A assistente do doutor fê-lo entrar na área do consultório. Reparou nas linhas modernas, despojadas, nuas. Pensou que for decorado no objetivo de não impor nenhuma influência ao paciente. As cores eram neutras, a iluminação suave, seria uma breve sugestão de tranquilidade? Uma espécie de primeira recompensa de ter chegado até ali?
O doutor levantou-se da secretária que apenas tinha um bloco de notas e um calendário em cima. Aproximou-se dele à distância de um braço estendido e convidou a sentar no sofá.
"Por favor, queira sentar-se..." A voz do doutor era neutra também em termos de emoções. Quase a sentiu fria e um breve sentimento de arrependimento aflorou-lhe. "...onde quiser." continuou o doutor sorrindo.
O sorriso varreu o arrependimento e em resposta sorriu também, mas não foi capaz de dizer nada. Às vezes era assim e depois ao tomar consciência do ato sentia-se um pouco pateta.
Se o doutor notou fingiu que não tinha notado e acrescentou com um leve sorriso:
"O que o traz por cá, Sr..."
"António." Afirmou ele e depois como se não houvesse necessidade de pausa ou dos salamaleques relativos a gente civilizada que começa por se cumprimentar, disse:
"Uma urgência! Sinto-me um farrapo emocional, uma inquietude, um desassossego..." parou para respirar e sentiu que a pausa até estava a ser longa, mas o doutor não interrompeu, continuou em silêncio, mantendo uma expressão esfíngica, que ele não foi capaz de penetrar.
"Durmo mal, tenho pesadelos que me fazem acordar maldisposto, às vezes tanto emocionalmente quanto fisicamente. Julgo que é algo profundo..."
O doutor interrompeu-o:
"De que natureza são os sonhos?"
Ele achou rude a interrução mas respondeu:
"Fortes em sentido emocional. Lembro a minha vida numa seita de alto controlo ou lá como se chama. E também têm uma carga emocional, que corre para o erótico com relativa facilidade..."
Desta vez o doutor não interrompeu e ele não soube o que dizer a seguir. O silêncio ficou insuportável.
"Só sei que esses sonhos me agitam até ao tutâno e que me doem. Uma dor emocional que se mantém no resto do dia. Não é incomum acordar com fortes dores de cabeça!"
"Interrompeu a medicação?"
Como é que o doutor sabia que ele tomava medicação? Raios o partissem, será que era bruxo? Mas não sentiu forças suficientes para esboçar qualquer surpresa e respondeu simplesmente:
"Sim." E ficou calado.
Para sua surpresa o doutor continuou a perguntar?
"O que o levou a tomar medicação para o seu problema?"
Ele respirou fundo e como se lhe fosse penoso começou:
"Tanta coisa... A vida! A merda da vida. Primeiro tive uma profunda crise existencial. A tal seita de alto controlo... Acho que acordei e o acordar foi violento. Emocionalmente violento. Nunca é fácil encarar a verdade." Como ele ficou em silêncio o doutor perguntou-lhe:
"Que verdade?"
Ele riu-se. Lembrava-se bem da "verdade" da seita e do convencimento que tivera de a deter em plenitude.
"Tem razão doutor. Não há nenhuma..."
O doutor continuou em silêncio.
"Bom, depois de descobrir que tinha andado iludido nas minhas crenças e que estas não eram nem melhores nem piores do que a dos restantes mortais, entrei em angústia, ataques de pânico e com a sensação que havia perdido muitas oportunidades por andar agarrado a ilusões."
Pausou de novo, até porque recordar tudo aquilo lhe trazia de novo uma sensação esquisita, uma angústia subterránea e para esquecer esse sentimento continuou:
"Tentei descobrir se havia alguma boia para mim. Mas tinha receio em acreditar no que quer que fosse. Não podia confiar em mim, porque já me tinham enganado e corria o risco de ser enganado depois. Fiquei cético, um cético com uma enorme necessidade de acreditar, como uma criança que se encontra sozinha, perdida no meio da cidade. Nessa circunstância precisava tanto de algo acolhedor, bom, tranquilizador. Ser desejado, amado... Eu sei lá!"
O doutor permaneceu em silêncio. Aqueles silêncios irritavam-no, eram uma merda e sempre se perguntou o que procuram os psicólogos com aqueles silêncios. Às vezes apetecia-lhe inventar ou descrever lhes um relato de um jogo de futebol só para lhes dar um bocadinho do seu próprio remédio. Mas anos de psicoterapia já o tinham acalmado e às vezes deixava esses silêncios prolongar-se e até aprendera a desfrutar deles. O problema é que tinha uma alma tagarela e desistia do silêncio e desatava de novo a inventar conversa, a ir ao fundo da alma magoada, buscar alguma recordação que libertasse o Santo Graal da sua cura. Era um homem de esperança, só podia ser. E por instantes pensou que continuava o mesmo crédulo que o levara à seita e a convencer-se de que ela era a "verdade". Aquilo trouxe-lhe um sentimento de tristeza.
"Acho que não melhorei nestes anos todos..." desabafou.
"Porque acha que não melhorou? Pelo menos procura ajuda, veio até aqui."
"Tem razão doutor. Bom, nessa busca de encontrar um caminho, qualquer coisa boa, que mitigasse aquele sentimento de uma vida inútil, li muito, conversei com outros como eu... E acabei a envolver-me emocionalmente com uma pessoa..." Riu-se. "Nunca nos devemos envolver com ninguém quando acabamos de nascer de uma desilusão..."
"É ao nascer, e até antes que nos envolvemos emocionalmente." disse o doutor.
Ele ficou a pensar naquilo e reconheceu-lhe uma verdade. O vínculo bebé-mãe que se cria no nascimento. Depois pensou que o seu nascimento tinha sido sob o auspício de uma rejeição. Um trauma inicial que o marcou para a vida toda, sobre o estigma de indesejado. Talvez o problema fundamental fosse esse e como tal era incurável. Nada podia apagar essa marca de nascença, de ter nascido em anoxia e a mãe o ter rejeitado. Foram estranhos que o quiseram, que lutaram por ele... E viu-se a chorar.
O doutor deixou-o chorar sem dizer nada. E apeteceu-lhe chamar-lhe cabrão por causa da sua insensibilidade. Este abriu uma gaveta, e de uma caixa tirou uns quantos "kleenex" que lhe entregou sem dizer nada. Aquilo pareceu-lhe um desprezo, uma coisa patética, como se entregasse papel higiénico a alguém numa emergência, e aceitando os "kleenex" onde fungou começou a rir.
O doutor terapeuta continuava com o seu semblante de esfinge.
"Que se foda! Envolvi-me com uma gaja e voltei a ser a rejeitado quando pensava que era especial, querido e desejado. Ela falou-me de um antigo namorado que se chamava como eu e ao que parece tinha dele umas saudades enormes, pois nunca fizera amor com ele. Qualquer coisa assim. Acho que projetou esse António em mim, mas teve pouca sorte que também nunca consegui fazer amor com ela, apesar das tentativas. Sou muito nervoso e como nos encontrávamos fortuitamente onde calhava, nunca me senti tranquilo e como tal, o "coiso" não funcionava... Ela aguentou um tempo, escrevi muito nessa altura, fui muito criativo. Mas a certa altura ela desistiu de mim." E depois de uma pausa: "Acho que não a posso censurar..."
Disse aquilo a terminar num suspiro, com as lágrimas as escorrerem silenciosas pela face.
"Sr António, talvez possa ajudá-lo, em primeiro lugar explicando-lhe o que se passou consigo..."
Ele queria explicar? O que havia para explicar? Que se está condenado a partir do nascimento a sentir vezes sem conta a rejeição?
"Nós humanos temos um sistema básico de apego. É essencial à nossa sobrevivência. O nascituro apega-se à mãe, ou a quem se disponha a cuidar dele, porque essa é a sua fonte de sobrevivência. Sozinho, na sua fragilidade, morrerá. E todos somos frágeis, tanto no nascimento como na morte, se ambas ocorrerem naturalmente. O seu sistema de apego sofreu um trauma ao nascer e ao sentir-se rejeitado pela sua mãe. Quanto a isso não há nada a fazer, temos de o ajudar a adaptar-se a viver com isso. É como nascer com um defeito físico, ser cego ou surdo por exemplo. Mas o seu sistema de apego ficou confuso e o seu campo psicomórfico, todos temos um, desenvolveu aquilo que a ciência do comportamento caracteriza como campo psicomórfico camaliónico...ou mimético."
Até tinha ouvido com atenção e tudo lhe parecia com muito sentido, mas agora achava que o doutor estava a gozar com ele e ía para abrir a boca para pedir esclarecimento, mas o doutor estava embalado.
"...o Sr António é psicologicamente mimético, consegue devolver ao outro os sentimentos que julga que este necessita. O seu sistema de apego reage dessa maneira porque assume que quanto mais igual for ao outro, mais aumenta as probabilidades de ser aceite por este. Assim essa sua paixão, e não hesito em chamá-la de paixão, pensou ter em si o António antigo namorado e você deu-lhe exatamente o que ela esperava incluindo a incapacidade de concretizar a paixão, levá-la ao patamar seguinte, o coito. Diga-me Sr. António, nessa paixão havia alguma coisa que ela apreciasse sobremaneira em si?"
"Dizia que eu era muito inteligente..."
"Não falamos disso Sr. António, estamos no campo das emoções. Quando ela sentia estar num momento emocionalmente elevado?" interrompeu o doutor sem qualquer desculpa.
"Quando nos beijávamos. Dizia que o nosso beijo era perfeito, que o nosso encaixe era maravilhoso."
O doutor voltou a tomar o rumo da conversa, como se ele nem sequer estivesse ali e aquilo fosse uma espécie de aula.
"Essa mulher buscava uma paixão antiga e deu-lhe uma cópia. Se a antiga havia acabado, essa estava destinada ao mesmo fim. Não foi rejeitado Sr António, foi copiado do outro. No fundo tornou-se um clone e não podia nunca dar certo..."
Aqui fez-se luz e ele comentou:
"Bolas doutor! No fundo nem sequer sei quem sou! Transformo-me no que os outros desejam que eu seja! Não sei se isso não é saltar do fogo para a frigideira!"
O doutor não falou logo.
"Sr. António não estou aqui para o enganar, para o confortar. Estou aqui para o ajudar a ser aquilo que quiser ser."
Deixou que aquela frase assentasse na sua consciência e afundasse.
Mais uma vez aquele silêncio a crescer incómodo.
"Não se tratou de uma rejeição de si Sr. António, mas uma rejeição do personagem que encarnou."
Silêncio novamente.
"Serei sempre um personagem?"
"Se for isso que quiser ser. Se isso o satisfazer emocionalmente..."
"Não doutor. Não quero ser um personagem, quero ser eu e ser desejado e amado por quem sou. Mas..."
O silêncio voltava sempre.
"...posso não conseguir ser outra coisa. Como o doutor disse, estou avariado a um nível fundamental, esse sistema de apego humano, como o definiu. Realmente sou uma ruína e me lembro de uma visão que tive num colega seu, debaixo de hipnose, em que me via abandonado num castelo em ruínas com um cão de pêlo comprido, branco, era um ferreiro e em volta uma planície fluvial inundada. Estava ali naquela ruína sem me poder deslocar para lugar nenhum, porque tudo envolta era uma espécie de pântano."
"É uma visão apropriada." disse o doutor.
"Será que posso ser menos mimético?"
"Claro. O Sr. António pode ser o que quiser ser. Mas tem de querer."
"Acha que há então também uma fraqueza de caráter? Uma falta de força de vontade que me leva a ir por este caminho de me transformar em personagem?"
"Não é uma fraqueza de caráter é um hábito. E os hábitos podem quebrar-se."
"Há esperança?"
O doutor sorriu:
"É velho o ditado: Enquanto há vida há esperança!"
Aquilo fê-lo lembrar-se de Eclesiastes 9:4 que diz que "Enquanto há vida há esperança, pois mais vale o cão vivo do que o leão morto." Estranha esperança esta oscilando entre uma vida de cão e um leão morto!.