15 março 2006

Sombras na Água



Podia ter sido um sonho, porque agora tinha dificuldade em recordar. Não sabia sequer se era importante recordar. O problema é esse, como não sabemos o que devíamos lembrar, não somos capazes de lhe atribuir a devida importância e isso afecta-nos, enerva!
Colocou na mala as suas coisas e tentou colocá-las nos lugares respectivos, como se a mala tivesse lugares próprios para cada coisa. Voltou a enervar-se só de pensar nisso.
Dava conta de que ultimamente se enervava com cada vez maior facilidade. Tinha medo de se estar a tornar um carro sem travões, algo como um desastre na eminência de acontecer.
Pegou um caderno de viagem, que o costumava acompanhar e desfolhou as páginas ao acaso. Havia poemas, esboços de edifícios e de paisagens, às vezes apenas uma frase que sintetizava um pensamento. Ao ver os apontamentos tentou lembrar-se de quando os havia escrito e não conseguia. Aquilo era-lhe familiar, sabia que fora ele o autor de tudo aquilo, mas não se lembrava do quando. Atirou o caderno para dentro da mala, ao acaso e fechou-a.
Desceu as escadas de madeira que foram rangendo à medida que pisou os degraus até ao rés-do-chão. O rés-do-chão estava vazio. Chamou, não pelo nome de ninguém, mas apenas um grito, uma espécie de apelo, na esperança que aparecesse alguém. Não apareceu e dirigiu-se à porta que abriu, o Sol atingiu-o em cheio e cerrou os olhos até se habituar à luz. Havia um longo relvado e para lá dele montes sem nenhuma casa. Olhou em volta. Nada lhe era familiar...
E veio de novo aquela sensação, aquele enervamento miúdo. Onde estava? Como viera ali parar? Tudo perguntas para as quais não achava resposta.
Procurou pensar no seu trabalho, na sua família... E tudo o que lhe vinha à memória, era como os sonhos. Coisas que pareciam lógicas e eram agora desconexas. Ao longe viu o que lhe parecia um vulto, uma pessoa que se deslocava para a casa.
Ficou estático, a pensar se devia correr na direcção do vulto ou ficar ali, aguardando que ele chegasse...
Olhou para a mala na sua mão e reparou que esta tinha um nome que não era o seu. Seria a sua mala?
Porquê era tudo tão dolorosamente confuso? Voltou a olhar e o vulto já não estava lá e a casa não parecia ter a mesma arquitectura de à pouco.
Voltou a entrar na casa. Estava doente. Só podia estar muito doente. Devia deitar-se, alguém viria para tomar conta de si. Depois de entrar notou que as escadas não lhe pareciam no mesmo lugar, por onde ainda antes tinha descido. E depois que subiu, não sabia onde ficava o seu quarto e foi experimentando as portas, até uma abrir.
E quando uma delas se abriu, deixou-se cair na cama e quis adormecer, para que o acordassem daquele pesadelo.
Quando adormeceu, sonhou que o mundo inteiro, todas as pessoas do mundo, eram apenas sombras sobre a superfície das águas...

2 comentários:

Anónimo disse...

Acabei de ler com um aperto angustiante. A tua escrita é de facto inconfundível. Sim somos sombras reflectidas na água do nosso próprio desacerto...
Obrigada pela primazia.
Beijinhos

Anónimo disse...

sei bem o que é isso.