07 fevereiro 2019

As Três Laranjas




Os dias iam cinzentos, entre uns laivos de esperança e uma depressão que se arrastava, com os ricos ficando mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Havia alguns ainda crentes nos seus privilégios de classe média, uma classe média cada vez mais pelintra que disfarçava com tiques de altivez, com caridadezinha e com férias a crédito em Cancun. Era engraçado porque se encontravam todos nas férias como se encontravam todos os dias na sua cidade. Só aos políticos a coisa corria melhor, que os dinheiros públicos eram inesgotáveis.


Mas não era fácil para a maioria, que apesar da escolaridade, continuava analfabeta em relação às engrenagens do mundo. Nós vivíamos numa vila e tínhamos um quintal com árvores de fruto, laranjeiras na sua larga maioria. As laranjas dão fruto no inverno, porque a natureza é sábia e nos quer proteger das constipações com vitamina C, que é sabido haver em abundância nas laranjas.


O que era menos comum era aparecerem por ali pedintes, mendigos, já que as redes de solidariedade nestas povoações fora dos grandes aglomerados urbanos são extensas e vivem da partilha daquilo que a terra dá. Um vizinho dá couves, outro retribui com laranjas e por aí fora, sendo que embora haja necessidades, a pior das fomes não acomete estas comunidades. Ainda bem.


Lembro-me deste senhor que por lá apareceu um dia a bater-nos à porta, algo envergonhado, de cabelos grisalhos, roupas modestas, mas limpas. Não era dali e ao invés de pedir logo, começou com desculpas:


— Peço desculpa de o incomodar... — disse sorrindo — Mas estou desempregado e vi que tem ali umas laranjeiras. Será que me podia dar três laranjas?


Obviamente que não havia problema em dar-lhe um saco de laranjas até. A natureza fora generosa e tínhamos mais do que uma laranjeira pelo que podíamos mostrar-nos generosos, já que os vizinhos também tinham e não seria preciso dividir com eles. Mas achei estranha a objetividade do pedido:


— Mas claro senhor, não tem problema nenhum, venha comigo...


Chegamos à laranjeira e comecei a tirar as laranjas, quando ele viu que ia tirar a quarta disse-me:


— Não, por favor! Só quero mesmo três laranjas.


— Então? Mesmo que não queira, porque não leva para a família?


Ele baixou a cabeça:


— Não tenho família, estou sozinho...


Senti-lhe a tristeza na voz e não tive coragem de aprofundar o tema. Mas foi ele que continuou:


— Fui casado, sem filhos. Quando fiquei desempregado a minha mulher achou que era melhor separar-se de mim e foi à sua vida... Tive de sair de casa porque não a podia pagar, nem a água nem a luz e tive de morar na rua. Recorri à caridade...


Pensei que a mulher dela fora muito cruel, e se antigamente era “até que a morte os separasse”, agora era só até à primeira dificuldade maior. Mesmo assim insisti:


— Então, mas leva e depois quando tiver fome, come...


— Vou levar peso desnecessário e as pessoas terão mais dificuldade em dar-me algo se virem que carrego alguma coisa...


Aquilo soou-me tão profundamente cruel que não me pude impedir de os meus olhos ficarem húmidos. Não disse nada e entreguei-lhe nas mãos as três laranjas, mas não resisti a perguntar:


— Porquê, então, apenas três laranjas?


Ele sorriu-me, um daqueles sorrisos serenos de quem se sente detentor de uma profunda sabedoria, daquelas que nos transmitem tranquilidade e explicou:


— A primeira serve para matar sede, a segunda para matar a fome e a terceira para me saciar. É esta última que me dará mais prazer. Tudo depois disso será apenas desperdício.