou-se próximo da fogueira para dormir. Godo atiçou a fogueira. E eu pensei que estava metido com um velho senil!

02 fevereiro 2004

Representando


O corpo alterara-se, e estava em crer que a sua má disposição, que afinal toda a má disposição dos velhos se deve a um sentir um corpo velho. O nosso cérebro regista a decrepitude do corpo e não gosta, marca como falta de qualidade e sente saudades do corpo que já foi, cheio de vitalidade. Mas as saudades de um tempo mais viril, enchem-no de frustração.
Acresce a esta a tomada de consciência da vida que podia ter sido ao invés da vida que foi, e que é. E já nem sequer há tempo para dar um retoque. E com que pincelada corrigiríamos uma borrada?
Portanto, envelhecer só pode trazer rabugice. Ou então essa doce serenidade de quem se contenta com a sua sorte e fez as pazes com a vida. Esse alguém parte sem derrota, é mais uma rendição honrosa.
E descobrir que a vida foi gasta a amar quem não merecia? Quem não estimou o privilégio de o querermos dentro do coração? É apenas demolidor. Mas não deixa de ser bonito, como o pôr-do-sol que ao apagar o sol, tinta os céus em aguarelas gigantescas.
A despedida deve ser assim em tom de festa...
E porque não amar até ao fim? Será uma vingança sublime de tudo o que a vida nos fez pensar que perdemos. Podemos ser forçados a sair do palco, mas faremos isso com estilo, um drama de amor, ou amando, como heróis desconhecidos de um grande romance. Mas será nossa a última deixa.
Se te perguntarem:
-- Sentiu-se usado?
Pergunta em troca:
-- Sim, mas fui bem usado! -- e sorri.
A vida nunca é muito como gostaríamos que fosse, é mais como tem de ser. E neste tem de ser, devemos lembrar que é como uma peça de teatro, temos de respeitar o que escreveu o autor, por muito que nos apeteça improvisar!
Não, não falo de destino, estamos sempre a saltar entre peças. Umas vezes fazemos de bandido, outras de anjo. O que resta de verdadeiro? Nós.
Por isso devemos ir a rir, porque no fim, ainda estaremos a representar.
Nesta vida somos todos actores, mas as escolhas nem são muito variadas! Umas vezes somos pobres diabos, outras, diabos pobres. Nem toda a gente fica com os papéis principais ou a garota de estalo! Os heróis são poucos e regra geral são sempre os mesmos. A maioria não passa de figurantes, ou às vezes de figurões.
Pois se assim é, que antes de abandonar o palco o façamos com estilo, à nossa maneira. Um papel digno, não de alguém que sai vencido, mas alguém que deixa uma marca. E não há melhor marca, do que ficar no coração dos espectadores!
Quando morrer, quero deixar uma legião de fãs!

01 fevereiro 2004

O programa errado


Atirava entretido pedras na água que faziam ricochete na superfície e pareciam desafiar as leis da gravidade e voar. Pedras que voam! E nem devia ser admiração, pois o que são os planetas, se não calhaus que voam num espaço onde a gravidade é a rainha?
Olhos os céus e pergunto se entendemos qualquer coisa do projecto. Acho grande demais, admirável demais, e nunca acreditei que fosse fruto do acaso.
Mas às vezes, ponho-me a pensar: E se foi?
Se foi, um acaso cria coisas demasiados belas, e tão fúteis então (porque são apenas acaso), que mais valia que nunca tivessem existido!
Se a vida que experimentamos, é apenas um fruto do acaso, é um fruto amargo e sem sentido. Um caso mais cruel, do que a existência de um Deus que nos tenha esquecido por aqui, neste calhau apaixonado pelo Sol.
Sei que de certeza, quando a vida nos faz parar para pensar, já vos atravessou a angústia do que tudo isto significa. Talvez tenham tentado atirar esses pensamentos para dentro de um qualquer buraco negro, onde lançamos as ideias que não queremos que nos importunem mais. Mas elas saiem de qualquer buraco negro, para nos virem assombrar o sossego de um quotidiano anestesiante.
Não sei se pensam na vossa existência enquadrada no drama cosmológico, mas eu às vezes não consigo evitá-lo. Pergunto-me com montanhas de porquês, e ainda assim e apesar de algumas respostas, sinto-me submerso não pela grandeza do todo, mas pela consciência da minha pequenez.
Ás vezes penso que sou uma borboleta a agitar as asas, tão insignificante quanto ela. A vida passa breve, e ao contrário da borboleta tenho a desvantagem de projectar-me no futuro e saber que a eternidade que almejo e quero, pode não passar de uma quimera. De apenas um sonho perseguido desde tempos imemoriais. Nunca me convenceram de que a morte é uma coisa natural... Se fosse, já devíamos ter aprendido a lidar com ela, sem ser com lágrimas. A morte é apenas uma doença que sofremos a vida inteira. O mal é que não temos a cura.
Desculpem se vos perturbo, mas estou convencido que o projecto inicial previa que fossemos eternos. Alguém carregou o programa errado...

30 janeiro 2004

Triagem de Manchester



Leia antes esta notícia (está em inglês)

O Primeiro recomendara a maior descrição, iríamos reunir-nos na sua quinta em preparação para a habitual reunião do conselho. Levei um bloco de apontamentos, e pedi ao motorista que me deixasse e só voltasse quando eu o chamasse.
Em breve todos os que o Primeiro convocara estavam lá. Tomamos um café, e dirigimo-nos para uma das salas. Um dos homens da segurança verificou com um aparelho se havia alguns dispositivos de escuta, mas a sala estava limpa.
-- Pedi-vos para aqui virem, porque tenho um assunto da maior urgência a falara convosco... -- começou o Primeiro. -- O raio da Saúde gasta mais do que todos os outros juntos!
A das Finanças abanou a cabeça em concordància.
-- Qualquer dia, os impostos vão todos para pagar salários aos funcionários e a porra dos gastos da saúde! -- continuou furioso o Primeiro. -- Quero soluções!
Falou o da Saúde:
-- Primeiro, compreendo o seu mal-estar, mas que é que quer? Todos os velhos, recebem reforma e vivem à custa de remédios!
-- Nem percebo como conseguem comprar o carago dos medicamentos com as reformas que lhe pagamos... -- murmurou a das Finanças.
-- É um milagre! -- acrescentou o da economia.
De facto viver com uma reforma miserável, comprar medicamentos que levavam metade ou até mesmo a reforma por inteiro, era inacreditável como alguns reformados ainda conseguiam viver.
-- Quero soluções! Raios partam! -- Vociferou o Primeiro. -- Qualquer dia num há dinheiro para a nação nos pagar! Querem ir para o desemprego? Vão viver de quê, seus imbecis?
Ficaram calados. O da Economia abriu a boca:
-- Em Inglaterra tiveram o mesmo problema...
-- Ai sim? E como resolveram a coisa?
O da Saúde aproveitou para falar:
-- Fizeram um novo método de triagem...
-- Que raio é isso? -- perguntou a das Finanças.
-- É o que tu tens para perdoar impostos à Banca, e deixar prescrever dívidas ao fisco ao Amorim... -- atirou o da Economia.
-- ‘Tás muito engraçadinho, vê lá se queres que te corte o orçamento... -- rosnou a das Finanças.
-- Por favor, senhores! -- disse o Primeiro. -- Estou a tentar resolver o carago de um problema sério, não estou aqui para brincar à apanhada!
O da Saúde voltou a falar:
-- Os ingleses, começaram a fazer triagem nos hospitais... Determinavam nessa triagem quem seria atendido em primeiro lugar...
-- Traduza lá para a gente perceber... -- comentou o da Economia.
-- Quer dizer que eles não atendiam toda a gente com o mesmo grau de cuidado... Havia alguns que podiam esperar...
-- Estou a ver... -- sorriu a das Finanças.
-- Explique lá melhor, por favor... -- pediu o da Economia.
-- Doentes crónicos, que só se penduram no sistema de segurança social, e nunca ficarão curados eram relegados... Da mesma forma os reformados...
-- E isso resolve alguma coisa? -- perguntou o da Economia.
-- Claro que resolve! -- vociferou a das Finanças -- Se morrerem poupamos em tratamentos e com sorte em reformas e em baixas! Percebe agora?
Percebia-se claramente.
-- Ahhhhhh... -- disse espantado o da Economia. -- Dessa só um nazi é que se lembrava!
-- Não seja parvo! -- ripostou a das Finaças.
-- É uma excelente ideia! -- aprovou o Primeiro.
Ficou tudo calado.
A das Finanças voltou a abanar a cabeça em sinal afirmativo.
-- Já repararam? -- convidou o Primeiro. -- As nossas famílias não serão afectadas, temos seguros de saúde, clínicas privadas e reformas gordas. Ah Ah Ah...
O riso do Primeiro soou num tom sinistro.
-- Quero isso aprovado no próximo conselho. Conto com o vosso apoio. -- concluiu o Primeiro.
-- Já agora como se chama esse método de triagem tão interessante? -- Quis saber a das Finanças.
Responde o da saúde:
-- Triagem de Manchester...

29 janeiro 2004

Outra carta de amor...


Amor,

Escrevo-te esta nova carta, para que não gastes as antigas, à força de repetidamente as leres. Fica tranquila, pois reitero nesta o que já te tinha dito nas anteriores: Que te amo!
Também como podia ser de outro modo? Se o tempo que passa, me faz conhecer-te melhor? E igual à ostra no teu íntimo, escondes uma pérola!
Sei que já não está na moda escrever cartas de amor, mas que me importa? E tu importas-te que as escreva? Acho que não… Afinal, continuas a ler as antigas.
Deixa que te conte que o tempo não te rouba o encanto, apenas renova os teus mistérios, e me incita a descobrir-te de novo. É como quando depois da chuva num dia de Verão, a luz parece mais clara, as cores mais saturadas, a nitidez da paisagem parece saída de um desenho perfeito.
Sim, tens razão, exagero. O desenho nunca poderia estar ao teu nível, por muito perfeito que fosse, seria sempre um esboço de ti.
Às vezes gostava de ser cego. Assim deixarias que me aproximasse e te tocasse, sem qualquer constrangimento. Ou então talvez pudesse ser ao menos escultor. E tu posarias para mim… Mas sei que não ficaria bem, as minhas tremeriam todo o tempo!
Tens razão, exagero de novo. Sou cego, pois só te vejo a ti, e as minhas mãos tremem todo o tempo com a vontade louca que tenho de te tocar!
Vou terminar por aqui, tem de ser. É que o tempo me é pouco para te sonhar!
Fica bem amor, espera-me em breve,

Do teu mais que tudo

28 janeiro 2004

Intervalo


Perdido. Actuara toda a vida e agora só no meio do deserto, não tinha público, era só ele mesmo. E a vontade que tinha era de rir. O deserto era belo, um mar de areia em tons dourados. Merecia um Óscar, porque fora um excepcional actor. Toda a sua vida fora actuar para os outros, representar um papel.
Agora estava só com os seus demónios, mas o deserto, a ausência de gente, a leveza de não ter que interpretar um papel, dava-lhe uma paz, que nunca antes sentira. Olhou para dentro de si, não para procurar, não para encontrar, não para descobrir, mas apenas para entender se a sua vida tinha qualquer sentido.
Poderia interpretar ainda um último papel? O do herói que sobrevive? A tentação era forte.
Sentou-se na areia de uma duna alta, os grãozinhos rolavam um após outro, depois que os sobressaltara. Talvez a duna representasse a vida, e os grãos de areia fossem os instantes que guardámos. Tinha muitas imagens na cabeça, milhares delas, da sua permanente representação. Mas eram apenas recordações duras, como areia. Onde estava o sentimento?
Deixou-se levar no corrupio louco das recordações sem qualquer nexo. Eram imagens a invadi-lo, como se fosse um resumo de toda a sua carreira, numa qualquer sessão de prémios da Academia. Mas não eram sequências de nenhum filme, eram restos da sua vida.
Tinha tido algum sentido?
Forçou-se a olhar para dentro de si, não havia ali ninguém, o tempo era dele. Riu-se outra vez. Sentia-se nervoso por estar frente a frente consigo mesmo.
-- Olá! Sou o António… -- riu-se de novo, fingindo apresentar-se a si mesmo.
"Não tem graça!" -- pensou.
Via-se como um menino, sensível, a esconder-se de alguém (de si mesmo?), atrás de uma porta. Lá dentro, onde ele estava como menino, havia muita luz, tanta como a que há no deserto no pino do dia.
-- Posso entrar? -- perguntou ele ao menino.
O menino continuou a espreitar por detrás da porta, agora um pouco mais aberta, a cara do menino num sorriso. Se ele era aquele menino, até que era simpático. Avançou, rumo à porta. E quando avançou, o menino pareceu assustar-se numa cara de medo, e rápido bateu com a porta.
Ainda não seria daquela vez que conseguiria entrar. E enquanto não conseguisse entrar, teria que imaginar o que o menino poderia ser. Representaria ainda mais uns quantos papéis, na tentativa de descobrir um em que se sentisse confortável.
Deitou-se na areia e olhou as estrelas, no ar límpido do deserto. Era noite. Em breve pegaria no sono, ficaria bem. Seria intervalo.

27 janeiro 2004

NISAC20


Vinha a sentir-se mal há vários dias, uma terrível dor de barriga, e sentia-se inchada. Foi ao médico de família e este mandou fazer uma ecografia.
-- Pois é, fica tranquila que não estás grávida... -- disse-lhe o médico.
Ela sorriu:
-- O que é Sr. Doutor?
-- Bem... pelos resultados são quistos... é uma coisa que Às vezes aparece. Só que este quisto está crescido, tem 4 cms. Parece que estás grávida de 2 meses...
-- E o que me aconselha Dr?
-- Acho que está na hora de tirar isto. é o que penso... Mas se quiseres outra opinião, acho que fazes bem.
Ela ficou a matutar nas palavras do Dr e aquilo soava-lhe a coisa séria. Teve medo. Seria um cancro?
-- Sr. Dr poderá ser um cancro?
O médico ficou calado a olhar para ele e depois disse:
-- Não posso dizer... Mas depois da operação e da biopsia, podemos saber.
-- E se for Sr. Dr.?
-- Se for, quanto mais cedo dermos cabo dele, melhor! Temos mais hipóteses quando os descobrimos no início...
-- E o Sr Dr acha que com 4 cms estamos no início?
O médico que se tinha posto de mim para lhe dar a notícia voltou a sentar-se atrás da secretária.
-- De facto num é famoso... Mas não é assustador, se for benigno...Vou receitar-te uma coisa para as dores entretanto. Mas acho que deves pensar na operação o mais rápido possível.
Saiu perturbada e tinha em exames em breve. E aquelas dores horríveis... Saiu com todos os medos possíveis e impossíveis a bailarem-lhe no pensamento.

-- Não, Dr Leonel, ainda não temos os resultados toxicológicos nos primatas... -- respondeu Alex, o estagiário mais recente da Med-Gen, a empresa farmacêutica multinacional dedicada à pesquisa de novas drogas no combate ao cancro. Ele estava a trabalhar na unidade avançada de pesquisa do cancro dos órgãos reprodutores femininos, em especial do cancro do ovário. Trabalhavam na altura mais 5 pessoas na equipa, desenvolvendo uma espécie de vacina para o cancro do ovário. Várias empresas experimentavam esta original linha terapêutica. Tratava-se de vacinar os pacientes contra os seus próprios cancros.
De qualquer forma nos últimos 20 anos a sobrevivência ao cancro do ovário tinha aumentado 5%, e as expectativas para os novos tratamentos eram um aumento de sobrevivência de 15%! O que era óptimo para o cancro que de todos os do órgão reprodutor feminino era o mais mortífero. A terapia mais avançada para o cancro do o vário era o transplante de células estaminais e altas doses de quimioterapia. No fundo era apenas uma bomba para matar mosquitos e reduzir os efeitos colaterais. Pretendíamos algo melhor. Outra estratégia recente, eram os inibidores de proteína kinase que tinham por função desligar um enzima nas células cancerosas e que causa o crescimento anormal. Esta terapia parecia dar bons resultados, mas não era garantia de remissão do cancro. O elemento mais "fora do baralho" da equipa era o Prof. Herberto um apaixonado pela botânica. Formara-se em medicina, depois fizera carreira em oncologia, depois tirou farmácia mas apaixonou-se pela botânica e formou-se também em biologia com especialização em botânica. Estava convencido que a "árvore-da-vida" mencionada na Bíblia no livro de Génesis não era mitológica. Acho que era por isso que era olhado como excêntrico. Era afável, simpático, uma espécie de aventureiro de olhos escuros mas que faiscavam como lume.
-- Nunca mais me arranjam orçamento para ir para a Amazónia Alex... -- desabafou o Prof.Herberto. -- Sendo assim, temos de trabalhar com as plantas da casa! -- E riu-se.
Alex gostava de trabalhar com o Prof. Herberto, e o professor gostava dele.
-- Tinha graça, se a solução dos problemas oncológicos estivessem na grama, não era Prof.?
-- Tens razão meu filho, mas se isso fosse verdade, as vacas eram eternas!
Riram-se os dois. De facto a prova que a vida eterna era possível, centrava-se nas células cancerosas. A sua vitalidade excepcional, mostrava que se fosse possível controlar o seu crescimento, isto é, se essas células crescessem no lugar certo, podíamos ser eternos. Esse era a secreta investigação do Prof. Herberto. Ele não queria combater o cancro mas aproveitar-se dele!
-- Anda cá Alex! -- chamou o Prof Herberto.
-- Sim professor...
-- Aqueles ratos... que tu sabes, como estão? -- O professor referia-se a uma experiência paralela, que ele e o professor estavam a desenvolver. O professor tinha isolado uma substância numa planta, que Alex desconhecia, tinham-na administrado a ratos com cancro.
-- Professor, os ratos estão bem... Aparentemente. Não morreu nenhum, embora os do grupo de controlo já morreram todos. -- disse Alex. O professor sorriu.
-- Tiras-lhes um scan, vê como estão os tecidos tumorais. Diz-me isso logo tenhas os resultados. E... cuidado hein!
Alex sorriu, parecia que estavam a fazer qualquer coisa clandestina. E até estavam! A investigação era completamente desconhecida, e estavam a apontar os resultados nos PCs pessoais em vez de nos servidores da empresa.

Alex não conseguia acreditar nos resultados!
-- Professor!
-- Calma rapaz... -- aconselhou o Prof. Herberto. -- Que é que há?
-- é espantoso professor! Não há células tumorais!
-- O quê?!!
-- é isso professor! -- dizia Alex -- Nunca estiveram tão saudáveis! Fiz análises a tudo, e está confirmado, estes ratos estão cheios de vitalidade, eu diria até mais jovens professor!
-- Tens a certeza que não trocaram os ratos? -- perguntou com alguma ansiedade na voz o professor.
-- Tenho! Aliás eu e a estagiária da sala dos animais damo-nos muito bem...
O Professor sorriu:
-- Temos de testar isto em alguém...

Ela continuava a ter dores de barriga. E tinha medo de ir à operação. Decidiu consultar o melhor médico que havia, deram-lhe o nome do Dr. Herberto. Decidiu ir à consulta.
-- Olá menina... -- cumprimentou afável o Dr.Herberto.
-- Dr. aconselharam-me a ser operada, como vê aí na ecografia, tenho quistos nos ovários...
-- Já vi menina... Tem um quisto grande.
-- Será um cancro? -- perguntou ela com medo na voz.
O Dr Herberto sorriu:
-- Pode ser... -- o Dr. Herberto tinha visto também as análises especiais que mandara fazer e sabia que a miúda tinha mesmo um cancro. Nem precisava de fazer qualquer biopsia! Era uma questão de tempo até as metástases começarem a levar "o mal" a outros órgãos.
Decidiu arriscar:
-- A menina num quer ser operada, não é?
-- Se fosse possível evitar, preferia não ser Sr Dr.
O Prof. Herberto coçou o queixo.
-- Há uma nova substância que a pode ajudar... Mas está ainda em fase experimental. Não sabemos os riscos...
-- Acha que devo Sr Dr?
O professor detestava sempre dar aquelas notícias, em especial quando se tratava de gente muito jovem como era o caso.
-- A menina tem um cancro e este já se começa a espalhar através da corrente sanguínea... é uma mera questão de tempo.
A moça ficou branca, os olhos rasos de lágrimas.
-- Lamento. -- disse o Prof Herberto.
Ela respirou fundo e recompôs-se. O Prof Herberto gostou da atitude.
-- Quanto tempo tenho?
-- Sinceramente não sei... Tudo depende de onde ele vai surgir da próxima vez.
Ela respirou fundo outra vez. O Prof Herberto percebeu que esta não era uma miúda qualquer.
-- Esse seu medicamento novo, dá alguma esperança?
-- Muito sinceramente penso que sim...
-- Posso experimentar?
O Prof Herberto sorriu, a miúda era corajosa:
-- Sim, podemos experimentar.
-- E como se chama esse seu medicamento?
O Prof Herberto nunca pensara nisso! Olhou o nome dela e a idade, e juntou tudo:
-- NISAC20.