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O país sofreu uma revolução dita
socialista, apenas por puro marasmo e deixou-se acontecer porque o país não
tinha qualquer interesse para a comunidade internacional, visto não ter uma
posição geoestratégica importante ou recursos para explorar. O país era pobre e
pacato com uma população que se dedicava maioritariamente à agricultura de
subsistência e alguma indústria pouco desenvolvida, muito ligada quer à
transformação da produção agrícola ou ligada à construção civil: Fábricas de
compotas e sumos, descascadoras de arroz, fábricas de rações e as de vigas de
pré-esforçado, tijolo e ladrilho. Algumas serralharias, havia uma siderurgia
que funcionava com sucata importada e que às vezes, quase parava porque não
havia dinheiro para comprar a sucata!
O país vivia apaticamente, entre
as festas nas aldeias que aconteciam após as colheitas e os dois canais de
televisão que tinham um horário curto, sendo que o primeiro canal começava
pelas três da tarde e terminava à meia-noite. O segundo canal começava às seis
da tarde e acabava o mais tardar pela uma da manhã, em especial quando o filme
que passavam durava mais um bocado.
Havia um jornal diário, dois ou
três semanários generalistas. Os semanários iam fechando e abrindo, que o povo
não era muito de ler. Os únicos que resistiam eram os semanários desportivos dos
quais existiam pelo menos três e nunca tinham fechado!
Assim a revolução socialista deve
ter surgido por apatia, alguns militares aborrecidos sem nada para fazer a não
ser coçar os genitais, devem ter-se lembrado que seria interessante por o país
nas bocas do mundo, fazendo a Revolução. O povo aceitou sem resistência porque
os militares revolucionários prometeram muito e já se sabe que todos vão atrás
de quem promete, mesmo que seja o Paraíso após a morte.
Claro que pouco tempo depois a
vida voltou ao mesmo de antes e os protestos foram apenas dos saudosos do
passado. As pessoas voltaram às suas atividades quotidianas e o país voltou ao
mesmo ritmo a que estava habituado. Os militares apenas conseguiram uma nota
marginal nalguns noticiários e jornais do mundo com a sua Revolução. Também
eles se sentiram desiludidos e procuraram manter as coisas a funcionar sem
muitas ondas, com alguns esquissos de política de esquerda. Tentaram criar
algumas cooperativas, o que conseguiram com bastante sucesso, já que estas
introduziram alguma mecanização quer no trabalho árduo quer na transformação
dos produtos agrícolas. Assim os bois usados nos trabalhos agrícolas passaram a
deixar de ser fundamentalmente usados como máquina agrícola de lavrar e de
transporte, para passarem a ser criados como animais para produção de leite e
carne. Com isso, a vida melhorou um pouco, sendo que a carne e o leite se
tornaram acessíveis a uma população muito maior, e eliminou a eventual
desconfiança sobre as cooperativas. Também houve cooperativas especialmente
dedicadas à criação de galinhas e de porcos. Assim melhorou muito o nível de
vida da maioria dos cidadãos que por meio das cooperativas agrícolas ganharam
um pouco mais de dinheiro e a produção destas pode ser canalizada para as
cidades que sentiram positivamente esta abundância.
Outras coisas naturalmente
correram pior. Embora a produção agrícola conseguisse a autossuficiência e as
indústrias existentes fossem dando para o gasto, não era propriamente uma
sociedade de abundância. A aposta após a Revolução foi na saúde e na educação.
Os militares no governo deixaram entrar inclusive algumas Organizações Não
Governamentais internacionais que ajudaram a criar o sistema nacional de saúde
que antes não existia e o povo gostou, porque teve acesso pela primeira vez a
cuidados básicos. Às vezes faltavam medicamentos e algumas regiões tinham falta
de médicos. Isso obrigou o governo revolucionário a investir na educação.
Apenas havia uma Universidade no
país que cresceu bastante através de um generoso orçamento e aos poucos foram
formados mais médicos. Estes estavam proibidos de sair do país até quinze anos
após a sua formação. Compreende-se que um país pobre tivesse de recorrer a
estas violações dos direitos humanos, em especial da liberdade de circulação,
já que o governo dizia onde o médico recém-formado ia exercer. Os novos
engenheiros começaram a entrar nas indústrias levando a melhorias graduais que
tornaram menos aleatória a qualidade dos produtos e até a fazer surgir alguma
inovação que às vezes era abafada pelos burocratas do partido. Desses falaremos
de uma classe em particular e do seu destino: Os inspetores.
Como surgiram os inspetores?
Um velho barco transportando uns
quantos contentores de latas de spray lubrificante (de uma marca mundialmente
conhecida), atracou no único porto do país devido a uma avaria. O navio foi
reparado, mas isso levou a que houvesse um atraso na entrega dos contentores e
o importador queixou-se da demora e acionou o seguro. Por sua vez a seguradora
quis que fosse o país a assumir a despesa devido a “demoras inadmissíveis numa
reparação simples”. Mas o país não tivera qualquer culpa pois ficara esperando
que lhe fossem entregues as peças necessárias e recusou pagar! Aliás o país
reclamava ser pago pela reparação ou ficava com o barco e o conteúdo. Isto
claro não era do agrado do armador que por sua vez acionou o seu seguro e
puseram esta gente toda a discutir o assunto. O elo mais fraco desta discussão
era mesmo o país da revolução popular. Finalmente conseguiram chegar a acordo e
o país ficou com os contentores e seu conteúdo a título de pagamento da
reparação. Foi assim que o país se viu com uma abundância surpreendente de
latas de spray de lubrificante!
Num golpe de marketing político o governo socialista
decidiu que depois da indústria ser abastecida, segundo as suas necessidades,
as latas iam ser providenciadas ao povo! Mas não da forma comum, por
disponibilizar em loja as ditas latas. Como sempre nestas sociedades de
economia planificada a coisa é sempre coberta por complicações desnecessárias,
sempre estabelecidas com uma lógica que parece correta, mas que acaba
ensarilhando tudo.
Anunciada a medida como o permitir
a todos o acesso ao lubrificante fantástico e mostrando como a negociação do
governo com as seguradoras fora uma vitória do povo, o governo com pompa e
circunstância declarou a formação de inspetores que levariam a todos a
oportunidade de usarem quando precisassem o lubrificante em spray e que isso
era um enorme progresso tecnológico disponível a todos, enquanto nos países
capitalistas só quem tinha dinheiro podia adquirir tal coisa!
A população não ligou coisa
nenhuma para o anúncio da medida e preferiu continuar a discutir futebol.
Embora o país fosse pequeno, existiam dez clubes na primeira divisão, com um
ferrenho séquito de torcedores. A apatia apenas mudou quando os inspetores
começaram a chegar às vilas e aldeias junto com o representante do partido
único.
Os inspetores candidataram-se depois
da publicação de anúncios no jornal, mas passou rapidamente de boca em boca, e
como começava a haver uma juventude mais bem formada pelo acesso à educação e
não absorvida pela agricultura, as cooperativas ou a pouca indústria, a
profissão parecia apelativa por comparação à agricultura que devido à
modernização já não sentia necessidade de tanta mão d’obra.
O partido examinou todas as
candidaturas e deu preferência, como seria de esperar, aos que tinham um mínimo
de educação e, portanto, sabiam no mínimo ler, escrever e contar. Portanto a
maior parte dos inspetores eram gente nova em início de vida com essa
arrogância de pensar que se sabe tudo e que o futuro pode ser eterno e
brilhante!
A atribuição de um inspetor a toda
aldeia era um espetáculo com a chegada de veículos militares que traziam o representante
do partido e organizavam uma festa de posse para toda aldeia com fanfarra, ou
algum cantor popular, porco no espeto, bifanas, frango de churrasco e muita
cerveja e tudo à borla! Ora isto num quotidiano rotineiro e pobre era um
acontecimento sempre bem-vindo. O inspetor era anunciado, e era explicado o
mecanismo de utilização do spray.
O discurso do representante do
partido (e por consequência do governo), dizia qualquer coisa como:
“A Revolução popular socialista
está no combate por uma sociedade melhor, com abundância para o povo! Sendo que
agora vai disponibilizar a todos o magnífico lubrificante em spray que nos
países capitalistas apenas quem tem dinheiro pode comprar! Mas aqui no país da
Revolução popular socialista está disponível gratuitamente a todo o cidadão.”
Aqui chegados costumava haver
aplausos até para incentivar o representante do partido a acabar mais depressa,
pois só no fim do discurso é que podiam aceder aos comes e bebes à borla!
O representante continuava:
“De maneira a permitir que todos
o possam utilizar e que nenhum gaste mais que a sua parte, designamos um filho
da terra como inspetor: o jovem Miguel Balukov aqui presente, habitando na
vossa linda aldeia de Melania!”
Mais aplausos como era de esperar.
“Será a seguinte a forma da distribuição: Cada cidadão tem
direito a um máximo de 15 segundos de spray até se gastar a lata, que então
será substituída por uma nova, fornecida a partir dos armazéns centrais do
governo. O cidadão preencherá um requerimento e se não souber escrever o
inspetor escrevê-lo-á por si. Entrará numa lista de espera que será satisfeita sequencialmente
desde o mais antigo a entrar até ao mais recente. Cabe ao inspetor cronometrar
as esguichadelas e guardar a lata que levará a cada cidadão. O governo pensa
desta forma trazer uma melhoria à nossa qualidade de vida. Sempre a pensar no
povo. Glória à Revolução popular socialista!”
Havia mais aplausos e logo de
seguida uma corrida à cerveja, às bifanas, ao frango de churrasco e ao porco no
espeto! Nalguns lugares o porco no espeto era servido no final com uma feijoada
e em algumas aldeias havia até vinho para quem preferisse. A música dava
pretexto a bailarico. Todo o mundo ficava feliz!
Este tempo de designação de inspetores
durou cerca de um ano e era anunciado com destaque nos noticiários dos dois
canais de televisão existentes. Como sempre isso despertou o interesse por um
curto período de tempo, até rapidamente se transformar numa rotina, a quem a maioria
passava a não prestar nenhuma atenção.
Como começaram a surgir problemas
Vejamos como a situação se
desenvolveu através de alguns episódios que ilustrarão bem o que aconteceu.
A maioria dos inspetores que não
eram casados, casaram depressa já que a profissão de inspetor parecia cheia de
futuro, já que este era um funcionário público. Nos países socialistas o que há
mais são funcionários públicos, que eram os únicos que tinham uma certeza de
ter vencimento ao fim do mês. Portanto, parecia um emprego seguro e
razoavelmente bem pago, quer em dinheiro, quer em senhas alimentares.
“Não sei para que és inspetor,
para já ninguém te chama!” dizia a esposa de um deles.
“Melhor!” respondia o inspetor,
seu marido. “Mais sobra para nós. Nunca mais rangeu nenhuma dobradiça na casa e
a fechadura nunca funcionou tão bem!”
“E isso é lá trabalho? Só usas a
tua parte! Mais ninguém liga a isso, qualquer dia estás sem trabalho se
descobrem que o povo não usa.” Observou a esposa perspicaz.
“O meu primo e o meu tio também
tem usado e estão muito satisfeitos. Os outros não usam porque não querem!”
Concluiu.
Mas então um dia o governo
decidiu investigar como estava a decorrer a implementação do programa
“Lubrificante para todos!” e aleatoriamente um representante do governo foi
visitar algumas aldeias e inteirar-se da situação.
“Mas como você só tem aqui três
requerimentos e a lata está quase vazia?!” protestou o representante do governo
perante o inspetor. “Ainda por cima um dos requerimentos é seu…”
“Ora, se calhar a lata já trazia
pouco!” Tentava justificar.
“Está a querer dizer que o
partido fornece latas quase vazias para o povo?” Esta era uma implicação
perigosa que podia dar muitos sarilhos.
“Não, obviamente que não.
Certamente já veio vazia. Esses porcos capitalistas sempre estão prontos a
enganar o cidadão.” Contrapunha o inspetor.
“Pode ter evaporado ou a lata
estar com alguma fuga…” Dizia o inspetor já a temer as consequências.
O representante do governo
acalmou, mas insistiu:
“Será que não está usando além da
sua parte?”
“De forma nenhuma! Cumpro
escrupulosamente as diretivas do governo e não me permitiria roubar o povo!”
Disse com a veemência.
Mas não lhe valeu de nada, pois
ao chegar o relatório ao Ministro da Economia, ele reportou ao Ministro da
Justiça e este por sua vez fez acionar a Procuradoria. Finalmente a polícia
veio bater-lhe à porta, depois foi julgado rapidamente e fuzilado como um porco
capitalista açambarcador, um egoísta que roubara o povo.
Isto naturalmente foi bem
acompanhado por todos os inspetores, em especial pelos que tinham feito a mesma
coisa e trataram de resolver o problema o mais depressa que lhes foi possível.
Assim o que a maioria deles fez entre
os que tinham abusado da sua parte nas esguichadelas foi preencherem requerimentos
falsos em nome de habitantes da aldeia que eles pensavam nunca usariam esguichadelas de
lubrificante para coisa nenhuma!
“Mas como não tenho direito a
usar a lata de lubrificante?!” dizia o pobre Igor Agenor que não sabia ler nem
escrever, mas sabia dos seus direitos como cidadão e que protestava perante o
inspetor que o informava que não tinha direito a nenhuma esguichadela. “Quase
todos tem direito à lata aqui na aldeia e só eu é que não tenho?! Como é
possível?!”
O inspetor tinha permitido mais
esguichadelas aos amigos do que era prometido pelo governo, mascarando esses
favores com requerimentos falsos. Isso dera-lhe um estatuto importante, sendo
que os amigos lhe haviam trazido presentes em reconhecimento da sua
generosidade… Mas agora, este Igor queria estragar tudo e o problema é que a
lata estava vazia e mesmo que quisesse não podia satisfazê-lo. Tentou uma fuga
para a frente:
“Prometo que na próxima lata
serás o primeiro a ser satisfeito. Fica bem para ti?!”
Mas o Igor não só não sabia ler e
escrever como era um pouco obtuso.
“Não! Preciso da lata agora que
tenho uma porta que range com qualquer ventinho e não me deixa dormir!” Talvez
fosse a falta de sono que o fazia assim mal-disposto e casmurro.
“Mas se a porta é o que te
perturba, porque não fechas a porta?! Assim ela deixa de abanar e não range!”
Tentou o inspetor solucionar.
“Mas se a deixo fechada ela bate!
É ainda pior!” Queixou-se.
“Porque não lhe metes cebo ou
azeite?” Insistiu o inspetor.
“O cebo uso para vedar os pipos
ou além do lubrificante queres que fique sem vinho?” respondeu Igor que era
obtuso mas não era tolo.
“Então e o azeite?” perguntou o
inspetor.
“Mas tu queres que ponha azeite
na dobradiça?! Se já estão nas últimas, com o sal do azeite há-de cair-me a
porta!” protestou veemente Igor Agenor.
O inspetor esgotara as suas
soluções para resolver o problema e tentou outra abordagem.
“Bom! Está certo, até vir a lata
nova vou dar-te um chá que te vai ajudar a dormir…”
E Igor foi-se embora com o chá e
a promessa de que seria o primeiro a usar a lata nova, quando ela viesse. Mas a
falta de sono pode enlouquecer um homem e Igor quando foi à vila mais próxima desabafou
no café onde foi beber uma cerveja e ouvidos ouviram e a informação chegou ao
representante do partido local que enviou o representante do governo que se
interessou pelo assunto.
O representante do governo foi
investigar e depois de entrevistar vários cidadãos da aldeia percebeu o que se
passou. O resto não é preciso contar: Julgamento rápido e uma ida até ao
cemitério.
O que aconteceu depois foi que os
inspetores tornarem-se mais cautelosos ainda!
Tornaram-se cautelosos no
preenchimento dos requerimentos falsos, onde deixavam sempre uma margem para
poder esguichar a pedido imprevisto. Mesmo assim, quando o partido começou a
cruzar a informação de quantas latas eram gastas em cada região e quantos
cidadãos satisfaziam, começaram a evidenciar-se as regiões que mais latas
gastavam por habitante! Mandaram lá o representante do governo para verificar
se isso era real ou se havia ali história…
Depois de umas quantas
entrevistas investigativas, às vezes mais robustas, os inspetores corruptos
foram descobertos uma vez mais, com as consequências habituais: julgamento
rápido acabando em fuzilamento.
Percebendo que podiam ser
apanhados o que decidiram fazer?
Guardaram muito bem a lata no
mais sigiloso segredo para que o povo não soubesse dela e assim não fossem
obrigados sequer a tocar na maldita lata! Espalharam também o rumor de que o
lubrificante capitalista seria tóxico para o povo socialista…
Foram assim elogiados pelo
partido por serem tão poupadinhos e desgraçaram todos os inspetores que
honestamente faziam o seu serviço visto que acabavam tendo médias de consumo de
latas mais altas do que estes covardes, condenando os honestos ao julgamento em
que não importava o que dissessem ou as testemunhas abonatórias que
apresentassem, que a maioria dos julgamentos acabava com a mesma sentença: fuzilamento.
Não havia piedade para os ladrões do povo!
O problema é que o povo com estas
notícias, lembrava-se da promessa do governo de permitir o acesso à lata de
lubrificante. Assim o povo começou a levantar-se em protesto quando os
inspetores medricas se recusavam a gastar a lata! Quando isso adquiriu uma
expressão importante, pelo menos o suficiente para alertar os membros do
partido, que temiam qualquer agitação social que tirasse o povo da sua natural
apatia e pudesse pôr em perigo o seu lugar, decidiu fazer alguma coisa a
respeito.
Resultado? Os inspetores que não
mexeram nas suas latas, foram considerados açambarcadores porcos capitalistas, o
que lhes deu um julgamento rápido e o caminho tradicional de serem postos
diante do pelotão de fuzilamento.
Epílogo
Isto reduziu a quase zero as
candidaturas para inspetor.
Os governantes que embora
quisessem manter uma boa imagem eram pragmáticos, perceberam que o seu programa
tinha falhado, batido contra o egoísmo com que nascemos e que se traduz na natural
tendência para a corrupção e que justifica os esforços de produzir um homem
novo.
Além do mais, as latas apesar de
muitas não iam durar para sempre. Assim puseram um fim ao programa sem qualquer
aviso difundido pelas TVs. Aos inspetores que restaram, convidaram-nos a
ingressar no exército ou a voltar à agricultura de subsistência. As latas foram
assim reservadas para uso exclusivamente industrial. A atividade de inspetor
foi considerada não produtiva e como consequência parasita dos trabalhadores e
por tal extinta e proibida.