01 julho 2024

Campos Psicomórficos ou Jung em esteróides


A assistente do doutor fê-lo entrar na área do consultório. Reparou nas linhas modernas, despojadas, nuas. Pensou que for decorado no objetivo de não impor nenhuma influência ao paciente. As cores eram neutras, a iluminação suave, seria uma breve sugestão de tranquilidade? Uma espécie de primeira recompensa de ter chegado até ali?

O doutor levantou-se da secretária que apenas tinha um bloco de notas e um calendário em cima. Aproximou-se dele à distância de um braço estendido e convidou a sentar no sofá.

"Por favor, queira sentar-se..." A voz do doutor era neutra também em termos de emoções. Quase a sentiu fria e um breve sentimento de arrependimento aflorou-lhe. "...onde quiser." continuou o doutor sorrindo.

O sorriso varreu o arrependimento e em resposta sorriu também, mas não foi capaz de dizer nada. Às vezes era assim e depois ao tomar consciência do ato sentia-se um pouco pateta.

Se o doutor notou fingiu que não tinha notado e acrescentou com um leve sorriso: 

"O que o traz por cá, Sr..."

"António." Afirmou ele e depois como se não houvesse necessidade de pausa ou dos salamaleques relativos a gente civilizada que começa por se cumprimentar, disse:

"Uma urgência! Sinto-me um farrapo emocional, uma inquietude, um desassossego..." parou para respirar e sentiu que a pausa até estava a ser longa, mas o doutor não interrompeu, continuou em silêncio, mantendo uma expressão esfíngica, que ele não foi capaz de penetrar.

"Durmo mal, tenho pesadelos que me fazem acordar maldisposto, às vezes tanto emocionalmente quanto fisicamente. Julgo que é algo profundo..."

O doutor interrompeu-o:

"De que natureza são os sonhos?"

Ele achou rude a interrução mas respondeu:

"Fortes em sentido emocional. Lembro a minha vida numa seita de alto controlo ou lá como se chama. E também têm uma carga emocional, que corre para o erótico com relativa facilidade..."

Desta vez o doutor não interrompeu e ele não soube o que dizer a seguir. O silêncio ficou insuportável.

"Só sei que esses sonhos me agitam até ao tutâno e que me doem. Uma dor emocional que se mantém no resto do dia. Não é incomum acordar com fortes dores de cabeça!"

"Interrompeu a medicação?"

Como é que o doutor sabia que ele tomava medicação? Raios o partissem, será que era bruxo? Mas não sentiu forças suficientes para esboçar qualquer surpresa e respondeu simplesmente:

"Sim." E ficou calado.

Para sua surpresa o doutor continuou a perguntar?

"O que o levou a tomar medicação para o seu problema?"

Ele respirou fundo e como se lhe fosse penoso começou:

"Tanta coisa... A vida! A merda da vida. Primeiro tive uma profunda crise existencial. A tal seita de alto controlo... Acho que acordei e o acordar foi violento. Emocionalmente violento. Nunca é fácil encarar a verdade." Como ele ficou em silêncio o doutor perguntou-lhe:

"Que verdade?"

Ele riu-se. Lembrava-se bem da "verdade" da seita e do convencimento que tivera de a deter em plenitude.

"Tem razão doutor. Não há nenhuma..."

O doutor continuou em silêncio.

"Bom, depois de descobrir que tinha andado iludido nas minhas crenças e que estas não eram nem melhores nem piores do que a dos restantes mortais, entrei em angústia, ataques de pânico e com a sensação que havia perdido muitas oportunidades por andar agarrado a ilusões."

Pausou de novo, até porque recordar tudo aquilo lhe trazia de novo uma sensação esquisita, uma angústia subterránea e para esquecer esse sentimento continuou:

"Tentei descobrir se havia alguma boia para mim. Mas tinha receio em acreditar no que quer que fosse. Não podia confiar em mim, porque já me tinham enganado e corria o risco de ser enganado depois. Fiquei cético, um cético com uma enorme necessidade de acreditar, como uma criança que se encontra sozinha, perdida no meio da cidade. Nessa circunstância precisava tanto de algo acolhedor, bom, tranquilizador. Ser desejado, amado... Eu sei lá!"

O doutor permaneceu em silêncio. Aqueles silêncios irritavam-no, eram uma merda e sempre se perguntou o que procuram os psicólogos com aqueles silêncios. Às vezes apetecia-lhe inventar ou descrever lhes um relato de um jogo de futebol só para lhes dar um bocadinho do seu próprio remédio. Mas anos de psicoterapia já o tinham acalmado e às vezes deixava esses silêncios prolongar-se e até aprendera a desfrutar deles. O problema é que tinha uma alma tagarela e desistia do silêncio e desatava de novo a inventar conversa, a ir ao fundo da alma magoada, buscar alguma recordação que libertasse o Santo Graal da sua cura. Era um homem de esperança, só podia ser. E por instantes pensou que continuava o mesmo crédulo que o levara à seita e a convencer-se de que ela era a "verdade". Aquilo trouxe-lhe um sentimento de tristeza.

"Acho que não melhorei nestes anos todos..." desabafou.

"Porque acha que não melhorou? Pelo menos procura ajuda, veio até aqui."

"Tem razão doutor. Bom, nessa busca de encontrar um caminho, qualquer coisa boa, que mitigasse aquele sentimento de uma vida inútil, li muito, conversei com outros como eu... E acabei a envolver-me emocionalmente com uma pessoa..." Riu-se. "Nunca nos devemos envolver com ninguém quando acabamos de nascer de uma desilusão..."

"É ao nascer, e até antes que nos envolvemos emocionalmente." disse o doutor.

Ele ficou a pensar naquilo e reconheceu-lhe uma verdade. O vínculo bebé-mãe que se cria no nascimento. Depois pensou que o seu nascimento tinha sido sob o auspício de uma rejeição. Um trauma inicial que o marcou para a vida toda, sobre o estigma de indesejado. Talvez o problema fundamental fosse esse e como tal era incurável. Nada podia apagar essa marca de nascença, de ter nascido em anoxia e a mãe o ter rejeitado. Foram estranhos que o quiseram, que lutaram por ele... E viu-se a chorar.

O doutor deixou-o chorar sem dizer nada. E apeteceu-lhe chamar-lhe cabrão por causa da sua insensibilidade. Este abriu uma gaveta, e de uma caixa tirou uns quantos "kleenex" que lhe entregou sem dizer nada. Aquilo pareceu-lhe um desprezo, uma coisa patética, como se entregasse papel higiénico a alguém numa emergência, e aceitando os "kleenex" onde fungou começou a rir.

O doutor terapeuta continuava com o seu semblante de esfinge.

"Que se foda! Envolvi-me com uma gaja e voltei a ser a rejeitado quando pensava que era especial, querido e desejado. Ela falou-me de um antigo namorado que se chamava como eu e ao que parece tinha dele umas saudades enormes, pois nunca fizera amor com ele. Qualquer coisa assim. Acho que projetou esse António em mim, mas teve pouca sorte que também nunca consegui fazer amor com ela, apesar das tentativas. Sou muito nervoso e como nos encontrávamos fortuitamente onde calhava, nunca me senti tranquilo e como tal, o "coiso" não funcionava... Ela aguentou um tempo, escrevi muito nessa altura, fui muito criativo. Mas a certa altura ela desistiu de mim." E depois de uma pausa: "Acho que não a posso censurar..."

Disse aquilo a terminar num suspiro, com as lágrimas as escorrerem silenciosas pela face.

"Sr António, talvez possa ajudá-lo, em primeiro lugar explicando-lhe o que se passou consigo..."

Ele queria explicar? O que havia para explicar? Que se está condenado a partir do nascimento a sentir vezes sem conta a rejeição?

"Nós humanos temos um sistema básico de apego. É essencial à nossa sobrevivência. O nascituro apega-se à mãe, ou a quem se disponha a cuidar dele, porque essa é a sua fonte de sobrevivência. Sozinho, na sua fragilidade, morrerá. E todos somos frágeis, tanto no nascimento como na morte, se ambas ocorrerem naturalmente. O seu sistema de apego sofreu um trauma ao nascer e ao sentir-se rejeitado pela sua mãe. Quanto a isso não há nada a fazer, temos de o ajudar a adaptar-se a viver com isso. É como nascer com um defeito físico, ser cego ou surdo por exemplo. Mas o seu sistema de apego ficou confuso e o seu campo psicomórfico, todos temos um, desenvolveu aquilo que a ciência do comportamento caracteriza como campo psicomórfico camaliónico...ou mimético."

Até tinha ouvido com atenção e tudo lhe parecia com muito sentido, mas agora achava que o doutor estava a gozar com ele e ía para abrir a boca para pedir esclarecimento, mas o doutor estava embalado.

"...o Sr António é psicologicamente mimético, consegue devolver ao outro os sentimentos que julga  que este necessita. O seu sistema de apego reage dessa maneira porque assume que quanto mais igual for ao outro, mais aumenta as probabilidades de ser aceite por este. Assim essa sua paixão, e não hesito em chamá-la de paixão, pensou ter em si o António antigo namorado e você deu-lhe exatamente o que ela esperava incluindo a incapacidade de concretizar a paixão, levá-la ao patamar seguinte, o coito. Diga-me Sr. António, nessa paixão havia alguma coisa que ela apreciasse sobremaneira em si?"

"Dizia que eu era muito inteligente..."

"Não falamos disso Sr. António, estamos no campo das emoções. Quando ela sentia estar num momento emocionalmente elevado?" interrompeu o doutor sem qualquer desculpa.

"Quando nos beijávamos. Dizia que o nosso beijo era perfeito, que o nosso encaixe era maravilhoso."

O doutor voltou a tomar o rumo da conversa, como se ele nem sequer estivesse ali e aquilo fosse uma espécie de aula.

"Essa mulher buscava uma paixão antiga e deu-lhe uma cópia. Se a antiga havia acabado, essa estava destinada ao mesmo fim. Não foi rejeitado Sr António, foi copiado do outro. No fundo tornou-se um clone e não podia nunca dar certo..."

Aqui fez-se luz e ele comentou:

"Bolas doutor! No fundo nem sequer sei quem sou! Transformo-me no que os outros desejam que eu seja! Não sei se isso não é saltar do fogo para a frigideira!"

O doutor não falou logo.

"Sr. António não estou aqui para o enganar, para o confortar. Estou aqui para o ajudar a ser aquilo que quiser ser."

Deixou que aquela frase assentasse na sua consciência e afundasse.

Mais uma vez aquele silêncio a crescer incómodo.

"Não se tratou de uma rejeição de si Sr. António, mas uma rejeição do personagem que encarnou."

Silêncio novamente.

"Serei sempre um personagem?" 

"Se for isso que quiser ser. Se isso o satisfazer emocionalmente..."

"Não doutor. Não quero ser um personagem, quero ser eu e ser desejado e amado por quem sou. Mas..."

O silêncio voltava sempre.

"...posso não conseguir ser outra coisa. Como o doutor disse, estou avariado a um nível fundamental, esse sistema de apego humano, como o definiu. Realmente sou uma ruína e me lembro de uma visão que tive num colega seu, debaixo de hipnose, em que me via abandonado num castelo em ruínas com um cão de pêlo comprido, branco, era um ferreiro e em volta uma planície fluvial inundada. Estava ali naquela ruína sem me poder deslocar para lugar nenhum, porque tudo envolta era uma espécie de pântano."

"É uma visão apropriada." disse o doutor.

"Será que posso ser menos mimético?"

"Claro. O Sr. António pode ser o que quiser ser. Mas tem de querer."

"Acha que há então também uma fraqueza de caráter? Uma falta de força de vontade que me leva a ir por este caminho de me transformar em personagem?"

"Não é uma fraqueza de caráter é um hábito. E os hábitos podem quebrar-se."

"Há esperança?"

O doutor sorriu:

"É velho o ditado: Enquanto há vida há esperança!"

Aquilo fê-lo lembrar-se de Eclesiastes 9:4 que diz que "Enquanto há vida há esperança, pois mais vale o cão vivo do que o leão morto." Estranha esperança esta oscilando entre uma vida de cão e um leão morto!.


18 janeiro 2024

A Criança

 

Foto de Brandon Day in Unsplash
 


Não sabias e foste uma vítima. Vivias um mito de uma família boa, preocupada e cuidadosa, mas no fundo sempre viveste com essa sensação de abandono, de que te podiam largar a qualquer instante e deixar-te entregue a ti mesmo. Sentias isso numa sensação estranha de ter sido adotado e de não pertencer por direito natural à família onde estavas.

Lembras quando choravas à noite na cama, pedindo perdão a um Deus que nunca te informou que não eras pecador, mas inocente e pobre de afeto, de amor incondicional? Choraste por muitos motivos diferentes, às vezes choraste mesmo sem saber porquê. Outras julgaste que choravas pelos outros, mas isso era só porque a dor dos outros te fazia lembrar a tua.

Pensaste milhares de vezes da razão dos outros te deixarem tão facilmente, sem mesmo reparares que eras tu que antes do abandono, no medo de ficar outra vez só, te afastavas deles como estratégia de lidar com a dor e o medo que tão bem conhecias e correres a te refugiares na solidão, que aprendeste a considerar abrigo contra todos os perigos. Porque dizias que eras feio? Uma justificação para deixares a namorada com a desculpa que era ela que não gostava de ti, por seres feio? Elas deixavam-te ir porque pensavam que não as querias. Agora sabes, foi tudo uma sabotagem que fizeste a ti próprio. Mas compreendes que não foste culpado de nada, apenas uma vítima do pior dos traumas? É difícil não é?

Sim, é difícil e no entanto aí estás tu de pé, enfrentando-te. Não há luta mais difícil do que essa, de nos olharmos num espelho que nos desnuda até a alma e nos enfrenta. Vês agora no espelho aquela criança adorável, inteligente, e tão frágil? Não te apetece agarrá-la com força nos teus braços e encher de beijos e de amor incondicional até às lágrimas? Força nisso! Essa criança merece rir, feliz! Essa criança merece todo o amor do mundo, incondicionalmente! Essa criança és tu.


11 dezembro 2022

Nas mãos de tão poucos

 

Há muito tempo que não fazia uma visita ao seu clube preferido. Tinha sido admitido à longo tempo, mas o seu entusiasmo com os negócios não lhe tinham dado tempo para o frequentar com a regularidade com que o fizera no passado. Regressava porque o mundo estava um caos e precisava ouvir os membros do clube acerca da situação. Normalmente estavam bem informados.

O porteiro vestido como um general em traje de gala, abriu-lhe a porta e lembrava-se do seu nome:

— Bem-vindo Sr. Smith. Tínhamos saudades suas...

— Obrigado... — e sentiu-se envergonhado de não se lembrar do nome do porteiro. Este pareceu adivinhar os seus pensamentos:

— Taylor para o servir Sr Smith...

— Admiro-lhe a memória e a polidez Sr. Taylor! —Disse com sinceridade sorrindo.

— Taylor lembra-se de que o Sr Smith sempre o tratou bem, sem tiques de superioridade. — afirmou o porteiro abrindo-lhe a porta e acrescentando: — Hoje parece que o “Chef” caprichou nas almôndegas.

— Obrigado pelo conselho Sr Taylor. — agradeceu ele entrando pela porta aberta que o Sr Taylor, o porteiro, lhe mantinha aberta.

Ao entrar sentiu o cheiro familiar do velho Clube, um cheiro cada vez mais intenso à medida que a porta atrás de si se fechava, deixando o Sr. Taylor ao frio daquela manhã de inverno.

A entrada tinha sido modernizada mas discretamente, parecendo com a receção de um Hotel, onde duas beldades lhe sorriam. Aproximou-se do balcão sem saber o que fazer ao certo, mas cumprimentou:

— Bom dia...

— Bom dia! — pareceram quase responder em uníssono, e uma delas perguntou-lhe:

— Vai ficar para almoçar Sr Smith?

Ele não se lembrava delas, como é que elas se lembravam dele e recordavam o seu nome? Talvez fosse o seu ar de espanto que levou uma delas a explicar:

— Não Sr. Smith nunca nos vimos antes. Aliás eu só trabalho cá há um ano e a minha colega a Suzette apenas há meio.

— Então como sabe o meu nome?!

Ela solicita explicou:

— Modernidades Sr Smith. O Clube instalou câmaras de vigilância e estas fazem reconhecimento facial. Assim quando o Sr Smith se aproximou da porta do Clube estas de imediato nos alertaram para a sua presença. Aqui no terminal do computador somos informadas de que já não vem há dois anos e também de quais são os seus gostos. Ainda aprecia whiskys com mais de dezoito anos?

Ele ficou espantado.

— Foi por isso que o Sr Taylor se lembrou de mim?

— Quem?

— O porteiro...

— Ah! Sem dúvida. Deve ter sido avisado pela Segurança, se não ele não lhe teria aberto a porta.

— Muito avançou isto!

Elas sorriram e a Suzette perguntou:

— Então, o Sr Smith vai ficar para almoçar?

— Sim, vou...

— Quer consultar o nosso menu para reservar?

Ela estendeu-lhe um “tablet” com o menu ilustrado com as imagens dos pratos.

— Isto assim abre-nos o apetite! — Disse ele rindo. Elas sorriram em resposta. — Mas vou ficar pela sugestão do Sr. Taylor e vou nas almôndegas.

Depois discutiram um pouco sobre entradas e sobremesas. E o mais importante o vinho. Nessa ocasião o escansão do Clube apareceu e deu-lhe uma sugestão, que ele aceitou.

Quando ia a entrar no salão apareceu alguém que ele reconheceu:

— Dr Harrison!

— Smith!

Apertaram efusivamente as mãos. Já não se viam há dois anos e Smith sentia uma afinidade muito grande com o Dr Harrisson, médico muito famoso, mas sem peneiras e às vezes até um pouco direto demais o que o fazia parecer mais duro do que aquilo que era.

Talvez pela manhã fria e um certo descuido em escolher a roupa adequada, Smith espirrou, com o Dr Harrison a dar uma gargalhada:

— Santinho! Não me diga que pegou uma constipação e veio aqui contaminar o Clube, para que não sintamos a sua ausência! — O sorriso por trás dos seus farfalhudos bigodes mostrava que estava a brincar. Mas depois ficou sério e disse: — Espero que não tenha sido dos imbecis que foi na conversa do governo e tenha tomado a vacina!

— Porquê Harrisson? Agora virou “anti-vaxx”? — Sorriu por sua vez Smith.

— Ah! Tenho a certeza que não tomou. “Anit-vaxx” não sou, mas não me quero transformar em cobaia só para as farmacêuticas ganharem rios de dinheiro à minha custa! Ainda por cima parece que aquilo é coisa de malthusianos... E esses são apenas fanáticos religiosos sem Deus. Percebe-me Smith?

Smith não percebeu bem, mas lembrava-se que os malthusianos acreditavam que um dia não haveria recursos para alimentar todos os humanos na Terra, pelo que defendiam políticas estritas de controlo populacional, liberalização do aborto e outras coisas semelhantes.

— Harrisson, o seu conselho é que não me deixe vacinar?

— Pela sua saúde! — Disse ele rindo. — A não ser que queira morrer cedo.

— Mas se é assim Harrisson, porque andam a vacinar tanta gente? Se bem me lembro até quase forçavam as pessoas a vacinar-se...

— Que lhe disse eu? Coisa de malthusianos malucos apoiados por uns darwinianos sociais do piorio. De uns aos outros, venha o Diabo e escolha...

Smith curioso convidou:

— Porque não falamos disso a beber um bom whisky?

— Ora isso é que é uma grande sugestão! Faz melhor um whisky todos os dias que essas “sopas” com que nos querem injetar.

Foram juntos até ao bar, onde pelo caminho encontraram Casper amigo de ambos e que trabalhava numa grande firma de gestão de fortunas.

— Seja bem-vindo amigo Smith, andou fugido tanto tempo! Os negócios correm-lhe assim tão bem? — E deu uma gargalhada sonora.

— Casper fazias muito melhor se nos ajudasses... — resmungou Harrisson.

— Não posso! Se vos ajudar posso perder a minha licença. Seria “inside trading”.

— Isso fazem vocês todos os dias, seus manhosos!

Casper riu-se, e Smith decidiu falar:

— Os meus negócios até estavam a correr bem. Mas o mundo parece que foi afetado por uma bizarra esquizofrenia. Parece tudo tolo, até os políticos...

Casper suspirou fundo:

— Tenho de lhe dar razão Smith! Anda tudo maluco e sem transmitir informação confidencial, preparem-se que vai ficar pior. O dólar já foi, aliás, está a ir mais rápido do que era esperado.Em boa verdade era esperado...

Todos mostraram um ar resignado e Casper decidiu continuar:

— Esta loucura de usar o dólar como arma, está pura e simplesmente a fazer perigar o sistema financeiro internacional. Um abanar de asas de borboleta e isto tudo pode deslizar monte abaixo e com estrondo.

Harrisson fungou e pedindo três whiskys ao barman comentou:

— Depois fazem guerras para ver se varrem a esterqueira que andam a fazer para debaixo do tapete...

Casper anuiu com a cabeça e apanhou o seu copo.

— Estão a falar da guerra da Ucrânia?

— Havíamos de estar a falar de quê? — perguntou Harrisson e puxando Smith pelo braço depois deste ter apanhado o seu copo de whisky e encaminhando para um dos sofás do Salão.

Ao aproximarem-se estava alguém a ler o jornal e Harrison comentou:

— Olha que nem de propósito! General toma um whisky connosco?

O que tinha sido interpelado dobrou o jornal e sorriu:

— Não sei o que trás desta vez, mas aceito o whisky. Mas nada com menos de dezoito anos...

— Vês Smith, tem os teus gostos! — disse Harrisson virando-se para o amigo, — Sr General Wilson permita-me que lhe apresente o meu amigo Smith, membro do Clube mas ao que parece maioritariamente ausente.

O General Wilson permaneceu sentado e estendeu-lhe a mau, que Smith apertou:

— Encantado General.

— Peço-lhe desculpa por não me levantar, mas as minhas costas já não são o que eram...

— Um antigo ferimento... — decidiu explicar Harrisson.

O barman trouxe um copo de whisky para o General e sentaram-se todos.

— Aqui o meu amigo Smith quer saber porque o mundo está um caos, Sr General...

O general interrompeu respondendo de pronto:

— Porque é governado por loucos! Hoje em dia são todos como aí o Sr Casper apenas querem ganhar dinheiro, mesmo que seja a roubar a humanidade. Não é Sr.Casper?

— Ora! Não é nada pessoal. E não é o que todo o mundo quer? Ganhar dinheiro?

— Que lhes adianta? — perguntou o General. — Ainda acabam por destruir o mundo com essa vossa ganância infinita. Nunca vos morreu um camarada nos braços, por causa das idiotices dos políticos ou da soberba dos ricos?

— Ora, o General também não me parece que esteja mal sobre esse aspeto. — Atirou em provocação Casper.

— Bem arrependido estou! — Resmungou o General.

— General onde acha que esta guerra nos vai levar? — perguntou Harrisson também para desanuviar o ambiente que se ia pondo pesado.

— Para já está a ser uma festa! O Ocidente quase esgotou o seu acervo de armas. E aquele cocainómano corrupto continua a moer homens e dinheiro como se não houvesse amanhã. E possivelmente não haverá.

— Isso não será uma visão pessimista? Afinal ninguém quer morrer...

O General interrompeu com algum desagrado na voz:

— Nenhum quer é perder a face! Imagina onde isto nos pode levar? Ora, vão escalando o conflito aos poucos e um dia destes não conseguem recuar. O que resta?

— Uma estupidez! — Respondeu Harrisson.

— Exatamente! — Concordou o General. — Uma bela de uma estupidez que nos matará a todos numa Guerra Nuclear. Ponham isso na cabecinha meus senhores: Não há vencedores numa guerra nuclear. E digo-vos mais: No pós guerra nuclear os vvios invejarão a sorte dos mortos! — concluiu com ênfase.

Casper interveio:

— Ninguém será tão estúpido assim! Todos querem viver para usufruir da riqueza que conseguiram.

O General deu uma gargalhada tão sonora que o inteiro salão fez silêncio por um momento mas rapidamente voltou aos seus barulhos habituais misto de copos e conversas civilizadas.

— Acho então o amigo Casper que os europeus estão a ser sensatos? — Perguntou irónico. — Então os palermas cortam as pernas a si próprios, com sanções sobre quem os alimenta? Tiveram desenvolvimento com energia barata e agora por amizade com o aliado fecham a torneira? Quer maior estupidez do que essa? E se são capazes dessa, porque não serão capazes de uma maior?

Aquilo caiu-lhes a todos como um tão poderoso argumento que os fez engolir em seco, ao pensar no futuro mais pessimista do que alguém se atreveria.

— Esperemos que ao menos os militares sejam sensatos... — tentou amenizar o Sr Smith.

O General olhou para ele com alguma empatia.

— O problema é que os generais que temos nunca estiveram numa guerra a sério. Hoje temos gajos que vieram das academias e que só viveram guerras em simulações! Pior ainda, alguns estão apenas a servir o Complexo Militar Industrial! Querem é vender armas. E os que têm experiência de guerra? Quê? Iraque, Afeganistão, Líbia? Mas será tudo doido? Andar aos tiros a pastores de cabras armados com Kalashnikovs? Isso é lá guerra? Mesmo contra esses adversários infinitamente menos poderosos, apanharam porrada! Vejam lá se não saíram com um rabo entre as pernas do Afeganistão.

— Mas têm a noção que agora o adversário é outro... — interrompeu Casper.

— Têm tanta noção quanto você Casper! — Disse em tom mordaz. — Sabe o que é uma guerra de artilharia? Quando aqueles “bichos” caem por ali você se estiver deitado no chão, levanta pelo menos meio metro. E alguns só dessa maneira é que têm m QI mais alto!

Casper interrompeu outra vez:

— Teria mais medo dos chineses...

— Pois deve ter, já que neste conflito todos sabemos quem eles vão apoiar! Estavam a pensar que os enfraqueceriam por criarem aquele vírus como uma bio-arma e eles À cautela e muito bem, entraram numa política de “lockdowns” e contágio zero.

— Eu teria feito a mesma coisa. — esclareceu Harrisson. — A pandemia tinha tudo para ser interpretada como uma bio-arma...

— Foi uma bio-arma! — Rugiu o General e depois em tom mais composto acrescentou: — Basta reparar na “time-line” para perceber isso. Mais uma vez, jogam a carta e esperam o que vaio acontecer sem sequer pensarem nas consequências! Como é que você Casper diz que não estúpidos? Este mundo é uma tristeza... Com estes metrossexuais apaneleirados!

— Então General? Muitos dos seus amigos aqui devem ser homossexuais. Se o ouvissem falar assim ainda lhe trancavam as portas do Clube! — Disse Casper.

O General remordeu entre dentes:

— Já não há homens...

Smith decidiu lançar uma pergunta:

— Quer isso dizer que não há muita esperança, pois não?

O General olhou para ele com olhos tristes:

— Os estúpidos tomaram conta do mundo. Estão empenhados naquela máxima igualmente estúpida: “Se o Mundo não for nosso, não será de ninguém!” — E calou-se até o silêncio se tornar incómodo.

— Será essa a estratégia das vacinas? — Perguntou Harrisson. — Aquilo mata quase tanto quanto uma guerra.

— Agora até você se torna um teórico conspiracionista, Harrisson...

— Ele tem razão. — Disse o General em tom baixo. — Diminuem a população, tentando contrariar a agitação social, depois escalam até ao nuclear pensando que podem ter uma nova oportunidade, abrigados em seus “bunkers” luxuosos. Se pensam que estes ficarão intocados são ainda mais estúpidos do que eu possa imaginar...

— General, já foi contagiado aqui pelo conspiracionismo do amigo Harrisson...

— Acha? Não é você que tem um “bunker” em sua casa? — perguntou o General. E perante o ar espantado de Casper acrescentou: — E se eu sei que tem um, quem mais acha que sabe? E pense um pouco comigo, acha que o ditador como lhe chamam aqui, mandará os seus mísseis para matar inocentes nas nossas cidades? Quem tem matado inocentes não é esse ditador, mas nós. Só no Iraque foram centenas de milhares de crianças e os abutres acharam que valeu a pena! Percebe a fibra moral dessa gente? Dantes as guerras não eram para matar mulheres e crianças. Hoje é para matar toda a gente, até aliados...

— Sim, a desindustrialização da Europa e o preço a que compramos a energia aos nossos aliados, só pode ser para nos destruir. Levam-nos ao nível económico da Somália! —Comentou o Sr Smith.

— As empresas europeias vão subsistir Sr Smith! Irão para os EUA, onde têm boas condições... — Comentou Casper.

— Vão contribuir para a prosperidade do Tio Sam! — Riu o General e depois caustico acrescentou: — O que me parece é que algumas rumaram para Leste e por lá vão ficar que o mercado é muito maior! Isso apenas acarreta desespero para os abutres estúpidos que controlam os nossos destinos, meus senhores! Bebam os vossos whiskys velhos enquanto os podem saborear!

Todos aproveitaram a dica para beberem um pouco e saborearem. O General decidiu continuar:

— Meus amigos, o ditador não vai matar inocentes, porque esses, os nossos donos já se estão a encarregar, conforme vemos nesta tristeza da guerra europeia e o escândalo das vacinas. O ditador vai mandar os seus mísseis nucleares para todos os “bunkers” que conhece! Mesmo que não os destrua, o que restar vai ficar em tão mau estado que a morte dos que lá estão apenas será adiada no tempo. E acreditem, será uma morte muito feia.

— Mas aquele que designou como ditador, certamente não quererá tal fim... — ia começar Smith, mas o General interrompeu:

— É verdade que não quer! Tentou de tudo! Mas acha que se pode raciocinar com estúpidos convencidos que são os maiores à superfície da Terra? Aliás sabe porque ele está a avançar devagar?

Ninguém se arriscou responder e o General continuou:

— Para ver se eles vêm alguma coisa! Se conseguem ver a escrita na parede e tomam juízo antes que seja tarde demais! Vê alguém com juízo? Eu ainda não! Alguns generais sensatos já disseram o que tinham a dizer: Que nos é impossível fazer frente ao Leste! Mas continuam com as mesmas táticas de sempre: Sanções atrás de sanções, enviar carradas de armamento até ficarem quase sem nenhum, já começaram a enviar homens e com a ilusão parva que vão vencer, quando o inimigo faz retiradas estratégicas! Meus senhores, o Ocidente morreu, às mãos de políticos sem classe e sem inteligência e sem moral. Mas moral eu nem sequer discuto que até os moralistas tomam partido pelo lado errado.

— Vamos morrer todos. — Concluiu devastado o Sr Smith.

Harrisson não disse nada, mas bebeu o seu whisky mais depressa e fez sinal ao barman para trazer outro.

Casper deu uma risada.

— O General está velho e só pensa na morte e isso altera-lhe a perspetiva. Não se deixem levar pelo pessimismo dele.

Harrisson sorriu-lhe e propôs:

— O que disse Casper, não constitui nenhum argumento. É apenas um desejo. É muito natural porque você é o mais novo de todos nós. Quando se é novo a morte parece sempre muito distante. Tanto, que nem sequer pensamos nela como uma possibilidade. Mas tem outros argumentos, uma visão baseada neles que queira partilhar connosco?

Casper ajeitou-se no cadeirão onde se tinha sentado e pareceu empertigar-se:

— A economia ocidental é muito maior que esses países de segunda categoria contra os quais estamos travando uma guerra existencial. Percebem? Somos nós ou eles! Temos de vencer! Vamos vencer...

O General riu outra vez e comentou:

— Isso que mencionou, nem sequer é verdade! O Ocidente serão quê, 20% da população? E com os seus amigos a darem cabo dela, em breve seremos menos ainda! Do outro lado estão as expectativas de 80% da Humanidade! Será você o rapazinho que mete o dedo no dique para salvar o país? Mas desta vez não há um furo no dique meu rapaz, é toda a barragem a colapsar ao mesmo tempo! Porque acha que o mundo está um caos?

— General, não está a ver as coisas, as sanções ainda não resultaram, porque houve países que ainda não compreenderam de que lado devem estar. Não dos ditadores, mas dos países democráticos, das verdadeiras liberdades, onde até respeitamos a identidade de género e tudo...

O General desatou à gargalhada! E Harrisson comentou:

— Por favor Casper! Essa da identidade de género é uma palhaçada das grandes e cada dia que passa está a atingir paroxismos de idiotice! É como se tivessem libertado os malucos do manicómio!

E Smith por sua vez:

— Não me parece que seja a identidade de género, ou outro problema semelhante, como o direito á Eutanásia que preocupem a maioria da população. Acho até que esses problemas são colocados debaixo dos holofotes para distrair...

O General rugiu:

— Claro que é preciso distrair! Quando a população começar a ter carência a sério, a passar fome e frio, vai começar a fazer perguntas e a querer obter respostas. E quanto a si Casper, acho bem que vá fechar-se no seu bunker. Quem contribui para que mais de 80% da riqueza do mundo acabe nas mãos dos 1% tem muito porque responder. Talvez não sejam meigos consigo. E se a Revolução Francesa marca um antecedente... Talvez seja mesmo a única coisa que nos livre de um holocausto nuclear. — E antes que Casper se arriscasse a responder, o General concluiu: — Não há nada mais nojento, mais pornográfico, mais desprezível que praticamente toda a riqueza do mundo estar nas mãos de tão poucos.